Racismo

Como a islamofobia no Reino Unido foi manufaturada

11 de agosto 2024 - 20:49

Motins racistas e atos terroristas no Reino Unido mostram sentimento anti-islâmico que tem sido semeado na sociedade britânica pelos media e pelos principais partidos políticos.

porDaniel Moura Borges

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Tony Blair
Tony Blair, antigo primeiro-ministro inglês e um dos responsáveis pela invasão do Iraque e do Afeganistão. Fotografia de Chatham House

No dia 5 de agosto, a deputada trabalhista Zarah Sultana utilizou as suas redes sociais para denunciar a forma como o Daily Mail, um tabloide britânico, incentivou durante anos a islamofobia e normalizou a retórica anti-imigrante. A publicação ficou viral.

A denuncia surgiu no meio dos motins racistas orquestrados pela extrema-direita, instigados por notícias falsas sobre a identidade de um atacante que esfaqueou três raparigas em Southport. Mas essas notícias falsas foram apenas a centelha que acendeu o fósforo. A sociedade britânica tem sido alvo de várias campanhas que incentivaram e permitiram que a islamofobia se difundisse pelo país.

No centro dessas campanhas, esteve a imprensa tabloide. Em 2011, o jornalista Richard Peppiatt demitiu-se do Daily Star, publicando uma carta ao diretor onde criticava o facto de o jornal simplesmente inventar histórias sobre a comunidade muçulmana, sempre na senda anti-islâmica.

O jornalista lembra um história que o Daily Star se empenhou em publicar, que falava de casas-de-banho apenas para muçulmanos. “Sem nos deixarmos intimidar pelo incómodo da verdade, omitimos alguns factos, arrancámos algumas citações e, de repente, qualquer pessoa pensaria que um centro comercial de Rochdale tinha contratado Osama Bin Laden para ficar junto às torneiras a distribuir toalhas de papel”, comentou.

Peppiatt admite que saiu do Daily Star porque percebeu as consequências das suas ações, prevendo o que estaria para vir. “As mentiras de um jornal em Londres podem fazer com que a cabeça de um homem seja esmagada num beco em Bradford”, disse sobre os impactos das mentiras islamofóbicas do tabloide.

Mas as mentiras não foram propagadas apenas por um jornal. Dez anos depois, em 2021, um relatório do Conselho Muçulmano Britânico sobre a cobertura mediática dos muçulmanos no Reino Unido chegou à conclusão de que a maior parte dos artigos nos media com referencia à religião islâmica e aos seus praticantes era negativa. Em 48.000 artigos online registados entre 2018 e 2019, 60% eram negativos. Ao mesmo tempo, em 5.500 peças audiovisuais 47% colocavam uma tónica negativa na religião islâmica. No total, o estudo registou que 59% dos órgãos de comunicação online analisados associavam os muçulmanos com comportamentos negativos.

A legitimação política da islamofobia

Para além dos media, também a esfera política foi desde cedo contaminada por comportamentos e tomadas de posições islamofóbicas, que legitimaram e abriram caminho a esse discurso na sociedade.

Michael Gove foi uma das personalidades políticas centrais na instrumentalização de comunidades islâmicas. Membro do partido Conservador, Gove foi várias vezes Ministro durante os Governos de David Cameron,Theresa May, Boris Johnson e Rishi Sunak, incluindo Ministro das Comunidades.

Em 2014, o a Câmara Municipal de Birmingham recebeu uma carta anónima, que denunciava um suposto plano para impor crenças islâmicas nas escolas públicas da cidade. Apesar de a carta ter sido desconsiderada como uma piada de mau gosto pelas autoridades locais, o Governo conservador ordenou uma investigação, sob tutela de Gove.

Uma investigação jornalística feita pelo New York Times anos mais tarde revelou que o caso foi usado como pretexto para começar a introduzir políticas islamofóbicas no país, como o programa “Prevent”, desenhado para impedir que as crianças nas escolas fossem puxadas para “atividades terroristas” e pinta Gove como uma das principais figuras do anti-islamismo britânico.

Sempre com uma narrativa contra o islamismo “terrorista”, Gove liderou várias iniciativas que discriminam muçulmanos, entre as quais a redefinição da palavra “extremismo”, levada a cabo durante o Governo de Rishi Sunak. Em abril de 2024, a porta-voz do Conselho Muçulmano Britânico denunciava a política hostil e alarmista de Gove contra os muçulmanos, e até a deputada conservadora Sayeeda Warsi, que é muçulmana, denunciou a islamofobia no Partido Conservador, liderada por Michael Gove.

Mas Gove não está sozinho no partido. Na campanha para as eleições municipais de 2016, Zac Goldsmith concorria contra o trabalhista e muçulmano Sadiq Khan, que acabou por ganhar a corrida eleitoral. Goldsmith foi acusado de fazer uma campanha islamofóbica, que despoletou o sentimento anti-muçulmano na cidade de Londres e acabou mesmo por admitir que a campanha foi conduzida de forma negativa. Há altura, até os próprios membros do partido Conservador apelaram a campanha de “nojenta”, porque Goldsmith tentou pintar Khan como um extremista islâmico publicando um artigo de opinião a que deu o título: “Are we really going to hand the world’s greatest city to a Labour Party that thinks terrorists are its friends? ” (“Vamos mesmo dar a melhor cidade do mundo ao Partido Trabalhista que acha que os terroristas são seus amigos?”).

Ao longo da última década, os exemplos da legitimação pública de islamofobia pelo Partido Conservador foram-se multiplicando. Uma das figuras que não ficou de fora foi Boris Johnson, que mesmo antes de ser primeiro-ministro Johnson causou ondas políticas ao dizer que mulheres que usavam burkas pareciam “caixas de correio” e “ladrões de bancos”. Um estudo realizado mais tarde comprovou que esse comentário levou a um aumento significativo de ataques e incidentes anti-muçulmanos por todo o Reino Unido. Talvez por participar na tendência de comentários e afirmações islamofóbicos, Boris Johnson beneficiou do apoio de Tommy Robinson, conhecido influencer de extrema-direita, nacionalista e anti-imigração, quando concorreu a primeiro-ministro.

Vários escândalos de islamofobia dentro do partido Tory (abreviação para Conservadores) têm surgido na imprensa. Num caso em concreto, a deputada conservadora Nusrat Ghani denunciou o encobrimento de posições anti-muçulmanas dentro do partido, tendo sido ela mesmo vítima de um episódio em que Mark Spencer, na altura líder parlamentar que viria a ser Ministro do Ambiente, lhe disse que a sua “Muslimness” (“Muçulmanidade”), seria um dos fatores para o seu afastamento. Noutro caso, 25 conselheiros conservadores foram expostos por terem postado conteúdos racistas e islamofóbicos nas redes sociais, incentivando o discurso de ódio na sociedade britânica.

Mas com o passar do tempo, a vergonha foi-se desfazendo. Uma sondagem feita em 2020 dava conta de que quase metade dos membros do partido Conservador acreditavam que o islamismo era “uma ameaça ao estilo de vida britânico”. Suella Braverman, que chegou a ser Ministra do Interior de Liz Truss e Rishi Sunak, escreveu um artigo de opinião para o Telegraph em fevereiro de 2024, com o título “Os islamistas estão a intimidar a Grã-Bretanha até à submissão” e em que afirma que “os islamistas estão em controlo do país”.

A própria campanha feita pelo “Leave” no Brexit, isto é, pela saída do Reino Unido da União Europeia, tinha já sido feita sob a narrativa anti-imigração e anti-islâmica. Liderada por Michael Gove, a campanha fez questão de realçar que a Turquia estaria próxima de aderir à União Europeia e que isso colocaria um risco de segurança nacional e de aumento da criminalidade no Reino Unido. Passados oito anos, a Turquia continua de fora da União Europeia, mas isso não impediu que a campanha para sair da União Europeia começasse a aproximação à extrema-direita. Aliás, é nessa campanha que Nigel Farage, líder do Reform UK, partido de extrema-direita, começa a ganhar mais destaque e projeção na sociedade britânica.

O outro lado da moeda

Mas nem por isso as coisas são melhores do outro lado da bancada. O partido Trabalhista tem também uma história de legitimar posições anti-islâmicas, que remonta pelo menos a 2006, quando Jack Straw, membro do Governo de Tony Blair escreveu no seu jornal local, o Lancashire Evening Telegraph, que preferia falar com mulheres que não usassem niqab e que pedia às mulheres que usavam esse tipo de roupa que o tirassem quando falavam com ele. Numa campanha eleitoral pelo seu assento parlamentar contra os Liberais Democratas, o trabalhista Phil Wallace aproveitou para fazer uma campanha com temas contra a imigração e contra a comunidade islâmica para ganhar votos.

O ex-primeiro-ministro Tony Blair, que liderou a decisão política de invasão do Iraque e do Afeganistão, já mostrou várias vezes a sua posição anti-islâmica, afirmando que milhões de Muçulmanos são “fundamentalmente incompatíveis com o mundo moderno” e que o ocidente se deve juntar à Rússia para combater o “islamismo extremista”.

Já sob a liderança de Keir Starmer, o partido Trabalhista utilizou retórica anti-muçulmana quando enfrentados com uma derrota numa eleição marginal em 2021, acusando a comunidade muçulmana de ser 'anti-semita', uma acusação que Starmer já tinha atirado a Jeremy Corbyn como pretexto para o afastar do partido.

Em 2020, Trevor Phillips, um membro histórico do partido Trabalhista foi suspenso pelas suas posições anti-islâmicas, desta vez ele próprio acusando o partido de ser anti-semita e assinando uma declaração com mais 24 personalidades públicas declarando a sua intenção de não votar no seu partido. Mas pouco depois, a suspensão de Phillips foi levantada e os seus comentários sobre a comunidade islâmica ignorados.

Um estudo de 2020 que abordou os membros muçulmanos do partido Trabalhista dava conta de que os militantes muçulmanos dentro do próprio partido estavam altamente descontentes com a forma como o partido tratava a islamofobia. Das pessoas inquiridas, apenas 13% afirmavam que o partido lidava 'Muito bem' ou 'Bem' com o sentimento anti-muçulmano. Por outro lado, 49% acreditavam que o partido lidava 'Mal' ou 'Muito mal' com esse mesmo sentimento.

Com o antagonismo criado pelos media e a legitimação da retórica anti-islâmica e anti-imigrante por parte dos dois principais partidos, bem como pelo crescimento do partido de extrema-direita, os motins racistas que deflagraram em Julho têm contornos demarcados por uma sociedade cujas elites políticas tiveram a incapacidade e a falta de vontade de agir sobre um problema que foi crescendo, chegando mesmo de facto a estimular o sentimento anti-muçulmano para ganhos políticos.

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.