A frente que criou com o general Gomes da Costa (também afastado em 9 de julho por um golpe militar conduzido pelo general Óscar Carmona) foi frágil e efémera. Recebera o poder ditatorial de Bernardino Machado, de forma “legal” e, poucos dias depois, foi obrigado assinar a sua própria demissão. Daí em diante, estava instalado um regime antiliberal e antidemocrático transitório, que depois se constitucionalizou de forma corporativa e se impôs de forma fascista.
O itinerário político - do nacionalismo reformador ao golpismo militar
Mendes Cabeçadas fez um percurso político discreto na nova República velha. Acompanhou os unionistas que formaram o partido liberal em 1920, esteve na formação do Partido Nacionalista em 1923 e acompanhou a dissidência de Cunha Leal em 1926, ingressando na União Liberal Republicana. Nos últimos tempos da República passou por ser um dos “amigos” de Cunha Leal. No entanto, não ocupou cargos políticos relevantes, com exceção da Comissão de Serviço, como Governador Civil de Faro, em 1923, justamente durante a curta experiência governamental nacionalista presidida por Ginestal Machado. Prosseguiu a sua carreira militar e voltou a estar em evidência em 19 de Junho de 1925, altura em que comandou uma revolta contra o poder constituído, a partir do Cruzador Vasco da Gama. “Acompanhei com a maior simpatia – afirmou mais tarde Mendes Cabeçadas – a atitude dos homens do “18 de Abril”, movimento que eclodiu estando eu no Algarve. Mais tarde vim para Lisboa e vi o que era o ambiente: tudo contra o Governo”1
Para os nacionalistas, o obstrucionismo violento no Parlamento e a reação militar na rua ganhavam plena justificação pela falta de legitimidade dos governos “esquerdistas” empossados por Teixeira Gomes: até aí tinha sido o Presidente do Partido Democrático; agora era Presidente de uma fação minoritária desse partido com o apoio que dera, no início de 1925 à deriva esquerdizante de José Domingues dos Santos. As tentativas frustradas de reforma bancária e de reforma agrária desse governo tinham acabado com monumentais manifestações populares, em Lisboa, (depois do encerramento da Associação Comercial de Lisboa), onde o chefe do Governo se não coibira de afirmar: “ O povo tem sido explorado pelo alto comércio e pela alta finança. O governo da República coloca-se ao lado dos explorados contra os exploradores”. É certo que, em meados de fevereiro de 1925, uma moção de Agatão Lança reunia os votos conjuntos de nacionalistas e democráticos para derrubar o Governo de Domingues dos Santos. Mas também é verdade que o Partido Democrático se desmultiplicava em soluções governamentais sem credibilidade e sem durabilidade, por falta de apoio do próprio partido. Na sequência de uma moção de censura, apresentada por Cunha Leal ao Governo, em 18 de Fevereiro de 1925, os nacionalistas ausentaram-se do Parlamento, onde só regressaram depois do 18 de Abril de 1925. No início de março reuniram-se em Congresso anual para definir a estratégia de construção do campo hegemónico da direita conservadora que fosse alternativa à política radical dos Democráticos. Apelaram a “uma frente única dos homens da Ordem contra a desordem”. Mas, nos subterrâneos do Congresso corria já célere a conspiração militarista que desembocou no 18 de Abril. Eram nacionalistas os seus dirigentes, alguns com cargos políticos no Partido Nacionalista. E queriam resolver o problema nacional fora dos partidos políticos: era, pela primeira vez, um movimento anticonstitucional e antiliberal que nascia de dentro do próprio sistema.
Contudo, esta sensibilidade não representava todo o Partido Nacionalista. Os revoltosos podiam ter obtido a simpatia dos seus correligionários, como Mendes Cabeçadas ou Cunha Leal. Mas estes corporizavam uma outra estratégia, dentro do campo constitucional. Queriam impor uma correção ao regime de “partido liderante” – à “ditadura de partido único”, como consideravam – pela afirmação de uma alternativa liberal conservadora. Tinham tentado em 1923 e 1924 essa alternativa por nomeação de governo de iniciativa presidencial, mas achavam-na esgotada. Por isso começaram a preconizar um movimento militar que impusesse uma solução conservadora ao Presidente da República, mas dentro da continuidade do poder constitucional – podia consubstanciar-se numa autorização especial do Parlamento ao Governo, a termo certo, uma “ditadura temporária”. Foi este projeto que emergiu no “Movimento de 19 de Julho”, desencadeado com “o nobilíssimo propósito de fundar uma República digna, tolerante e integrada na civilização moderna”. Era comandada por oficiais da Marinha, do Exército e por civis. Alguns militares tinham-se evadido do Forte de S. Julião da Barra, onde tinham permanecido presos por implicação no “18 de Abril de 1925”. Juntou-se-lhes Mendes Cabeçadas, a bordo do “Vasco da Gama”. Tinham óbvias preocupações de continuidade do sistema constitucional, como se deduz da Proclamação: “A fim de superintender nos negócios públicos até à formação do novo governo, constituir-se-á uma Junta de Salvação pública, que tomará as medidas necessárias para assegurar a manutenção da ordem e a sequência regular do regime constitucional”2. Programaticamente tinham objetivos conservadores, ou se quisermos, de reação ao rumo esquerdizante e anarquizante da política dos Democráticos, que consideravam responsáveis pelo “perigo bolchevista” expresso na crescente vaga de atos terroristas da “Legião Vermelha”3.
As eleições de novembro de 1925 vieram mostrar que, se a solução política não estava no desconjuntado Partido Democrático, ela também não residia no Partido Nacionalista, dividido por lideranças incompatíveis e estratégias antagónicas4. Assim, em Março de 1926, no Congresso anual do Partido Nacionalista, Cunha Leal protagonizou a dissensão que deu origem à União Liberal Republicana. Foi acompanhado por cerca de quatro centenas de “amigos”, entre eles Mendes Cabeçadas. Abria-se aqui a oportunidade para levar à prática um programa político reformador, liberal e constitucional, mas em que o recurso a uma solução excecional temporária não podia ser afastado. Não fora Cunha Leal que afirmara no julgamento dos réus do 18 de abril que o “problema administrativo (...) é [era] insolúvel sem uma revolução”?5
De março a maio de 1926, Cunha Leal e os seus “amigos” correram o país numa atividade intensa de propaganda. Mendes Cabeçadas, um prestigiado capitão-de-mar-e-guerra desde agosto de 1925, tinha sido absolvido, em novembro, da sua implicação no “Golpe de 19 de Julho”. Acompanhou o seu amigo ao Algarve (V. R. de Sto. António, Olhão, Loulé, Silves, Lagos) nos últimos dias da República parlamentar. No entanto, desde a sua absolvição, Mendes Cabeçadas “nunca mais deixou de agitar e de conspirar”. Porque afirmava-se convencido de que “os saudosistas do passado monárquico estavam a assumir no fenómeno revolucionário uma preponderância que exigia da parte dos republicanos descontentes com a inércia e a incapacidade governativa uma intromissão ativa e preponderante, sob pena de soçobrar entre nós a democracia” 6. Sentiam-se “Cavaleiros da Pátria” que queriam unir num grande bloco conservador a força capaz de apresentar ao país a solução política que pudesse evitar a “revolução” que todos sabiam iminente. Mendes Cabeçadas falava pela voz de Cunha Leal que apresentava à assistência: “Acompanho Cunha Leal cheio de fé, cheio de entusiasmo, por estar convencido que ele vai trazer para o país horas de grande felicidade que façam esquecer as amarguras da hora que passamos, trágica entre as mais trágicas por que tem passado a nacionalidade. Viva a Pátria Portuguesa! Viva o Povo de Beja!”7. No mesmo comício, Cunha Leal afirmava: “O Partido Democrático faz uma obra antipatriótica, querendo manter-se no poder neste momento. Os seus braços que, algumas vezes, têm amparado a República, agora asfixiam-na ao ponto de executá-la sem mais remédio! Como será desalojado esse partido? Pela revolução? Não! Preferimos os métodos constitucionais. É preciso que uma nova consulta se faça ao país...”8.
Cunha Leal e os seus amigos apostavam na dissolução do Parlamento pelo Presidente Bernardino Machado e pela apresentação do programa reformador da ULR como uma saída para a crise. Propuseram-no ao Presidente, porque sabiam que estava na forja a conspiração antiliberal que viera à luz com o “18 de Abril de 1925”. O Exército preparava-se para intervir, como considerava Cunha Leal em Braga: “O Exército pretende substituir a sua força às mil forças que nos governam. O Exército não praticará um crime, mas praticará certamente um erro”9. Mas não se adivinhava o que poderia vir dessa intervenção – ou antes, percebia-se que o descalabro do regime republicano liberal tinha alimentado um desejo imoderado de mudança em sentido contrário, com exemplos patentes em Espanha e Itália.
A iniciativa de Mendes Cabeçadas em liderar o golpe militar de 1926 inscreve-se numa linha estratégica de antecipação em relação à conspiração de direita antiliberal que se forjava desde 1925 e visou a constituição de um governo de exceção, imposto à iniciativa do Presidente da República Bernardino Machado, tal como se pode concluir da carta dirigida por Mendes Cabeçadas, em “28 de Maio”, pedindo a demissão do Governo e a nomeação de “um governo extrapartidário, constituído por republicanos que merecessem a confiança do país”. Podemos imaginar o que orientava as decisões de Mendes Cabeçadas e do seu chefe político Cunha Leal: a curto prazo, impor a nomeação de um governo de cariz conservador a Bernardino Machado, governar com o apoio expresso dos militares, (mais ou menos presentes no futuro governo de competências), anular temporariamente a ação das Câmaras pela obtenção de um interregno de exceção, pôr em prática o programa político da ULR e anular o golpismo antiliberal da extrema-direita; a médio prazo, conseguir a reconfiguração do quadro político-partidário, com um partido conservador liberal a contrabalançar o poder até aí hegemónico da esquerda republicana. Este era um cenário presente desde a experiência governamental nacionalista de 1923 e que se bifurcou em 1925 com as duas derivas golpistas de 18 de Abril e de 19 de Julho.
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No 28 de Maio de 1926 – um revolucionário arrependido
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A transferência “legal” de poderes
Bernardino Machado resistiu às exigências dos revoltosos, enquanto o Governo legalmente constituído lhe foi garantindo o domínio da situação. Já a 30 de Maio, perante a incapacidade de vencer o elo nortenho da conspiração, mais forte e instalado, o Governo de António Maria da Silva optou por demitir-se e facilitar o desempenho político da fação de Mendes Cabeçadas. No seu órgão oficioso, o PRP remeteu-se serenamente a aguardar o desenrolar dos acontecimentos, afirmando que a República parecia “estar defendida”10. Bernardino Machado mandava libertar Mendes Cabeçadas, que tinha sido preso em Santarém, no dia 28, quando se deslocava para Norte, ao encontro de Gomes da Costa e celebrava com ele um “pacto” de cedência do poder, em troca do compromisso de respeito pela legalidade constitucional. Este era, na apreciação de um dos seus íntimos amigos, o resultante de um “gosto imoderado do compromisso” do velho Presidente. Até ao final do seu mandato, considerou-se impedido de intervir pessoalmente, a não ser que circunstâncias excecionais a isso o autorizassem11. Mendes Cabeçadas foi nomeado Chefe do Governo e Ministro da Marinha e interino das restantes pastas por Bernardino Machado. No dia 31, foi encerrado o Parlamento, num golpe de mão de militares envolvidos no movimento. Estas circunstâncias excecionais obrigaram o Presidente da República a renunciar, enviando duas cartas a Mendes Cabeçadas, uma pública, outra privada. Na segunda afirmava: “Não quero que nesta alteração dos ânimos se imagine que o critério constitucional prenda de qualquer modo a sua ação política, porque lhe diminuiria a influência que, para bem da República, deve ser preponderante. E, com a minha renúncia, o seu ministério assumirá toda a autoridade do Poder Executivo. Creia na dedicação muito afetuosa e grata de todo o seu a) Bernardino Machado”. O Presidente pretendia não dificultar a agenda de Mendes Cabeçadas que, assim, assumia a plenitude do Poder Executivo, tal como estava previsto no Artigo 38º, ponto 3, da Constituição de 191112. Numa espécie de ajuste de contas tardio, Raúl Rego considerava: “O comandante José Mendes Cabeçadas é, em 31 de maio, o Estado Português. É o Presidente da República, é o Governo, é o Parlamento. Dispõe de todos os poderes de que dispunha o mais absoluto dos reis; somente não exerce, não sabe exercer nenhum deles”13 Para este efeito, tinha contribuído também o entendimento que Bernardino Machado tinha conseguido obter de Cunha Leal, chamado ao Palácio presidencial, antes de celebrado o acordo14.
Poderia este “pacto” ser levado a bom termo, tendo em conta o carácter marcial do movimento nortista e a sua liderança por Gomes da Costa, acolitado por elementos da extrema-direita? A resposta viria a 1 de junho, quando Gomes da Costa se encontrava já nos arredores do Porto, em proclamação por ele dada a público: o seu propósito era ir contra “a ação nefasta dos políticos e dos partidos” e de pôr fim a uma “ditadura de políticos irresponsáveis”. Por isso, decidira formar um “Governo Nacional Militar”. Nesse mesmo dia 1 de unho, Mendes Cabeçadas foi obrigado a deslocar-se a Coimbra para “dividir” com Gomes da Costa o poder “outorgado” por Bernardino Machado. Acontecia a primeira derrota de Mendes Cabeçadas e da fação política que o apoiava. O Poder Executivo passava agora a ser partilhado com a direita antiliberal que rodeava Gomes da Costa e que ia exigindo cada vez mais espaço ao General. A segunda derrota ocorreu logo após o acordo de Coimbra que Gomes da Costa desmentiu uma horas depois, já no Entroncamento: “Comunico conhecimento de todos os oficiais que não estou de acordo com notícias jornais formação ministério, continuando à frente do movimento de carácter exclusivamente militar, para engrandecimento da Pátria e bem da República e do Exército – Gomes da Costa, General”. Foi com essa força militar já estacionada em Sacavém e pronta a “invadir” Lisboa que obrigou Mendes Cabeçadas a ceder às suas exigências. O novo Governo, combinado no dia 3 de Junho reservava a pasta do Interior para Mendes Cabeçadas mas cedia a pasta da Guerra - e assim de todo o controlo do Exército – a Gomes da Costa. No dia 6 de junho, um Domingo, o General entrava pela cidade de Lisboa à frente de quinze mil homens, assumindo-se como o verdadeiro chefe do movimento.
As condições de exercício do poder de Mendes Cabeçadas eram mínimas. Apesar de ser um militar – tido pela opinião pública como honesto e patriota – estava comprometido com o poder político: tinha tido cargos partidários, ingressara na ULR e participara no movimento de lançamento nacional do novo partido e, principalmente, tinha pactuado com o Presidente Bernardino Machado, comprometendo-se na continuidade do regime liberal e dos partidos. Era mesmo o único que representava um projeto político afirmativo, ao contrário dos restantes, apenas unidos pela negativa. Esta foi a primeira razão da sua desgraça política. A segunda resultava do facto de se ter aliado à direita antiliberal, integralista e pró-fascista com a qual conviveu no interior do Partido Nacionalista, sem assegurar, a seu lado, um poder militar suficiente ao suporte da sua decisão conspiratória e do seu projeto político15. Preparou toda a conspiração, aliciou os seus principais dirigentes (entre eles Gomes da Costa), viajou pelo país mas, na hora da verdade, reservou para si o campo militar mais difícil de aliciar, cedendo à direita antiliberal todo o país norte e centro. Ora, Lisboa era, por natural proximidade do poder político, o bloco mais difícil de manobrar em favor da conspiração. Por último, Mendes Cabeçadas soçobrou porque lhe escasseavam as características pessoais de um cabo de guerra: submeteu-se para evitar o conflito militar aberto. Apesar de reconhecer que tinha forças suficientes para combater: "“Podia ter resistido porque as tropas concentradas na Amadora, a GNR e a Polícia, que me obedeciam, faziam um total de cerca de 20 000 homens com que eu podia ter feito frente às tropas de Sacavém, entre as quais tinha ainda alguns comandos”16.
Mendes Cabeçadas e os seus “amigos” falharam porque eram republicanos, empenhados numa reforma pacífica e pactuada do regime e na sua manutenção como liberal e constitucional. Preparam-se apenas para receber “legalmente” o Poder Executivo e exercê-lo de forma excecional, em nome de um ideal democrático. Tiveram que partilhá-lo, desde a primeira hora, com a direita antiparlamentar.
Por isso, em termos jurídico-constitucionais rigorosos, Mendes Cabeçadas deteve a plenitude do Poder Executivo – incluindo as prerrogativas de Presidente da República – apenas uns escassos dois dias: entre a renúncia de Bernardino Machado e a nomeação do governo tripartido entre ele, Gama Ochoa e Gomes da Costa17. Daí em diante, e até à sua destituição, em 17 de junho, o poder executivo foi exercido por um coletivo de Ministros, embora sob a presidência de Mendes Cabeçadas. É bem certo que o Presidente Bernardino Machado lhe delegou todo o Poder Executivo e que se esperava que Mendes Cabeçadas o pudesse exercer até à eleição de um novo Presidente da República. Porém, tal não aconteceu. No entanto, em termos históricos, é indiscutível o exercício do poder executivo, em termos plenos, por Mendes Cabeçadas. À falta de outras instâncias de poder (as Câmaras tinham sido encerradas em 31 de maio), ele nomeia, chefia e exonera os sucessivos governos. Em 17 de Junho, é mesmo ele que se exonera a si próprio e nomeia o novo Presidente do Ministério, General Gomes da Costa18, num ato que a imprensa rotula de “retumbante”.
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Os projetos políticos em presença: reformadores e reacionários
Bernardino Machado era um defensor do regime liberal constitucional que deplorava tanto as “arbitrariedades governativas” como as “vexatórias ditaduras salvadoras”. Muito menos aquelas que se anunciavam como comprometedoras do normal curso constitucional. Por isso manteve o governo de António Maria da Silva, à outrance, por isso cedeu o poder à fação constitucionalista de Mendes Cabeçadas, quando já não podia manter o Governo constitucional. De resto, tinha mesmo encetado démarches junto do General Ribeiro de Carvalho para o encarregar da presidência de um ministério “nacional”, de iniciativa presidencial, caso a situação se deteriorasse19.
A antevisão da mudança “necessária” era, pois, uma consequência do desejo imoderado de alteração do regime dominado por um partido que monopolizava o poder, mas sem concorrer para a resolução dos problemas do país. A conspiração mostrava-se a céu aberto, tão diversos eram os sectores políticos que buscavam a mudança. A dissolução do poder parlamentar e do executivo e a ausência de alternativas por via legal abriam o caminho a soluções extraparlamentares. Era muito difícil afirmar um projeto político alternativo, mas constitucional, de tal modo a crise do Partido Democrático estava a ser assimilada à crise do regime. Era mais fácil uma conjugação negativa ou uma alternativa anti-parlamentar. Foi o que aconteceu.
O golpe militar de “28 de Maio” só foi possível pela conjugação de várias fações organizadas no interior do Exército, num espectro amplo que ia desde os republicanos conservadores e liberais, aos católicos-sociais e à extrema-direita integralista e monarquizante, bem como a pequenas franjas fascizantes. Na sociedade civil, o golpe encontrou a simpatia de toda a oposição ao Governo dos Democráticos – do mundo sindical, à Esquerda Democrática, aos Radicais, aos Seareiros, e aos ex-Reconstituintes. Para todos eles tratava-se de derrubar o “partido único” de António Maria da Silva.
A conjugação negativa uniu todos contra o Governo de António Maria da Silva, sem cuidar de saber o que viria de seguida. O projeto conservador e liberal de Mendes Cabeçadas era, entre os militares, talvez o único que se apresentara à luz do dia, de forma afirmativa. No entanto, a sua unidade tática com a extrema-direita e a sua unidade programática e estratégica com o campo democrático moderado cavaram incompatibilidades que só poderiam ser resolvidas com uma clarificação dos campos em confronto. As cisões foram logo visíveis no período de preparação do movimento. É o próprio Mendes Cabeçadas quem no-lo dá a conhecer: “Um dia convidaram-me a vir a Coimbra (...) para assistir a uma reunião de oficiais, na qual me pediram para eu deixar o partido a que então pertencia e tomar a chefia do Movimento que eles queriam levar a efeito. (...) Aceitassem-me, porém, tal qual eu era, porque se eu porventura fosse aceder ás condições que eles me propunham começaria logo por não ser um chefe digno de ser seguido”20
O movimento de 28 de maio pôs em confronto os reformadores e os reacionários. A clarificação ocorreu, logo de imediato, nos primeiros dias de junho de 1926, depois da entrada de Gomes da Costa em Lisboa. O antagonismo dos partidos políticos transferia-se para o antagonismo dos “partidos militares”. E Mendes Cabeçadas apresentava-se incapaz de defender o seu projeto político reformador, como considerou mais tarde um observador militar como o coronel Ribeiro de Carvalho, ex-Ministro da Guerra da República: “ ...quis o nosso infortúnio que a legalidade estivesse encarnada num homem, a quem não falta a audácia para se revoltar, mas que, pela sua incrível abulia e a sua irreparável carência, na fase culminante duma luta que ele próprio desencadeara, se revelou, como chefe político e militar, literalmente – um zero”21.
A reação a Mendes Cabeçadas começou com a nomeação de Gomes da Costa para Ministro da Guerra, no dia 3 de junho. À sua volta, uma entourage de oficiais reacionários, tomou por sua conta o desarme das tropas leais a Mendes Cabeçadas (do Algarve, de Trás-os-Montes e de Mafra). Daí em diante, tinha cada vez menos força para impedir a tomada de poder por Sinel de Cordes e por toda a extrema-direita militar. O golpe definitivo ocorreu depois do Conselho de Ministros de 14 de junho, onde foi apresentado o “programa de ação” governamental de Gomes da Costa, a exigência do preenchimento do cargo de Ministro das Finanças pelo General Sinel de Cordes e a nomeação de Gomes da Costa para a Presidência da República. Era o “programa retroativo” do 28 de Maio, na designação que lhe foi dada por Hipólito Raposo, um dos seus autores22. Aí se propunha um reforço dos poderes presidenciais, um sistema presidencialista de governo, uma representação orgânica da nação e uma nova lei eleitoral. Para o realizar, Gomes da Costa exigia o contributo de um novo governo em que ele próprio fosse Presidente.
Em 17 de Junho, Mendes Cabeçadas era “despedido” por Gomes da Costa sem a menor cerimónia, assinando ele próprio o decreto da sua exoneração. Caíra no terrível desamparo para onde o tinham conduzido o quixotismo e a tibieza. No jornal A Revolução Nacional, de apoio a Gomes da Costa, o tenente Pinto Correia escrevia: “ O estado moderno que é preciso construir, não se compadece com as velhas fórmulas liberal-democratas a que se prendem ainda, ao menos na aparência, os amigos do sr. Cunha Leal”23. De ora em diante, entrava-se na Ditadura Militar e estava na forja a constituição do Novo Estado.
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A agenda de Mendes Cabeçadas - percurso de um revolucionário arrependido
Mendes Cabeçadas tinha defraudado as expectativas dos seus “amigos” da ULR e de todos os liberais que acreditaram na sua capacidade de regeneração política do regime. A 17 de Junho, Cunha Leal escreveu-lhe uma Carta Aberta em que manifestava a sua desilusão. Numa toada pungente, aconselhava-o a resistir: “O senhor não tem o direito de se deixar vencer e prender como qualquer outro pobre diabo. O senhor é portador de uma Ideia e as Ideias são de uma tirania devoradora e exigente”. O golpe militar de Gomes da Costa, ao atingir Mendes Cabeçadas, dirigia-se contra todos os partidos e políticos, sem distinção, a começar pela ULR, a principal visada pelo papel interveniente que teve no “28 de Maio”. Por isso, concluía Cunha Leal na sua carta: “Neste momento, meu caro Cabeçadas, pretendem alijá-lo pela violência. E instintivamente, sinto que a si está agarrada qualquer coisa da própria República”24.
Mendes Cabeçadas submeteu-se e voltou para casa, desejoso que ninguém desse por ele. Tinha sido um importante instrumento do poder político: comprometera o poder legal constituído numa transição pactuada; propusera uma via política de reforma da República, através de um “governo excecional de competências”; comprometera, de forma indireta, os seus “amigos” unionistas-liberais; abrira o caminho à transição da República liberal para um novo regime de que ainda se não vislumbravam os contornos. Não tinha estado sozinho, embora na hora da derrota tivesse procurado assumir todas as responsabilidades: “...eu nunca fiz política partidária porque a isso me tinha comprometido sob palavra de honra e sabia que estava a servir um movimento que fora contra todos os partidos políticos. E os meus amigos, esses só me comprometeram por ser meus amigos, porque de resto nunca eles me pediram nem eu nunca lhe fiz, do Poder, o mais pequeno favor”25
Ora, Cunha Leal acusava-o, justamente, de não se ter acercado “dos antigos amigos” e de não ter sido capaz de evitar a ascensão dos conselheiros integralistas e radicais com os quais Gomes da Costa tomou as suas decisões. Nos dias seguintes à demissão de Cabeçadas, a imprensa de direita insistia em arrolar todos os políticos (=inimigos) no mesmo saco e na denúncia do “perigo da conspiração dos partidos”. A ULR reuniu um dia antes da demissão de Cabeçadas e, num comunicado público, protestava contra a generalização dos insultos contra os partidos e os políticos e desmentia todas as ligações e contactos com a Ditadura Militar.
O golpe de 17 de junho alterara as condições políticas para as quais a ULR dera o seu contributo. Havia agora mais razões para manter o afastamento político da Situação: “Declaramos terminantemente que, enquanto a situação se não esclarecer, não queremos nem ligações, nem cooperações, nem quaisquer contactos com os homens do poder”.
Cunha Leal pôde continuar a propaganda da ULR pelo país, agora já sem Mendes Cabeçadas. No entanto, os efeitos da Ditadura fizeram sentir-se logo de imediato: o jornal A Noite, porta-voz do partido, foi silenciado pela Censura em 5 de julho de 1926. E, em 3 de julho, Cunha Leal foi impedido de realizar uma conferência na Sociedade de Geografia de Lisboa, numa resposta a uma outra produzida, dias antes, por Martinho Nobre de Melo, um arauto integralista e conselheiro político dos ditadores.
Fontes e bibliografia
Fontes
Arquivos
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Diário de Notícias – 1925, 1926, 1927, 1965
Jornal de Notícias – 1925, 1926, 1965
A Noite – 1926
O Rebate - 1926
República – 1925, 1926, 1927, 1965
O Século – 1925, 1926, 1927, 1965
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1 Cf. Oscar Paxeco, Os que Arrancaram em 28 de Maio, p. 58
2 Cf. Diário de Lisboa, 19 de julho de 1925
3 Das reivindicações imediatas, constantes na Proclamação, constavam, de forma simplificada: a reorganização dos serviços públicos e a sua moralização, com castigo expedito dos “defraudadores da Fazenda Pública”; uma reforma tributária, adequada à situação económica e uma redução das despesas públicas; uma “industrialização” dos serviços públicos que não fossem considerados de “soberania”, ou seja, a reprivatização de certas indústrias na posse pública; a regularização das contas públicas, com recurso a um empréstimo de salvação pública que permitisse o fomento do país e das colónias; a defesa das liberdades públicas, incluindo a de propriedade e a reposição da ordem pública, se necessário com recurso a umas forças de segurança e Exército equipadas com os meios indispensáveis.
4 As direitas dividiram-se por numerosas famílias: a UIE, os monárquicos, os católicos, todos com pequenas representações parlamentares. Assim, os nacionalistas só puderam reunir 39 deputados contra a maioria de 83 dos Democráticos, também eles divididos entre independentes, socialistas; para mais, confrontados com uma aguerrida Esquerda Democrática saída do seu próprio seio. No Partido Nacionalista, a liderança era repartida por Ginestal Machado, Cunha Leal, Pedro Pita e Tamagnini Barbosa, todos eles incompatíveis
5 Cf, Cunha Leal, Eu, os Políticos e a Nação”, p. 250
6 Cf. Cunha Leal, As Minhas Memórias, vol. II, p. 456
7 Cf. “A Propaganda da ULR em Beja”, in A Noite, 3 de maio de 1926
8 Idem, ibidem
9 Cf. “O Chefe da ULR em Braga”, in A Noite, 14 de abril de 1926
10 Cf. O Rebate da primeira quinzena de junho de 1926. Em 17 de Junho, o jornal alterou a sua interpretação dos acontecimentos, publicando a carta de Cunha Leal a Mendes Cabeçadas – começava ali a verdadeira ditadura, segundo se considerava no jornal
11 Vide António G G Ribeiro de Carvalho, Prelúdios duma Ditadura, Edição do Autor, Lisboa, 1957, p. 12
12 Neste artigo, a Constituição de 1911 previa que o exercício do cargo de Presidente da República, por motivo da sua vacatura, seria resolvido através de eleições de novo Presidente, em Congresso e, entretanto, pelo exercício da plenitude do Poder Executivo pelos Ministros, em regime provisório
13 Cf. Raúl Rego, História da República, Vol. V, p. 5
14 Cunha Leal conta nas suas Memórias (vol. III, pp. 25-26) todas as diligências que fez para libertar Mendes Cabeçadas e as conversas tidas com o Presidente
15 Vide “Fala o Almirante Cabeçadas”, in Oscar Paxeco, Os que arrancaram em 28 de Maio, pp. 58-63
16 Idem, ibidem, p. 66
17 Constitucionalistas como Marcelo Caetano e Jorge de Miranda, não incluem Mendes Cabeçadas na galeria dos Presidentes da República.
18 Desde muito cedo, a historiografia da República considera-o um dos seus Presidentes. Vide, a este propósito, a História de Portugal (Dir. de Damião Peres), Suplemento, Portucalense Editora, Porto, 1954; também Os Presidentes da República Portuguesa (Coord. António Costa Pinto), temas e debates, Lisboa, 2001
19 Vide António G G Ribeiro de Carvalho, op. cit., p. 17
20 Oscar Paxeco, “Fala o Almirante Cabeçadas”, in Os que arrancaram em 28 de Maio, p. 60
21 Idem, ibidem, p. 47
22 Além de Hipólito Raposo, constituíam o grupo redator Pequito Rebelo e Afonso Lucas, membros da Junta Central do Integralismo Lusitano. O Programa era da responsabilidade de Trindade Coelho, na altura diretor de O Século, e figura de confiança de Gomes da Costa. Cf. a este propósito José Manuel Alves Quintas, “O Integralismo Lusitano perante a institucionalização da “Salazarquia”, in História, nº 44, Ano XXIV (III Série), abril de 2002
23 Cf. A Revolução Nacional, 29 de junho de 1926
24 Cf. Cunha Leal, Eu, os Políticos e a Nação, op. cit., pp. 303-304
25 Cf. Oscar Paxeco, Os que arrancaram em 28 de Maio, op. cit., p. 67