No “Memorando Económico De País Para Moçambique - Reactivar O Crescimento Para Todos”, publicado na página de internet do Banco Mundial (BM) a 30 de maio, assinala-se que “o atual modelo de crescimento de Moçambique tem sido associado a um aumento das desigualdades e tem tido um impacto limitado na redução da pobreza”.
O BM acrescenta que “as pessoas que se encontram nos últimos 40 por cento da pirâmide de distribuição de rendimentos foram largamente deixadas para trás” e que “Moçambique encontra-se agora entre os países com mais desigualdades” da África Subsaariana. Acresce que, “nas últimas duas décadas, o crescimento tem vindo a tornar-se progressivamente menos inclusivo, uma vez que Moçambique tem vindo a depender cada vez mais de megaprojetos com utilização intensiva de capital e ligações limitadas ao resto da economia”.
De acordo com o BM, “a natureza não inclusiva do crescimento dos últimos anos suscita preocupações sobre a sua sustentabilidade futura”.
No documento é feita referência ao baixo nível de aprendizagem de Moçambique, “o que representa um obstáculo crítico para um crescimento mais rápido e mais inclusivo no país”, bem como à “baixa produtividade agrícola”, que aprisiona “os pobres rurais na sua condição de pobreza”. É igualmente mencionado que “o investimento em infraestruturas, nomeadamente no transporte rodoviário, tem sido desviado para áreas urbanas e corredores de exportação”.
O BM deixa um alerta no que respeita à ocorrência de inúmeras catástrofes naturais, com “danos e perdas maciças e permanentes à economia”, sublinhando a necessidade de implementar “uma estratégia que promova o crescimento verde e contribua para reduzir a probabilidade de ocorrência de calamidades”.
Não faltam no documento advertências sobre como a competitividade e produtividade em Moçambique ficam “ainda mais condicionadas pela fraca governação e pela corrupção”, que merece um capítulo inteiro no relatório. O BM deixa também nota sobre os desafios consideráveis que Moçambique enfrenta “no que diz respeito à garantia da igualdade de género no acesso a oportunidades e recursos”.
Cabo Delgado: “Entre as forças motrizes por detrás da insurreição está o sentimento de exclusão”
Contrariando as garantias dadas pelo presidente moçambicano Filipe Nyusi, e secundadas pelo então ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, no sentido de que a insurgência em Cabo Delgado não está relacionada com a exclusão política, económica e social sentida na província, o BM é perentório: “A natureza não inclusiva do modelo de crescimento tem alimentado a fragilidade que está por detrás da insurreição militar”.
No relatório lê-se que existe “um consenso generalizado de que entre as forças motrizes por detrás da insurreição está o sentimento de exclusão sistemática e insatisfações que foram capitalizados por grupos extremistas”.
O BM afirma, nomeadamente, que a juventude de Cabo Delgado é “marginalizada” e permanece “num estado de ‘espera’”. Os jovens, com “acesso limitado à educação, voz política, conhecimentos técnicos e recursos, ficam afastados dos benefícios do desenvolvimento”, escreve a instituição financeira internacional. “Na maioria das vezes, as opções gravitam entre aceitar empregos informais de baixa produtividade nos centros urbanos, optar por actividades ilícitas ou, neste caso, ser recrutados por grupos extremistas”, continua o BM.
Existe também um “sentido geográfico de divisão”, na medida em que “Moçambique herdou uma divisão colonial Sul-Norte, na qual a distribuição dos recursos públicos e a presença do Estado enviesada para o Sul, consolidou um sentimento de marginalização e exclusão nas regiões centro e norte, onde se situa Cabo Delgado”. Este sentimento de negligência “foi acentuado pelo recente reforço da presença do Estado na província, com uma abordagem rígida à formalização de atividades extrativas”, perseguindo quem tentava sobreviver desta forma.
Em causa está ainda a “exclusão sistemática da participação política e a violência contra grupos alternativos”, que “perpetuaram o uso da violência como forma de participação social”.
A “terapia de choque” do Banco Mundial e do FMI
As conclusões deste relatório não são propriamente surpreendentes para quem conhece a realidade de Cabo Delgado. O que é surpreendente é que o modelo criticado é exatamente o modelo introduzido pelo próprio Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
Tal como explicou o jornalista e investigador Joseph Hanlon numa entrevista ao Esquerda.net, no início da década de 1990, com o fim da Guerra Fria e da guerra por procuração em Moçambique, o Banco Mundial e o FMI impuseram a “terapia de choque”, que pretendia converter rapidamente os socialistas em capitalistas, criando oligarcas e corrupção massiva.
Aos novos capitalistas em Moçambique foram entregues empresas privatizadas, atribuídos empréstimos do Banco Mundial, sem que tivessem de se preocupar com o seu pagamento. E os seus negócios passaram a depender inteiramente de contratos com o Estado. Neste contexto, a construção do Moçambique capitalista passou por uma fusão do partido e do negócio.
Moçambique privatizou, literalmente, milhares de empresas, bem como os bancos comerciais estatais Banco Comercial de Moçambique e Banco Popular de Desenvolvimento. As empresas mais lucrativas foram entregues a multinacionais estrangeiras, e tudo o resto foi para a elite moçambicana. O próprio Banco Mundial insistiu que fossem atribuídos empréstimos aos moçambicanos que ficaram com as empresas privatizadas, sendo que este processo foi feito através de um fundo da instituição financeira internacional. Os bancos moçambicanos alertaram que estas empresas não iriam ser capazes de pagar o empréstimo, mas o BM deu-lhes instruções para, mesmo assim, lhes concederem os empréstimos.
Agora, perante as inegáveis consequências catastróficas do seu modelo, o BM, ainda que não fazendo expressamente um mea culpa sobre o resultado da sua política, vem, publicamente, destroçá-la.