Nunca umas eleições terão parecido tão inúteis como as legislativas antecipadas realizadas no Canadá, na passada 2ª feira, cujos resultados finais, conhecidos este sábado, foram quase idênticos aos das anteriores, efetuadas em 2019. Assim, se os liberais, do primeiro-ministro Justin Trudeau, conseguiram o maior número de lugares, apesar de, mais uma vez, terem recebido menos votos que os conservadores, ficaram muito longe da maioria absoluta por que aquele ansiava. Mas também os partidos da oposição falharam, no todo ou em parte, os seus objetivos. Ou seja, não houve vencedores, apenas alguns perdedores.
Um território imenso, mas pouco povoado
Ocupando grande parte da área setentrional da América do Norte, o Canadá é o segundo maior país do mundo, a seguir à Rússia, ocupando uma superfície de quase 10 milhões de Km2.
Tem apenas um único vizinho terrestre, os EUA, com quem faz fronteira a Sul e também a Noroeste, com o estado do Alaska. A Nordeste, possui uma fronteira marítima com a região autónoma dinamarquesa da Gronelândia e, a sul da Terra Nova, com o pequeno arquipélago francês de Saint Pierre e Miquelon.
Apesar da sua extensão, o país é pouco povoado, contando apenas com pouco mais de 38 milhões de habitantes, o que dá uma densidade populacional nacional inferior a 4 habitantes por Km2.
Este facto deve-se às difíceis condições climáticas, em especial das regiões árticas setentrionais, que apresentam um clima subpolar e polar, frio ou extremamente frio durante todo o ano. Igualmente frias são as Montanhas Rochosas, no Oeste. A costa atlântica, banhada pela corrente fria do Labrador, possui um clima continental frio, com invernos bastante frios e verões moderadamente quentes e húmidos. Por seu turno, as pradarias centrais apresentam um clima continental seco, com invernos muito frios e secos e verões relativamente quentes e com alguma humidade. A pequena faixa litoral do Pacífico apresenta um clima mais ameno, de tipo temperado marítimo.
É a Sul, junto à fronteira com os EUA, que as condições são mais favoráveis e, por isso, é aí que vive a maioria da população canadiana. A zona mais povoada é a que se situa junto ao Grandes Lagos e ao rio São Lourenço, uma importante via de comunicação que liga aqueles ao Atlântico. É nessa área que se situam as duas grandes metrópoles do Canadá (Toronto e Montréal) e respetivas áreas metropolitanas, bem como a capital política (Otawa). No extremo sul da costa do Pacífico, Vancouver é a outra grande metrópole do país.
Uma sociedade crescentemente multiétnica
Estamos em presença de um dos países mais ricos e prósperos do mundo, com um PIB por habitante, em paridade do poder de compra (PPC), superior a 50 mil dólares dos EUA.
Isso tende a atrair pessoas de todo o mundo, à procura de melhores condições de vida, a que se juntam refugiados que fogem das guerras e das perseguições políticas e religiosas nos seus países. Por isso, a sociedade canadiana, antes dominada pelos brancos de origem europeia, é hoje, crescentemente, multiétnica.
De acordo com os censos de 2016, aqueles constituíam 72,5% da população, seguidos dos asiáticos (18%), indígenas (5%), afrocaribenhos (3%) e latino-americanos (1,5%).
Se considerarmos as chamadas minorias étnicas visíveis, onde não se incluem os indígenas, temos: indianos, paquistaneses e outros da Ásia do Sul (5,5%), chineses (5%), negros (3,5%), filipinos (2%), latino-americanos (1,5%), árabes (1,5%), vietnamitas, laocianos e outros do Sudeste Asiático (1%), iranianos, afegãos e outros da Ásia Central (0,5%), coreanos e japoneses (0,5%), outros (0,5%) e com dupla identidade (0,5%).
Do ponto de vista linguístico, 56,5% da população tem como língua materna o inglês, 21% o francês e 22,5% outra. Porém, 98% compreende uma das duas línguas oficiais, havendo 16,5% de pessoas bilingues, na sua maioria nas áreas fronteiriças entre o Québec e as províncias anglófonas ou em parte da Nova Brunschwig.
Se a administração federal é bilingue, ao nível das províncias a situação é diferente. Assim, oito têm, formal ou informalmente, o inglês como idioma oficial, o Québec tem o francês e a Nova Brunschwig ambas. Nos três territórios árticos, ambas as línguas são oficiais, mas acompanhadas pelo “inuit” em Nunavut e pelas línguas das Primeiras Nações nos do Noroeste.
Quanto à religião, 67,5% dos canadianos são cristãos (38% católicos, 27,5% protestantes e 2% ortodoxos), 24% declaram-se ateus ou agnósticos, 3% são muçulmanos, 1,5% hindus, 1,5% sikhs, 1% budistas, 1% judeus e 0,5% outras.
Um processo constitucional evolutivo
Do ponto de vista constitucional, o Canadá possui uma situação híbrida entre a do Reino Unido (que não possui um texto escrito, mas um conjunto de leis fundamentais, que vão estabelecendo o respetivo ordenamento constitucional) e a dos EUA (que possuem uma Constituição escrita). No caso canadiano, desde 1982 que as sucessivas leis fundamentais foram compiladas e vertidas num texto constitucional, que passou a ser a Constituição do país.
A atual nação canadiana remonta ao tratado de Paris, em 1763, que pôs fim à guerra dos sete anos, opondo o Reino Unido à França. Derrotados, os franceses cederam aos britânicos as suas possessões na América do Norte, até aí designadas por Nova França, correspondentes, “grosso modo”, às atuais províncias de Ontário (onde já existiam bastantes colonos ingleses e escoceses) e Québec.
Em 1774, a pressão dos quebequenses leva o Parlamento britânico a aprovar legislação que permite à província manter o uso da língua francesa, a religião católica e o ordenamento jurídico francês.
Dois anos depois, inicia-se a guerra da independência dos EUA. Apesar dos apelos, tanto dos rebeldes, como dos fiéis à Coroa, a maioria dos canadianos não participa na rebelião, mas também não hostiliza os separatistas.
Para prevenir um eventual movimento revolucionário, os britânicos outorgam ao Canadá, em 1791, o primeiro ordenamento constitucional de raiz liberal, com a criação de instituições parlamentares. Contudo, dividem a sua possessão em duas províncias: o Alto e o Baixa Canadá, correspondentes, respetivamente, aos atuais Ontário e Québec.
Em 1812, rebenta a guerra entre os EUA e o Reino Unido, devido à luta pelo controlo do comércio marítimo no Atlântico Noroeste. Os primeiros atacam e procuram anexar as províncias canadianas. Contudo, os britânicos contra-atacam e a sua artilharia naval bombardeia a Casa Branca. Derrotados, os estadunidenses assinam, em 1815, um tratado de paz onde reconhecem a soberania britânica sobre as suas possessões na zona setentrional do continente norte-americano.
Em 1840, a crise económica leva o Parlamento britânico a aprovar o Ato de União, que reúne as duas províncias canadianas numa única, denominada província do Canadá, com um parlamento único, com igual número de representantes de cada uma das duas entidades agora unidas.
Entretanto, começa a surgir o desejo de unir todas as possessões britânicas da região numa única entidade política. Em 1867, o Canadá e as colónias britânicas da Nova Brunsvique e da Nova Escócia formam a Confederação Canadiana, regulada pelo Ato da América do Norte Britânica, que é considerado, atualmente, como o primeiro texto constitucional do país. Logo de seguida, a província do Canadá volta a dividir-se em duas: o Ontário, antigo Alto Canadá, predominantemente anglófono, e o Québec, antes Baixo Canadá, maioritariamente francófono.
Em 1870, o Canadá adquire a chamada Terra de Rupert, gerida pela companhia da Baía de Hudson, um monopólio privado que detinha, de facto, a posse dos Territórios do Noroeste. A zona de Winnipeg é desanexada daquela, passando a ser a província de Manitoba. No ano seguinte, a Columbia Britânica, situada junto ao Pacífico, opta por aderir à confederação canadiana, solução que leva a melhor sobre a anexação aos EUA ou a independência. E, em 1873, a pequena Ilha do Príncipe Eduardo, na região atlântica, a norte da península da Nova Escócia, toma a mesma decisão. Por seu turno, a Terra Nova não adere, preferindo manter-se como colónia britânica.
Entretanto, a descoberta de algumas riquezas minerais, em especial o ouro e, mais tarde, o petróleo, leva à expansão dos colonos para o Oeste, a exemplo do que sucedeu nos EUA, levando ao deslocamento forçado das tribos indígenas que aí viviam. Embora a brutalidade da conquista fosse menor que no seu vizinho do Sul, o fim abrupto do seu modo de vida, assente na caça dos bisontes, cuja população quase se extinguiu, e a sua ida para as terras mais remotas do Norte ou para as reservas levou muitos a morrer de fome, sede, frio e doenças várias.
Em 1881, o Reino Unido cede ao Canadá o arquipélago do Ártico, que passa a integrar os Territórios do Noroeste. Em 1898, estes sofrem uma primeira amputação, ao ser criado, no extremo Noroeste, o território do Yukon, zona montanhosa, que foi alvo, então, de uma grande corrida ao ouro.
Entretanto, os colonos das pradarias exigiam a criação de novas províncias, o que acabará por suceder em 1905, com a criação de Alberta e de Saskatchewan.
Em 1912, Manitoba, Ontário e Québec expandem-se para Norte, chegando às costas meridional (os dois primeiros) e oriental (o terceiro) da baía de Hudson. Com isto, os limites das províncias tornam-se muito próximos dos atuais.
Em 1931, após negociações com as autoridades dos seus Domínios (ou seja, as colónias habitadas por uma população maioritariamente branca ou onde esta tinha um peso significativo), o Parlamento britânico aprova o Estatuto de Westminster, que garante a independência daqueles, embora mantendo o/a monarca britânico/a como chefe de Estado, a Câmara dos Lordes como última instância judicial e tendo o parlamento do Reino Unido a última palavra em matéria de revisão constitucional.
Em 1949, a Terra Nova (que, por decisão judicial britânica de 1927, passou a incluir o Nordeste da península do Labrador, apesar dos protestos do Québec) tornou-se a décima província do Canadá.
Entretanto, os anos 60 são marcados pela chamada “revolução tranquila”. É um período de grande crescimento económico e de desenvolvimento social, com a criação de um Estado-providência inspirado nos países nórdicos, que muito contribuiu para diminuir as desigualdades sociais, naquilo que passou a constituir uma marca distintiva face ao seu vizinho estadunidense.
É, contudo, no Québec, que ela mais se irá fazer sentir. Até então uma sociedade bastante conservadora, marcada pela forte influência da Igreja Católica, ensaia, com sucesso, um processo de secularização das instituições, que vai a par com a progressiva laicização da sua sociedade.
Ao mesmo tempo, o descontentamento dos francófonos face ao crescente domínio político, económico e cultural anglo-saxónico levou ao aparecimento de um forte movimento separatista na província. Este é insuflado pela declaração do general De Gaulle, então presidente francês, que, durante a visita à Expo de Montréal, em 1967, solta o grito “Viva o Québec livre!”. O Partido Quebequense (PQ) ganha crescente popularidade e a ala marxista do independentismo cria um movimento de guerrilha urbana, a Frente de Libertação do Québec (FLQ), responsável por vários atentados e raptos de políticos federalistas.
Em 1976, o PQ vence as eleições provinciais e torna-se governo na província. Cumprindo a sua promessa eleitoral, organiza, em 1980, um referendo à independência do Québec, mas sai derrotado, com o “não” a obter cerca de 60% dos sufrágios, contra apenas 40% do “sim”.
1982 é uma data marcante, pois marca a aprovação, pelo Parlamento britânico, do corte dos últimos laços constitucionais entre o Canadá e o Reino Unido, mantendo-se apenas a monarca britânica como chefe de Estado com funções cerimoniais. Nasce, então, a Constituição do Canadá, através da compilação dos antigos atos constitucionais. Naquele, o Ato da América do Norte Britânica, que é a base do nascimento da atual nação canadiana, é renomeado Ato Constitucional de 1867. A nova lei fundamental inclui uma nova Carta Canadiana dos Direitos e das Liberdades, que substitui o Bill of Rights britânico e, entre outras disposições, reconhece os direitos políticos, culturais e espirituais dos três grandes grupos de povos indígenas: as chamadas Primeiras Nações (antes, chamados “índios”), os “inuit” do Ártico (antigamente designados por “esquimós”) e os” Métis”, mestiços resultantes de cruzamentos entre indígenas e colonos europeus, em especial franceses.
A nova Constituição foi aprovada por todas as províncias, com exceção do Québec, cuja assembleia provincial a rejeitou por unanimidade. Essa rejeição deveu-se ao facto de ela poder ser revista sem o acordo de todas as entidades provinciais (bastam 2/3), pelo que não dava aos quebequenses o poder de bloquear uma revisão constitucional que lhes desagradasse. Apesar dessa oposição, o texto entrou em vigor em todo o país.
No ano seguinte, o primeiro-ministro liberal Pierre Trudeau, pai do atual, defensor de uma sociedade multiétnica e bilingue, adotou uma lei que consagrava o bilinguismo, dando ao francês os mesmos direitos do inglês a nível da administração federal.
Contudo, o conflito constitucional com o Québec mantinha-se e duas tentativas de o superar falharam.
Assim, o acordo do lago Meeck, em 1989, obtido após uma negociação entre os governos das províncias e territórios, que garantia uma maior descentralização, foi abandonado após críticas de falta de participação popular e de ter falhado a aprovação em Manitoba e na Terra Nova, sendo ainda provável que fosse, igualmente, rejeitado por Nova Brunswick.
Em 1992, foi obtido o acordo de Charlottetown, que pressupunha uma verdadeira revisão constitucional, com o novo texto da Constituição a reconhecer o Québec como sociedade distinta, a autodeterminação das comunidades indígenas, os direitos das minorias étnicas e linguísticas, a igualdade de género, explicitação das competências entre as províncias e a federação e a alteração da composição do Senado, estabelecendo a paridade na representação das províncias e a possibilidade de eleição direta dos senadores, mas garantindo o direito de veto ao Québec em matérias concernentes à língua francesa.
Contudo, tal como sucede frequentemente, o compromisso obtido não agradou “nem a gregos nem a troianos”, tendo suscitado a oposição, tanto dos independentistas quebequenses como dos radicais anglófonos, em especial das provinciais ocidentais. Em resultado disso, o projeto foi rejeitado num referendo nacional, com 55% de votos contrários, contra 45% favoráveis.
A partir daí, o apoio ao separatismo no Québec aumentou e, em 1995, falhou por pouco o seu propósito em novo referendo à independência, quando o “sim” atingiu os 49,5% dos votos, contra 50,5% do “não”.
A derrota quebrou o ânimo dos independentistas, que, em 1999, viram os seus propósitos dificultados por um acórdão do Supremo Tribunal canadiano, que considerou não terem as províncias, enquanto entidades federadas, o direito unilateral de secessão. Apesar disso, os juízes foram salomónicos e dispuseram que, havendo uma maioria clara numa consulta popular sobre a independência de um dado território, o Parlamento federal deverá apreciar o seu resultado de boa fé.
A questão que se coloca é o que se entende por “maioria clara”. Em resposta, a assembleia provincial do Québec interpretou a expressão como uma maioria de 50%+1 dos votos válidos, posição que, no entanto, só a ela vincula.
Entretanto, nesse mesmo ano, a parte centro e leste dos Territórios do Noroeste, incluindo a esmagadora maioria do arquipélago do Ártico, onde a escassa população é maioritariamente “inuit”, foi desanexada daquele, originando o novo território de Nunavut.
Em 2001 e 2003, as últimas emendas constitucionais alteraram a designação da província da Terra Nova para Terra Nova e Labrador e do território do Yukon unicamente para Yukon, respetivamente.
Uma monarquia parlamentar federal
O Canadá é uma monarquia parlamentar, tendo como chefe de Estado o/a monarca britânico/a, aí representada por um/a governador/a-geral. O seu papel é, essencialmente, cerimonial e o seu representante apenas tem algum papel mais interventivo em caso de crise política e/ou governativo.
A nível nacional, o poder executivo, assenta, assim, no governo federal, liderado por um primeiro-ministro.
Por seu turno, o Parlamento é bicameral, sendo constituído pelo Senado e pela Câmara dos Comuns.
O Senado é a câmara alta, tendo sido inspirado na Câmara dos Lordes britânica, mas adaptado à ausência de uma aristocracia hereditária e ao modelo federal do país. Os senadores não são eleitos, sendo nomeados, formalmente, pelo governador-geral, sob proposta do primeiro-ministro. Têm de ser maiores de 30 anos e são obrigados a retirar-se aos 75. É, ainda, necessário, residir no território que representam há, pelo menos, dois anos, possuir nele propriedade e não estar endividados.
De acordo com o Ato Constitucional de 1867, a representação teria por base quatro grandes regiões, cada uma delas com 24 elementos (Províncias marítimas, Québec, Ontário e Províncias do Oeste). Posteriormente, a adesão da Terra Nova trouxe mais seis senadores, a que se juntaram, posteriormente, um para os três territórios, num total de 105. Uma disposição constitucional permite a nomeação temporária de até oito senadores, de forma a que o primeiro-ministro possa ultrapassar algum impasse legislativo, algo que só sucedeu em 1990.
As províncias de cada um desses agrupamentos dividem os seus representantes entre si (seis para as quatro do Oeste, enquanto que, nas marítimas, a Nova Escócia e a Nova Brunswick possuem dez e a Ilha do Príncipe Eduardo quatro). Esta distribuição está totalmente desatualizada, levando à sobrerrepresentação das atlânticas e à subrepresentação de Ontário e das duas maiores ocidentais (Alberta e Colúmbia Britânica), o que tem motivado uma luta destas últimas para rever a composição da câmara.
A Câmara dos Comuns é a mais importante assembleia parlamentar, sendo dela que depende a composição do governo. É constituída, atualmente, por 338 membros, eleitos em círculos uninominais, segundo o sistema maioritário a uma volta, para um mandato de quatro anos. A Constituição admite que aquele possa ter até cinco anos de duração, mas, em 2007, foi aprovada uma lei que estabelece o quadriénio como limite, devendo as eleições realizar-se na terceira 2ª feira do mês de outubro. Porém, há sempre a possibilidade de eleições antecipadas, quer por iniciativa do primeiro-ministro, que requer, no entanto, a aprovação do governador-geral, quer pela rejeição de uma moção de confiança ou pela aprovação de uma moção de censura ao executivo.
A composição da câmara baixa também suscita alguma controvérsia, já que não há uma igualdade total entre as províncias. Assim, embora a Constituição estipule que a representação deve ser proporcional à população de cada província, existe uma disposição constitucional que veda a hipótese de qualquer uma ter menos representantes nos Comuns que no Senado. Além do mais, posteriormente, foi aprovada uma lei que não permite que uma província tenha um número de deputados inferior aos que ela detinha em 1985. Mais uma vez, as províncias atlânticas a ser beneficiadas face às ocidentais. A partir de 2001, a lei da representação justa levou ao aumento do número de parlamentares de 308 para 338, sendo atribuídos mais 15 ao Ontário, seis a Alberta, seis à Colúmbia Britânica e três ao Québec, visando minorar essa desigualdade, algo que foi parcialmente conseguido.
Teoricamente, as duas câmaras têm poderes semelhantes, sendo ambas dotadas de iniciativa legislativa e a legislação de ter a aprovação das duas para entrar em vigor. Excetuam-se a que se refere à criação de impostos e aquisição ou alienação de bens federais, que são reservadas à Câmara dos Comuns. Contudo, na prática, é sempre esta última que inicia o processo legislativo e é muito raro o Senado bloquear uma lei proposta pela câmara baixa, limitando-se, no máximo, a introduzir algumas emendas.
As 10 províncias e os três territórios têm à sua frente um vice-governador-geral, representante do governador-geral. São dirigidas por um governo provincial, dirigido por um “premier”, sendo o poder legislativo exercido por uma assembleia legislativa unicameral diretamente eleita. No início, os Parlamentos regionais eram, igualmente, bicamerais, mas as suas câmaras altas foram sendo progressivamente extintas e hoje já não existe nenhuma.
As províncias possuem bastante autonomia, podendo, formalmente, legislar nas mesmas matérias que a federação. Contudo, o Ato Constitucional de 1867 reserva para esta as questões da “paz, ordem e boa governação”, uma formulação demasiado ambígua e que se prestava às mais diversas interpretações. O texto de 1982 procurou explicitar algumas competências que cabem exclusivamente à federação, embora seja frequente o Supremo Tribunal ter de pronunciar-se sobre questões de partilha de poderes entre a federação e as entidades federadas.
A diferença entre estas e os territórios é que os poderes destes últimos lhes são delegados pelo governo federal, podendo ser alterados por maioria simples do Parlamento, enquanto os daquelas gozam de proteção constitucional.
Apesar de tudo, as províncias canadianas são menos autónomas que os estados dos EUA. Por exemplo, embora elas possam criar tribunais, as penas a aplicar são competência exclusiva da federação, ao contrário que sucede no seu vizinho.
O contexto político
Após as eleições de 2019, onde, tal como agora, os liberais obtiveram o maior número de lugares, apesar de terem perdido no voto popular, Trudeau formou um governo minoritário, com apoios pontuais dos social-democratas ou dos separatistas quebequenses.
Em meados deste ano, pensou ter condições para obter uma maioria absoluta e procedeu à dissolução do Parlamento.
Análise dos resultados eleitorais
O Partido Liberal do Canadá (LPC), vulgarmente conhecido por Liberais, do primeiro-ministro Justin Trudeau, foi o segundo mais votado, obtendo 32,6% dos votos, mas foi o que obteve o maior número de lugares no Parlamento, elegendo 159 elementos. Relativamente ao último ato eleitoral, desceu ligeiramente na percentagem de votos (então, 33,1%), mas subiu no de eleitos (que fora de 157), numa daquelas distorções que caracterizam os sistemas maioritários.
Fundado em 1861, é o mais antigo partido do país e aquele que mais tempo ocupou o poder. Estamos em presença de um partido centrista, com pendor para o centro-esquerda, podendo considerar-se como social-liberal. Esta última vertente ideológica foi reforçada desde o acesso à liderança de Trudeau.
Assim, se, no plano económico, é liberal, mostra algumas preocupações sociais, sendo favorável ao serviço nacional de saúde universal, à segurança social pública e a um sistema de empréstimos públicos aos estudantes universitários. Defende, ainda, o multilinguismo e o multilateralismo e é favorável a um sistema redistributivo da riqueza entre as várias províncias. Nas questões de costumes, tem posições avançadas, sendo favorável a condições mais favoráveis para realizar a interrupção voluntária da gravidez em segurança, ao casamento LGBT, à eutanásia e à legalização da canábis. Apoia, também, a manutenção da legislação que limita o controle da posse de armas e rejeita combater a criminalidade com o aumento das penas. Defende a aplicação de uma taxa sobre o carbono, de forma a reduzir as emissões e fazer face às alterações climáticas.
Estamos em presença de uma formação interclassista, mas que tem maior apoio nas populações urbanas mais cultas e mais cosmopolitas.
Tem a sua maior implantação nas províncias atlânticas e no Ontário, como sucedeu nesta eleição. Assim, venceu nas seis províncias mais orientais (incluindo esta última e o Québec) e nos pouco povoados territórios de Yukon e do Noroeste. O seu melhor resultado foi obtido na Terra Nova e Labrador (47,8%), seguido da Ilha do Príncipe Eduardo (46,2%). No Ontário, conseguiu 39,3% e no Québec 33,6%, ligeiramente à frente dos independentistas.
Ao invés, é mais débil nas pradarias e no Oeste, não tendo ido além dos 10,6% em Saskatchewan e 15,5% em Alberta, Nestas e na Columbia Britânica foi apenas terceiro.
O Partido Conservador do Canadá (CPC), vulgarmente conhecido por Conservadores, liderado por Erin O’Toole, foi, mais uma vez, o mais votado, tendo obtido 33,7% dos sufrágios, mas apenas elegeu 119 deputados, ou seja, menos 40 que os liberais. Nas últimas eleições, com 34,3%, conseguira 121 eleitos. Ironicamente, foi a sua oposição que, num primeiro momento, inviabilizou a possibilidade de reforma eleitoral, que poderia instituir um sistema de representação proporcional.
Fundado, com essa designação, em 1867, participou em vários executivos. Em 1942, mudou o nome para Partido Progressista Conservador (PCP). Contudo, em 2003, recuperou a antiga designação ao fundir-se com a direitista Aliança Reformista-Conservadora Canadiana (CRCA).
É um partido de centro-direita, liberal-conservador, embora possua uma ala mais conservadora. O seu atual líder procurou movê-lo mais para o centro, ao contrário do seu antecessor, Andrew Scheer, que o havia posicionado mais para a direita. Do ponto de vista económico, é favorável ao neoliberalismo, com redução de impostos às empresas e aos mais ricos, bem como o equilíbrio orçamental. Defende o comércio livre, a propriedade privada irrestrita e opõe-se à taxa do carbono e às restrições à extração petrolífera. É favorável ao multiculturalismo e ao multilinguismo. O partido é favorável à descentralização, defendendo a atribuição de mais poderes às autoridades provinciais e à eleição direta do Senado. A nível externo, advoga uma relação mais estreita com os EUA e o mundo anglo-saxónico e um apoio claro a Israel. Defende um aumento das penas de prisão e uma maior liberalização da posse de armas. Nos costumes, é conservador, opondo-se à eutanásia e ao financiamento à interrupção voluntária da gravidez, embora entenda que esta é uma questão de consciência individual.
Em geral, a sua base de apoio das populações rurais, em especial dos grandes agricultores, dos mais ricos e, em geral, dos meios empresariais, com destaque para a indústria petrolífera.
Tem grande parte do seu apoio nas pradarias e no Oeste, onde obtém, geralmente maiorias esmagadoras. O seu melhor resultado ocorreu no Saskatchewan, onde chegou aos 59,0% e arrebatou os 14 lugares em disputa, e na província petrolífera de Alberta, onde conseguiu 55,3% e 30 dos 33 mandatos (em 2019, tinha ganho todos).
Ao contrário, é relativamente débil nas províncias atlânticas, apesar de ter aí recuperado algumas posições, e nos territórios árticos, habitados maioritariamente por populações indígenas. O seu pior resultado ocorreu nos territórios do Noroeste (14,4%) e no Nunavut (16,6%). Também tem dificuldades no Québec, não tendo passado dos 18,6%. No Ontário, conseguiu 34,9%, ligeiramente acima da média nacional.
O Bloco Quebequense (BQ), liderado por Yves-François Blanchet, é a terceira força política mais representada no Parlamento, com 33 lugares. Concorrendo apenas no Québec, obteve 32,2% dos votos na província, correspondentes a 7,7% a nível nacional. A sua votação manteve-se estável relativamente às últimas eleições gerais, onde conseguira 32,4% na província, o que se traduziu em 7,6% no país e a eleição de 32 deputados.
O partido foi fundado em 1991, por Lucien Bouchard, após o falhanço do acordo do Lago Meech, como formação provisória, de forma a conduzir o Québec à independência, dissolvendo-se logo que esta fosse obtida. Desde logo, atraiu liberais e conservadores quebequenses, adeptos da independência, bem como alguns líderes sindicais da província. Após a derrota no referendo de 1995, manteve a sua atividade, com o objetivo de defender os interesses dos quebequenses no Parlamento de Otawa e continuar a pugnar por um Québec independente.
Do ponto de vista ideológico, é social-liberal, embora possua uma fação mais conservadora. É republicano e laico e, por isso, muito aberto nos costumes: favorável ao aborto, ao casamento LGBT e à eutanásia. Tem preocupações ambientais, sendo favorável aos acordos internacionais de combate às alterações climáticas. Advoga, ainda, a abolição do Senado canadiano, que considera anacrónico e não democrático. A nível externo, opôs-se à guerra no Iraque e à participação de tropas canadianas no Afeganistão. Apesar disso, tem reservas relativamente ao multiculturalismo e é favorável ao banimento da burqa e do niqab em cerimónias públicas e nas eleições.
Tem maior apoio nas áreas rurais da província e em algumas zonas operárias. Ao invés, tem menor apoio nas maiores cidades, em especial entre as elites urbanas, em geral, apoiantes dos liberais.
O Novo Partido Democrático (NDP) liderado por Jagmeeth Singh, foi a terceira força mais votada, tendo obtido 17,8% dos votos, mas apenas a quarta mais representada, com 25 mandatos, uma pequena subida face a 2019, em que se ficara por 16,0% e 24 lugares.
O partido foi oficialmente criado em 1961, mas tem as suas origens em 1932, quando um grupo de pequenos agricultores, operários e militantes socialistas da pradaria criou a Federação das Comunidades Cooperativas (CCF), Em 1958, alguns membros da federação sindical Congresso do Trabalho do Canadá (CTC) criaram a comissão para o Novo Partido. Três anos depois, nascia o NDP. Ao contrário dos outros partidos, organizados numa base provincial, possui uma verdadeira estrutura nacional, à exceção do Québec, cujo ramo possui substancial autonomia.
A defesa dos direitos laborais e sindicais, o apoio à formação de cooperativas agrícolas e a taxação dos mais ricos são um aspeto que distingue o partido das restantes forças políticas parlamentares. É, ainda, defensor da expansão do serviço nacional de saúde universal e gratuito a área não cobertas por este, como a medicina dentária e da promoção de serviços públicos de qualidade para todas as pessoas. Apoia um Canadá multilingue e multicultural, afirmando-se como defensor dos vários povos indígenas e uma política externa mais independente dos EUA. Nas questões dos costumes e do ambiente, coincide, em geral, com as posições dos liberais.
Tem o seu maior apoio entre alguns setores operários e pequenos agricultores, bem como entre as minorias étnicas. O seu atual líder é de origem “sikh”, sendo o primeiro indo-canadiano a liderar um partido.
É esta última base de apoio que lhe garante o grande resultado no território ártico “inuit” de Nunavut, que venceu, com 47,9% dos votos, bem como nos do Noroeste, onde foi segundo, atrás dos liberais, com 32,3%. Foi, igualmente, a segunda força política, nas províncias ocidentais da Columbia Britânica, onde obteve 29,3%, graças à sua implantação na área metropolitana de Vancouver, a mais multiétnica do país, e, tendo nascido nas pradarias, nas de Saskatchewan (21,1%) e de Alberta (19,1%), embora tenha obtido melhor percentagem na de Manitoba (23,0%), onde foi terceiro. No Ontário, ficou nos 17,9%, praticamente na média nacional.
O seu “calcanhar de Aquiles” são as províncias ocidentais, onde o eleitorado progressista tende a escolher os liberais. Aí, ficou sem representação, tendo-se quedado pelos 9,2% na Ilha do Príncipe Eduardo, enquanto no Québec, onde não passou dos 9,8%, apenas conseguiu manter o lugar que já detinha.
Os Verdes (Green), liderados por Annamie Paul, foram os principais derrotados destas eleições, quedando por 2,3% dos votos e dois mandatos, quando, em 2019, tinham chegado aos 6,6% e eleito três representantes.
A sua plataforma política é a habitual dos partidos ecologistas: defesa intransigente do ambiente, com políticas de combate às alterações climáticas e apoio à transição energética, proteção da natureza e dos animais e prossecução de um desenvolvimento sustentável a todos os níveis. Acresce, ainda, a apologia da não violência, o apoio ao multiculturalismo, uma maior justiça social e medidas que favoreçam a democracia participativa.
A sua base de apoio provém da juventude urbana e de algumas minorias étnicas, embora o sistema maioritário limite muito o seu apoio eleitoral.
Após ter eleito a sua então líder, Elisabeth May, na ilha de Vancouver, o partido ganhou expressão nacional, tendo obtido o seu melhor resultado nas últimas eleições. Contudo, aquela demitiu-se da liderança após estas, alegando razões pessoais, tendo sido substituída pela atual líder, a primeira afrocanadiana a liderar um partido parlamentar. Porém, a sua liderança nunca foi consensual e as divisões internas começaram a aparecer e uma das suas deputadas, eleita em Nova Brunschwick, desertou para os liberais, em 2020. Por isso, o seu mau resultado não espanta.
A sua melhor votação ocorreu na pequena Ilha do Príncipe Eduardo (9,6%), seguido da Columbia Britânica, onde conseguiu 5,4%, aguentando o lugar de Elisabeth May e perdendo o outro. Valeu-lhe a inesperada conquista de um mandato no Ontário, onde se ficou pelos 2,2%, numa circunscrição onde o candidato liberal desistiu por alegações de assédio sexual. Nesta província, a sua líder foi apenas quarta no círculo de Toronto Central e sobem as vozes que pedem a sua demissão.
Dada a sua oposição aos combustíveis fósseis, é pouco popular nas pradarias, tendo apenas conseguido 0,9% em Alberta e 1,1% no Saskatchewan. No Québec, também não passou de 1,5%.
Por fim, o Partido Popular do Canadá (PPC), liderado por Maxime Barnier, obteve 5,0% dos sufrágios, uma forte subida face aos 1,6% de há dois anos, mas voltou a não conseguir obter representação parlamentar.
Fundado em 2018, pelo atual líder, um empresário quebequense, a partir de uma cisão nos conservadores, que acusa de serem demasiado moderados e politicamente corretos, é uma força política da direita populista, com uma fação libertária e outra da extrema-direita, que alguns apodam de versão canadiana do “trumpismo”.
Do ponto de vista económico e social, é adepto de um neoliberalismo radical, sendo favorável ao incremento da saúde, segurança social e educação privadas, defensor da expansão da exploração petrolífera e opositor à taxa sobre o carbono e ao controlo sanitário das explorações agropecuárias. É contrário ao multiculturalismo e defende políticas restritivas face à imigração. Defende penas de prisão mais elevadas para os crimes violentos e o terrorismo e apoia a liberalização da posse de armas. É negacionista das alterações climáticas, advogando a saída do Canadá dos acordos de Paris. Tem-se manifestado contra as restrições decorrentes da pandemia (confinamentos, certificados de vacinação e vacinação obrigatória).
O partido ganhou algum apoio entre os descontentes com o sistema político, em especial nas populações rurais mais conservadoras das pradarias.
Assim, os seus melhores resultados foram obtidos em Manitoba, onde chegou aos 7,6%, seguida por Alberta (7,3%) e Sasckatchewan (6,6%). O facto de ter maior apoio eleitoral em zonas onde os conservadores são extremamente dominantes priva-os de vencer circunscrições e eleger deputados, apesar de terem ficado em segundo lugar em algumas.
Nas províncias atlânticas tem menos força, não tendo ido além de 2,4% na Terra Nova e Labrador. Apesar de Barnier ser quebequense, o PPC não passou dos 2,7% na província e o seu líder foi apenas segundo no seu círculo.
Os restantes partidos e os candidatos independentes somaram apenas 0,9% e não elegeram ninguém, ao contrário de 2019, quando um independente fora eleito na Columbia Britânica.
A abstenção cifrou-se em 37,7%, um aumento face às últimas eleições, quando se quedara pelos 33,0%.
A situação pandémica e o cansaço do eleitorado, parte do qual não percebeu a necessidade destas eleições antecipadas, explicam este fenómeno.
Conclusão
Como se pode verificar, estas eleições pouco ou nada trouxeram de novo. E, na realidade, delas ninguém saiu vencedor.
Assim, Trudeau e os liberais queriam obter uma maioria absoluta e ficaram longe desse propósito. Porém, os seus opositores ainda têm razões para se sentir mais frustrados: os conservadores falharam o assalto ao poder e continuam a ser, em grande parte, o partido do Oeste e das pradarias, apesar dos esforços de O’Toole; o NDP pouco cresceu, apesar das esperanças que depositava para se tornar indispensável à governação, o mesmo sucedendo com o BQ, que nem sequer conseguiu ser o mais votado no Québec; os Verdes sofreram uma derrota clara, que só o segundo mandato atenuou, enquanto o PPC, apesar da subida, não chegou ao Parlamento e ficou com a responsabilidade de ter “roubado” mais de uma dezena de lugares aos conservadores.
Logo, nada irá mudar e Trudeau irá continuara a governar em minoria, com apoios alternados do NDP e do BQ. Veremos até quando!