O encerramento da Cornucópia “deixou a nu um problema estrutural dos apoios às artes, que não começa mas passa pelo sub-financiamento crónico e pela precarização exigida aos corpos artísticos que passaram a pagar menos e a despedir mais para cumprir o que lhes era exigido. Luís Miguel Cintra não falou da Cornucópia, falou de todas as estruturas que cumprem serviço público”.
Este excerto é de dezembro de 2016, escrito poucos dias depois de a Cornucópia cessar atividade. Castro Mendes estava há seis meses no Ministério e Miguel Honrado - ministro de facto - tinha já definido como o seu principal projeto político a reforma dos apoios às artes. Fê-lo de forma controversa, suspendendo o lançamento do novo ciclo de apoios plurianuais por um ano de forma a ganhar tempo para implementar um novo modelo. Mas o setor aceitou porque era preciso mudar o modelo.
O processo de consulta ao setor, agora utilizado como arma de defesa política seja do próprio modelo e seus resultados seja dos atrasos incompreensíveis no lançamento dos concursos, culminou num conjunto de reuniões regionais onde o Secretário de Estado e a Diretora Geral das Artes, Paula Varanda, apresentaram algumas das conclusões do estudo pedido ao CIES – um inquérito à la ciências sociais feito às estruturas no primeiro semestre de 2017. Não li nem ouvi um único agente cultural dizer que as reuniões foram momentos de esclarecimento sobre o que iria mudar objetivamente nos apoios às artes. Mas li críticas. Qualitativamente, não ouve nem debate nem esclarecimento no processo. Mas o discurso final de Miguel Honrado no encerramento das reuniões - cujo texto está disponível no site da DGArtes - é interessante, porque mostra os seus objetivos para o novo modelo, objetivos absolutamente defensáveis mas, sobretudo, objetivos que já tinha determinado antes do processo ser lançado.
"O anterior modelo era muitíssimo rígido e determinista. A lei impunha uma gestão de caráter estanque e repetitivo: quer nas características dos concursos, quer nas candidaturas, quer na distribuição geográfica, quer nas áreas e disciplinas artísticas, quer inclusive na avaliação ou no acompanhamento, todos os concursos e avisos simplesmente se replicavam há anos, muitas vezes desfasados das reais carências e dos objetivos dos agentes e do país. Este comportamento ensimesmado falha rotundamente à partida a sua relação de escuta e permanente análise da realidade: o setor, as entidades, os projetos são muito distintos entre si e trazem desafios e necessidades bem diversos, que carecem de respostas ajustadas”.
A razão porque não se ensinam truques novos a um cão velho não é pelo facto de ele ser velho e incapaz, é por saber que o truque não merece a sua atenção. Perdeu a pachorra. Por isso quando dizem que o novo modelo é flexível e o anterior era rígido, eu, que sou novo o suficiente para ter visto quatro concursos plurianuais a abrirem sempre com atrasos, suspeito que a flexibilidade extra não me trará mais previsibilidade. E quando me dizem ainda que o novo modelo não só vai manter o mesmo regime - onde companhias que trabalham há dezenas de anos podem acabar de um dia para o outro - como não vai ter reforço de verbas sequer ao nível de 2009, antecipo um desastre. Já ninguém tinha pachorra para este esquema de apoios, como se viu agora.
Miguel Honrado talvez quisesse mesmo que o novo modelo permitisse à tutela agir como coluna vertebral das estruturas independentes, com políticas ativas e não apenas como agência distribuidora de apoios. O problema é que nada mudou verdadeiramente na vida das companhias, que reclamavam antes de tudo aquilo que é óbvio: um modelo que lhes garantisse previsibilidade e sustentabilidade.
Ninguém está disponível para trabalhar com a tutela, muito menos para ser flexível, quando o modelo de avaliação permite que companhias e festivais com mais de quarenta anos de trabalho continuado possam ficar sem financiamento de um momento para o outro. Não é normal, por exemplo, o Teatro Experimental de Cascais ficar em risco de perder o financiamento, ou Coimbra e Évora ficarem sem uma única estrutura profissional. Tal como não é normal o Festival Internacional de Marionetas do Porto ser considerado, à partida, não elegível para financiamento. É aqui que a tutela de “proximidade” e “flexível" interviria em vez de se escudar nos resultados do júri que, por muito relevantes que sejam, não se substituem à política cultural.
Tudo o que aconteceu agora era absolutamente previsível há quase dois anos. E a única coisa que ainda ninguém compreendeu é como é que o Secretário de Estado mais bem preparado para o cargo desde os anos noventa se lançou numa reforma dos apoios às artes sem dinheiro sequer para financiar as candidaturas elegíveis. E não basta repetir que o aumento de 11 para 15 - e depois para 16,5, seguido de 17 e, agora, 19 milhões de euros - foram um aumento de quase cem por cento quando esse valor continua abaixo do valor atualizado de 2009 – cerca de 22 milhões -, um ano em que as estruturas artísticas já estavam em estagnação financeira há uma década. Isto não chega.
Não há pão?
A frase original a que Pedro Penim inadvertidamente se referiu no seu elogio sofrido do governo vem de Morais Sarmento, em 2013 – “Não há dinheiro. Qual é a parte desta frase que não entende?”. A tese de Penim foi a trincheira de defesa do Partido Socialista neste processo: não me deitem o modelo abaixo só por causa do dinheiro. O problema é que um modelo que define objetivos que não consegue alcançar, não é um modelo. É uma experiência falhada. E o governo não é um laboratório de experiências.
Os primeiros resultados dos apoios às artes deixavam Coimbra e Évora sem estruturas profissionais, e o Porto perdia dois festivais estruturantes para a cidade - o Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica e o Festival Internacional de Marionetas. Várias outras estruturas ficavam sem financiamento. Os mais aberrantes, os históricos Teatro Experimental de Cascais, que tem uma escola por onde passam sucessivas gerações de artistas, e o Teatro Experimental do Porto, uma estrutura que fez um percurso de renovação geracional bem sucedido.
A primeira defesa política face ao desastroso resultado dos concursos lançada pelo Secretário de Estado da Cultura dividiu-se em dois argumentos: este modelo foi feito pelo setor – uma meia mentira que uma comunicação social ausente de todo o processo permitiu que se repetisse sem contraditório (um processo de reuniões com dezenas de agentes culturais onde a tutela nunca revela o que significa exatamente o que estão a propor é um debate totalmente assimétrico); e, em segundo lugar, que as verbas para os apoios às artes aumentaram bem como o número de estruturas apoiadas e valor médio de apoio, o que é absolutamente verdade, mas omite o resto.
Se as verbas aumentaram face ao pior período de austeridade – um feito que entusiasma o governo – também é verdade que a extensão e ambição dos concursos de apoios às artes aumentaram significativamente. O discurso de Miguel Honrado era bastante ambicioso neste aspeto: o novo modelo “abre-se a novas áreas artísticas. Alarga e reestrutura domínios de atividade. Prevê a interpermutabilidade dos domínios de atividade. Promove e valoriza relações entre setores, entidades e territórios. Prevê o alargamento territorial nacional. Estimula estratégias de desenvolvimento local, individuais e em rede. Valoriza despesas e encargos de estrutura como condição para a sustentação de uma atividade continuada. Inclui financiamento a acolhimento de agentes. Apoia a circulação internacional. Apoia contrapartidas nacionais a projetos com fundos internacionais. Estimula a captação de linhas de apoios e outras formas de investimento. Incrementa estratégias de acompanhamento e agrega mais informação na avaliação. Valoriza boas práticas de gestão e de contratação”.
O que não se percebia neste discurso é que, daqui para a frente, por exemplo, as estruturas independentes iriam passar a concorrer com estruturas municipais que, por natureza, têm equipas maiores e mais capazes de apresentar candidaturas fortes. De súbito, temos os concursos de apoios plurianuais às artes com a missão de financiar estruturas totalmente diferentes e graus de exigência de financiamento díspares. Temos também candidaturas para estruturas por natureza distintas – estruturas independentes de criação e estruturas de programação, nas quais se incluem também os festivais e os espaços municipais – todas a concorrer para o mesmo bolo.