Estas são observações preliminares sobre o chamado “plano de paz” de Donald Trump. Longe de constituir um roteiro para a paz, o plano é um projeto para a rendição do povo palestiniano. Ele reforça a assimetria, nega o contexto e converte a expropriação em projeto controlado e lucrativo.
Genocídio
Plano de paz de Trump para Gaza não responde aos mesmos obstáculos de sempre
Asher Kaufman
O que se segue reúne apontamentos de leitura crítica: não pretende esgotar o tema, mas sim destacar, de forma sintética, algumas das suas principais implicações.
1. Assimetria de obrigações e ganhos
O povo palestiniano é obrigado a desmantelar a sua resistência armada, dissolver facções políticas, aceitar uma autoridade transitória estrangeira e submeter-se à polícia internacional. Em troca, recebe apenas promessas de ajuda condicional e de projetos económicos concebidos e geridos externamente.
A Israel, por outro lado, quase nada é exigido. A eventual retirada é condicional, vinculada a metas estabelecidas em coordenação com os Estados Unidos. Israel mantém um «perímetro de segurança» dentro de Gaza pelo tempo que considerar necessário, garantindo a devolução de reféns e a destruição da infraestrutura de resistência palestiniana — sem, contudo, ser obrigada a levantar o cerco, pôr fim à ocupação ou cumprir as normas do direito internacional humanitário, tal como reafirmado pelo Tribunal Internacional de Justiça em 2004 e por diversas resoluções do Conselho de Segurança da ONU (nomeadamente 242 e 338). Relatórios recentes da ONU também documentam que estas obrigações continuam sistematicamente incumpridas.
2. Contradição com o direito internacional
O plano apaga deliberadamente o facto de que os territórios palestinianos ocupados (incluindo Gaza e a Cisjordânia) permanecem sob ocupação ilegal — algo reconhecido explicitamente pelo Tribunal Internacional de Justiça no parecer consultivo de julho de 2024 (Legal Consequences arising from the Policies and Practices of Israel in the Occupied Palestinian Territory), no qual o CIJ declarou que a presença continuada de Israel nos territórios ocupados é ilegal e determinou que essa presença deve cessar “o mais rapidamente possível”. Esta posição tem sido reiterada em várias resoluções da ONU. Pelo direito internacional, Israel é responsável como potência ocupante, mas o plano não faz qualquer menção a essa responsabilidade.
Em vez disso, apresenta a resistência palestiniana como o único obstáculo à paz, omitindo a responsabilização de Israel por crimes de guerra amplamente documentados: bombardeamento indiscriminado de civis, deslocamento forçado, fome usada como método de guerra e destruição de infraestruturas vitais. Estas não são meras alegações políticas — constituem graves violações das Convenções de Genebra, já assinaladas por órgãos das Nações Unidas e por investigações de tribunais internacionais.
3. Negação da autodeterminação
O plano retira ao povo palestiniano o direito fundamental ao autogoverno, consagrado no direito internacional e reiterado pela Assembleia Geral da ONU em múltiplas resoluções sobre a autodeterminação dos povos (incluindo a Resolução 3236 de 1974, especificamente sobre a Palestina). Prevê que os territórios palestinianos ocupados sejam administrados por um comité tecnocrático, supervisionado por um «Conselho de Paz» presidido por Donald Trump, com potências estrangeiras a definir as regras de governação e reconstrução.
Mesmo a possibilidade de transferência de responsabilidades para a Autoridade Palestiniana surge condicionada a reformas impostas e avaliadas por forças externas. Não se trata de soberania, mas de tutela internacional — em contradição direta com o princípio da autodeterminação dos povos, reafirmado também pelo Tribunal Internacional de Justiça no parecer consultivo de 2024.
4. Lucro em vez de justiça
A reconstrução é apresentada não como uma questão de reparação ou justiça, mas como um mercado emergente. O plano propõe transformar Gaza numa zona económica especial, gerida com o envolvimento de investidores estrangeiros e supervisionada por um conselho internacional. Nos documentos divulgados, a ênfase está em “oportunidades de investimento”, em contratos de infraestruturas e em projetos de reconstrução concebidos como empreendimentos lucrativos.
Ao substituir a linguagem de direitos, reparações e responsabilização por uma lógica de negócio, o plano reduz a devastação e o sofrimento do povo palestiniano a uma oportunidade financeira. Tal abordagem contrasta com as normas do direito internacional humanitário e com a obrigação da potência ocupante de reparar os danos causados (Convenções de Genebra; Resolução 60/147 da Assembleia Geral da ONU sobre o direito à reparação, 2005).
5. Insustentável por natureza
Um plano que ignora a ocupação, absolve Israel de responsabilidades, nega ao povo palestiniano o direito à autodeterminação e prioriza o lucro em detrimento da justiça não pode gerar paz. No máximo, pode impor uma trégua frágil através de uma presença internacional de polícia.
Mas sem enfrentar a causa principal — a ocupação ilegal e as violações sistemáticas do direito internacional por parte de Israel, já reconhecidas pelo Tribunal Internacional de Justiça (2024) e reiteradas em resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança da ONU — não há condições para uma paz sustentável. Em vez de abrir caminho para uma solução justa e duradoura, perpetua-se a dominação e a dependência, em contradição com o princípio da autodeterminação e com as obrigações de proteção da população civil consagradas nas Convenções de Genebra.
6. Implementação e credibilidade
Tudo isto ignora as sérias dúvidas sobre a intenção de Israel em cumprir a sua parte do acordo. A experiência passada — dos Acordos de Oslo (1993) à chamada «retirada» de Gaza em 2005 — mostra um padrão: o povo palestiniano é pressionado a fazer concessões imediatas e irreversíveis, enquanto as obrigações de Israel são sistematicamente adiadas, condicionadas ou reinterpretadas até perderem o seu efeito.
Segundo noticiou o Times of Israel (setembro de 2025), Netanyahu assegurou alterações ao plano que atrasam e limitam qualquer retirada de Gaza, deixando-a faseada e dependente de critérios definidos unilateralmente por Israel. Na prática, isso confere a Israel discricionariedade indefinida sobre se e quando se retirar, enquanto se espera que o povo palestiniano se desarme e aceite de imediato um controlo externo.
Este desequilíbrio levanta um problema fundamental de credibilidade: aquilo que é apresentado como retirada pode, mais uma vez, servir para consolidar o controlo israelita sob a forma de negociação — um padrão já documentado em análises académicas e em relatórios da ONU sobre a implementação seletiva dos acordos anteriores.
Conclusão
Este não é um plano de paz. Contradiz abertamente pareceres do Tribunal Internacional de Justiça (2004; 2024) e resoluções centrais das Nações Unidas sobre a Palestina. Exige que o povo palestiniano renuncie à sua soberania, aos seus direitos políticos e à autodeterminação em troca de ajuda condicional e de uma gestão externa, ao mesmo tempo que permite a Israel manter o controlo, evitar a responsabilização por crimes de guerra — já documentados por órgãos da ONU e por organizações internacionais de direitos humanos — e prosseguir a sua ocupação ilegal.
Longe de promover uma paz sustentável, o plano consolida a injustiça e garante que a paz genuína — baseada nos direitos, na justiça e na igualdade — permaneça fora de alcance.