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Cabo Delgado: Santos Silva engoliu a cassete de Maputo

Augusto Santos Silva afirmou que não podia deixar passar em claro as declarações do Bloco sobre Cabo Delgado. O que não podemos deixar passar, senhor ministro, é os interesses económicos se sobreporem aos direitos humanos e a comunidade internacional continuar a assobiar para o lado.

Na semana passada, em audição na Assembleia da República, a deputada do Bloco Alexandra Vieira questionou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, sobre a situação em Cabo Delgado, Moçambique.

Alexandra Vieira alertou para as limitações do foco exclusivo numa intervenção armada contra o terrorismo islâmico, defendendo que a mesma não responde à real dimensão do problema. Realçando que o conflito extravasa os contornos multireligiosos e multi-étnicos, a deputada apontou a crescente complexidade da situação. E fez ainda referência às dificuldades económicas que as populações enfrentam, à ausência do Estado Social na província, à delapidação dos recursos naturais, fatores que alimentam o elevado recrutamento interno por parte dos insurgentes entre a população local.

O ministro prontamente se insurgiu contra estas declarações, que considerou “não poder deixar passar em claro”. De acordo com Augusto Santos Silva, a questão não levanta quaisquer dúvidas: estamos perante “um bando de pessoas que sabemos constituírem uma tentativa de penetração e contaminação de toda a África Austral pela lógica fundamentalista, islamista, ligada ao chamado Estado Islâmico”. Portanto, para o governante, não está em causa, de forma alguma, o descontentamento e oposição face à ação do governo moçambicano e à delapidação dos recursos naturais em Cabo Delgado.

Augusto Santos Silva foi perentório: “É falso que haja grupos de insurgentes entre a população civil. É um insulto aos movimentos de libertação das antigas colónias portuguesas, que, esses sim, tinham enraizamento na população civil, que eram protegidos pela população civil, sugerir que em Cabo Delgado agora o que há é oposição, que conta com o apoio da população civil e que se opõe a um governo opressor ou outras designações”. E acrescentou que está devidamente informado, mantendo-se em estreito contacto com o presidente moçambicano Filipe Nyusi.

Senhor ministro, não creio que seja entre as paredes do escritório de Nyusi que melhor se pode inteirar sobre todos os meandros deste conflito.

O governo e o próprio Partido Socialista mantêm boas relações com o governo moçambicano e questionam, à partida, qualquer informação que o Bloco de Esquerda apresente, por mais bem fundamentada que seja. Mas, senhor ministro, ouça o que têm a dizer as populações, as organizações, os investigadores e ativistas que estão no terreno.

Pode começar com a análise pertinente de um dos mais conceituados investigadores em Moçambique, João Feijó, coordenador técnico do Observatório do Ambiente Rural (OMR), sobre o discurso do presidente Filipe Nyusi à nação, “lido a partir de teleponto e sem direito a perguntas”, no passado domingo.

João Feijó explica as debilidades deste comunicado, em que não foi abordada “a complexidade do problema, nomeadamente a capacidade de mobilização e capitalização, por parte dos grupos violentos, do descontentamento local em relação ao Estado”. O representante do OMR lembra que “inúmeros relatórios de pesquisa vêm apresentando evidências de fenómenos de exclusão social num cenário de penetração agressiva do capital, onde situações de pobreza extrema coexistem com uma emergente sociedade de consumo”.

Aproveite para se inteirar das preocupações levantadas pela intervenção militar da tropa ruandesa, liderada pelo temível Major General Innocent Kabandana, conhecido por “exterminar opositores de Kagame”, e o recurso a empresas mercenárias.

Para um conhecimento mais detalhado da situação no terreno, tem ainda disponíveis vários estudos do Observatório do Mundo Rural, nomeadamente sobre a caracterização e organização social dos insurgentes e sobre as origens do conflito.

O fundador e diretor do Centro de Integridade Pública, Edson Cortez, também explica o elevado grau de recrutamento interno, apontando que “a pobreza e falta de oportunidades que se sentem na região norte podem ter funcionado como catalisador para que jovens fossem aliciados e se juntassem a estes grupos”.

O alerta do diretor Instituto de Estudos Sociais e Económicos de Moçambique vai exatamente nesse sentido: O Al Shabaad aproveita-se “de jovens em situação de desespero e sem perspetivas. Não se pode negar isso”, diz Sergio Chichava.

Mas o senhor ministro nega.

O briefing do Centro para Democracia e Desenvolvimento (CCD) sobre como “Negociar com Extremistas Violentos em Cabo Delgado” também é de extrema utilidade. O CCD clarifica que a Organização Extremista Violenta (OEV) em Cabo Delgado está mais alinhada “com um grupo criminoso violento do que com um grupo terrorista/insurgente - particularmente dadas as suas fontes de influência e financiamento, e a falta de uma estratégia política, religiosa ou de base ideológica clara”. E enfatiza que, “se as negociações com a OEV em Cabo Delgado forem bem concebidas e geridas, serão um instrumento vital para reduzir a violência e os abusos de direitos humanos”.

Senhor ministro, não ignore as advertências dos Médicos Sem Fronteiras, que denunciam “restrições significativas” à resposta humanitária e apontam que “o atual enfoque no ‘terrorismo’ serve claramente os interesses políticos e económicos daqueles que intervêm em Moçambique”, à custa de “salvar vidas e aliviar o imenso sofrimento” do povo. Acompanhe as declarações do diretor executivo da Amnistia Internacional em Portugal, que assinala que a região é marcada pela pobreza extrema, apesar da riqueza dos recursos naturais atualmente explorados por multinacionais, e que “esta injustiça social, esta revolta, é terra fértil para fenómenos como o terrorismo”.

E não se esqueça de ler a carta que foi endereçada ao seu governo, em janeiro deste ano, por 30 organizações da sociedade civil, entre as quais Amnistia Internacional, Cáritas Portuguesa, CIDAC, Comissão Nacional Justiça e Paz, Conferência Episcopal Portuguesa e Conselho Português para os Refugiados, em que é deixado um apelo aos meios de comunicação social, pedindo que “informem sobre a crise humanitária de Cabo Delgado e investiguem as diferentes causas desta violência, evitando leituras parcelares” e é realçado “o papel da sociedade civil moçambicana e, em particular a de Cabo Delgado”, com quem trabalham.

Já agora, leia também a declaração dos bispos católicos de Moçambique, que sublinham que o “estado de coisas faz crescer e consolidar a perceção de que por de trás deste conflito há interesses de vária natureza e origem, nomeadamente de certos grupos de se apoderarem da nação e dos seus recursos”. E que afirmam que “é fácil aliciar pessoas, cheias de vida e de sonhos, mas sem perspetivas e que se sentem injustiçadas e vítimas de uma cultura de corrupção, a aderirem a propostas de uma nova ordem social imposta com a violência ou a seguir ilusões de fácil enriquecimento que conduzem à ruína”.

Ouça os alertas do bispo Alberto Arejula, presidente da Comissão Episcopal de Justiça e Paz, que lança “um olhar crítico aos projetos de gás e petróleo” e destaca que “a vitória militar não seria uma resposta à complexidade da situação de Cabo Delgado”. E tenha em consideração a opinião do ex-bispo de Pemba, Luiz Fernando Lisboa, que, questionado sobre o que está a acontecer em Cabo Delgado, foi perentório: “Recursos, multinacionais e guerras”.

Peço-lhe ainda que não silencie as vozes de Quitéria Guirengane, presidente da Rede de Mulheres Jovens Líderes, de jornalistas como Fátima Mimbire, de jovens ativistas como Cídia Chissungo, que há muito tentam contrariar a campanha de desinformação sobre a situação em Cabo Delgado. E a de quem nasceu, cresceu e trabalha em Pemba, como Abudo Gafuro Manana, membro fundador da Kuendeleya, uma associação inter-religiosa de jovens de Pemba que ajudou no desembarque e assistência aos primeiros deslocados que chegaram à capital da província; ou de Fidel Terenciano, professor e investigador da capital de Cabo Delgado, cujo estudo demonstra que a maioria dos jovens que saíram do garimpo ilegal de Montepuez aliaram-se aos grupos de insurgentes. Ambos traçam o retrato de uma província mergulhada na pobreza, onde os jovens não têm futuro, não têm oportunidades, onde não existem espaços de participação democrática e onde as populações, as organizações da sociedade civil, os investigadores não são tidos nem achados no que respeita à resolução dos seus próprios problemas.

Aconselho vivamente a que subscreva o boletim informativo Mozambique News Reports and Clippings, da responsabilidade do jornalista e investigador Joseph Hanlon, que foi repórter da BBC em Moçambique entre 1979 e 1985 e continua a escrever sobre o país. Ficará com um panorama bastante detalhado no que respeita aos interesses em jogo em Moçambique e às consequências da “cultura de impunidade” que se instalou no país. Recomendo-lhe também que dedique algum tempo a ler e ouvir as análises do historiador moçambicano Yussuf Adam, que aponta caminhos que não passam por responder ao terror com terror.

Se todo este manancial de informação não lhe despertar qualquer interesse, se optar ficar pelas letras gordas da imprensa, garanto-lhe que também encontra facilmente títulos muito sugestivos nos media: Moçambique: Polícia retém 15 pessoas por suspeita de recrutamento pelos insurgentes; Insurgência em Cabo Delgado: Como travar o recrutamento em Nampula?; Moçambique: padre e investigador alerta para recrutamento de crianças pelos combatentes; Insurgência em Cabo Delgado: Niassa continua local de recrutamento dos grupos terroristas; Guerra em Cabo Delgado e jovens sem futuro, entre as preocupações da IMBISA

De qualquer forma, senhor ministro, o que nós não podemos deixar passar é que um legítimo representante da República Portuguesa integre a campanha de desinformação sobre o que se passa em Cabo Delgado. Que procure silenciar as vozes da população, das organizações da sociedade civil, de investigadores e jornalistas.

O que não podemos deixar passar, senhor ministro, é que, mais uma vez, as relações diplomáticas e os interesses económicos e geoestratégicos se sobreponham aos direitos humanos. E que a comunidade internacional continue a assobiar para o lado.

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
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