Cabo Delgado: OMR desmente linha oficial do presidente Nyusi e apela a diálogo

10 de agosto 2021 - 19:07

Observatório do Meio Rural demonstra que, ao contrário do que tem vindo a alegar o governo moçambicano, secundado pelo ministro português Augusto Santos Silva, a insurgência é quase inteiramente moçambicana, os líderes são conhecidos e existem canais de comunicação.

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Foto de Sean Rajman, World Food Program.

No Destaque do Observatório do Meio Rural (OMR) publicado esta terça-feira, João Feijó alerta que a versão defendida pelo presidente moçambicano Filipe Nyusi, e repetida, “de forma acrítica”, pela imprensa, não permite “a compreensão das dinâmicas do conflito” e não abre “oportunidades para considerar a hipótese de diálogo”.

O coordenador do conselho técnico do OMR explica que o governo de Moçambique tem vindo a insistir na “mensagem de que o país enfrenta um inimigo ‘sem rosto’, não existindo canais de comunicação, pelo que se desconhecem as suas pretensões”.

Mariana Carneiro
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De acordo com o OMR, a “enfatização da ideia de ‘terrorismo internacional’ e de inimigo ‘sem rosto’ não tem permitido enfrentar uma realidade politicamente incómoda: a existência de milhares de jovens moçambicanos que se insurgem contra o Estado, acusando-o de responsável pela exclusão e injustiça, proclamando uma forma alternativa de organização social com base em preceitos religiosos radicais”.

“Ao invés de reconhecer a existência de problemas sociais internos, habilmente capitalizados pelos insurgentes para o seu esforço de guerrilha, promovendo reformas e abrindo canais de comunicação, o Governo de Moçambique vem privilegiando uma estratégia militar”, lamenta João Feijó.

Não descurando a necessidade de intervenção militar, com o objetivo de “garantir a ordem pública e a segurança das populações e respetivas propriedades”, o coordenador do conselho técnico do OMR aponta que “estão reunidas condições para se planear uma negociação com o grupo rebelde”.

Nesse sentido, é defendido no relatório que, complementarmente à via militar, a resolução do conflito poderá passar pelo reforço dos serviços de informação, por forma a melhor identificar os líderes e respetivas ligações externas, explorar dissidências internas, identificar redes de contacto e explorar canais de comunicação com os rebeldes.

Propõe-se ainda a realização de estratégias de contrainsurgência, promovendo canais de participação social, alargando o acesso à justiça, bem como a criação de modelos de desenvolvimento assentes em trabalho intensivo, apoiando atividades económicas geradoras de empregos e rendimentos, alargamento dos canais de participação e de acesso à justiça, diminuindo o potencial de recrutamento para grupos violentos.

Por fim, o OMR advoga que o caminho para a resolução do conflito está ainda na exploração de canais negociais com os insurgentes, capacitando e envolvendo líderes locais, possibilitando condições para ajuda humanitária de civis, libertação de pessoas raptadas, promovendo amnistias e mecanismos de acesso aos recursos naturais, valorizando a importância do Islão na sociedade moçambicana.

Quem são, o que querem e como comunicam os insurgentes?

No texto é revelado que a esmagadora maioria dos membros do grupo são moçambicanos, oriundos maioritariamente dos distritos de Mocímboa da Praia, Palma, Macomia e Quissanga, mas também do planalto de Mueda, do litoral de Nampula e da província do Niassa, entre outras regiões.

Ainda que nos ataques a Mocímboa da Praia e a Palma o grupo tenha recorrido a mercenários estrangeiros, grande parte oriundos da Tanzânia, os ataques a pequenas aldeias são realizados por grupos de dimensões reduzidas, compostos sobretudo por cidadãos moçambicanos.

Existindo um comando central que coordena ataques, o grupo conta, por outro lado, com várias chefias intermédias, com poderes diversos e com relativa autonomia, permitindo alguma iniciativa.

O OMR avança ainda que, com exceção de algumas comunicações pela AMAQ - agência oficial do Estado Islâmico, o grupo não aposta na comunicação formal com o exterior, e que as suas reivindicações são transmitidas, essencialmente, em pequenas palestras após os ataques, em sessões de doutrinação com indivíduos capturados, mas também através de mensagens e pequenos vídeos que circulam pelas redes sociais.

O grupo reclama a prática de um Islão fundamentalista. No entanto, não tem uma elaboração teológica sofisticada ou uma ideologia política bem definida. É adotado um discurso anti-governo, em que se culpam as políticas do governo de Moçambique pela exclusão social e pela injustiça que grassam no país, com especial incidência em Cabo Delgado.

“Problemas como o desemprego, a pobreza e desigualdades, a corrupção generalizada, a injustiça social ou a exclusão política, são considerados consequências da democracia. A democracia é apresentada, literalmente, como um sistema que permite que os ricos se tornem mais ricos à custa dos pobres. De acordo com o grupo, a solução para o caos social reside no derrube do Governo e na adesão áquilo que se poderia designar de Sharia (Lei islâmica)”, escreve o OMR.

João Feijó afirma que existem canais de comunicação entre o grupo dos machababosi a partir das áreas por si ocupadas, quer com a população deslocada, quer com funcionários do Estado moçambicano. Os insurgentes têm vindo, inclusive, a ganhar dinheiro com os sequestros, especialmente de estrangeiros. Depois de Palma, as negociações aconteceram, o dinheiro foi pago e as pessoas foram libertadas. Os pagamentos foram coordenados com altos funcionários do Ministério do Interior e do SISE - Serviço de Informações e Segurança do Estado.

Na Assembleia da República, o ministro português Augusto Santos Silva repudiou veementemente o Bloco e foi perentório: “É falso que haja grupos de insurgentes entre a população civil”. Ora, João Feijó demonstra exatamente o contrário: “Como em qualquer guerra de guerrilha, a interação entre os machababos e a restante população é intensa, ainda que em profundo segredo”.

Conhecer os insurgentes pelo nome

A identidade de Bonomade Machude Omar já tinha sido revelada pelo secretário de Estado dos Estados Unidos, Anthony Blinken, a 6 de agosto. Blinken explicou que Omar “lidera os Departamentos de Assuntos Militares e Externos do ISIS-Moçambique e atua como comandante sénior e coordenador principal de todos os ataques realizados pelo grupo no norte de Moçambique, bem como o facilitador principal e canal de comunicação para o grupo”. O secretário de Estado norte-americano avançou ainda que "Omar também liderou o ataque ao Hotel Amarula em Palma” e “foi responsável por ataques na Província de Cabo Delgado, Moçambique, e na Região de Mtwara, na Tanzânia".

João Feijó deixa a sua biografia, relatando que Omar nasceu em Palma e, aos 5 anos, ficou órfão de pai. A família viajou para Mocímboa da Praia e a mãe juntou-se com outro homem, localmente conhecido por Mze Tchidi. O padrasto introduziu Omar no Islão, que foi estudando e aperfeiçoando. Finalizou a 10ª classe na Escola Secundária Januário Pedro em Mocímboa da Praia e, de acordo com antigos professores, era um jovem calmo, bom aluno e bom jogador de futebol. Depois de atingir a maioridade, cumpriu o serviço militar na marinha em Pemba, findo o qual residiu no internato do African Muslim, finalizando a 12ª classe. Torna-se um elemento carismático junto de outros jovens, conhecido pelo seu sentido de justiça e de proteção dos mais novos. Um dos seus passatempos era jogar futebol. Após ter trabalhado num mercado em Pemba, viajou para a Tanzânia e África do Sul. Regressou a Mocímboa da Praia onde dinamizou uma mesquita e uma barraca de venda de quinquilharias, adquiridas em mercados tanzanianos ou na cidade de Pemba. Depois de participar no ataque a Mocímboa da Praia em 2017, mudou-se para o mato, onde se tornou conhecido como "Rei da Floresta".

Na publicação encontramos ainda referências e informações sobre Mustafa, próximo de Omar, que nasceu em Mocímboa da Praia e jogou no clube de futebol local de Palma, e sobre Maulana Ali Cassimo. Comandante sénior e agrónomo, este último nasceu em Lichinga e trabalhou para a Mozambique Leaf Tobacco em Tete e em Cuamba. Entre 2014 e 2017 foi técnico de Extensão Agrária no SDAE de Mecula. Ganhou um prémio provincial pelo seu envolvimento e dedicação na sua área de extensão e é descrito como carismático e com muita aceitação junto dos produtores. Por diversa vezes Maulana repudiou a atitude das autoridades para com os garimpeiros em Mariri, na localidade de Mbamba, e caçadores furtivos na reserva do Niassa. O OMR sublinha que os colegas destacam a veemência com que criticava a extorsão de bens e detenção de jovens garimpeiros, justificando que a agricultura não constitui uma atividade rentável e que os jovens não dispunham de outras alternativas.

João Feijó escreve também sobre Rosa Cassamo. Nascida em Cabo Delgado, foi chefe de logística em Macomia e hoje tem um papel importante na mobilização de várias mulheres do seu povoado, para ingressassem na insurgência.

O coordenador do conselho técnico do OMR explica que o Destaque Rural nº 130 resulta de informação recolhida a partir de 32 entrevistas a indivíduos raptados (a esmagadora maioria mulheres), mas também a antigos vizinhos, professores, superiores hierárquicos e colegas das pessoas analisadas. Grande parte dos entrevistados conviveu com os indivíduos em causa antes do processo de radicalização ou durante o seu cativeiro, pelo que as informações fornecidas permitem traçar perfis biográficos e características comportamentais dos líderes do grupo rebelde.

iNome atribuído localmente aos insurgentes.