Os “milhões” da cultura: quanto vale o apoio às artes?

"Convenhamos: o financiamento público da criação artística pode causar incómodos a muita gente e a muita coisa, mas não é seguramente às contas públicas". Artigo de Pedro Rodrigues. 

21 de abril 2018 - 18:35
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Nos últimos anos, grande parte da discussão política em Portugal anda à volta dos “milhões de euros”: os milhares de milhões de euros da dívida pública, os milhares de milhões de euros do “resgate” da troika, os milhares de milhões de euros para salvar os bancos, os milhares de milhões de euros do défice.
Nas últimas semanas, a propósito dos apoios às artes, o Governo quis trazer a cultura para este jogo, atirando para o palco mediático números vários: os “milhões de euros” que investe, os “milhões de euros” que acrescentou ao período anterior, os “milhões de euros” com que reforçou o orçamento do actual concurso. Percebe-se a estratégia: num país em que o investimento público na cultura (e em particular na criação e na programação artísticas) ainda está longe de ser maioritariamente assumido, de facto, como uma obrigação do Estado, é apelativo deixar passar a ideia de que “já lhes damos muito dinheiro” para tentar travar os ímpetos de quem considera que é preciso reforçar os orçamentos. Numa época em que tantas vezes não lemos para além dos títulos, esta opção do Governo contribui para criar uma nuvem que esconde o que se passa na realidade e evita o aprofundamento da discussão. Entre “os milhões” dos bancos e “os milhões” da cultura quase chega a parecer que não há diferença, como se pode comprovar com uma rápida visita a caixas de comentários em jornais de referência ou espreitando os programas que dão voz à opinião pública, nas rádios e nas televisões.
Proponho dois exercícios simples, para ajudar a mostrar do que se está a falar.

O orçamento global para a cultura em 2018 (excluindo a RTP) ronda os 211 milhões de Euros*. Parece muito se não se disser mais nada. Parece menos se nos lembrarmos que isto inclui todos os serviços e instituições do Ministério da Cultura, incluindo por exemplo a Direcção-Geral do Património Cultural (41 milhões), o Fundo de Fomento Cultural (32 milhões), a OPART (21 milhões), o ICA (16 milhões) e os Teatros Nacionais D. Maria II e São João (11 milhões) – só nestas entidades é investido mais de metade e nenhuma delas está suficientemente financiada. Mas parece ainda menos se percebermos que os tais 211 milhões do Orçamento para a Cultura, representam 0,12% – zero vírgula doze por cento – do Orçamento Geral do Estado**.

Para que se perceba qual a parte destinada “aos artistas” – aquela que sempre capta a maior atenção mediática –, podemos realizar um segundo exercício, agora a partir da “Resposta Aberta à Cultura” – carta do Primeiro-Ministro António Costa divulgada na madrugada do passado dia 5 de abril, da qual retiro dois excertos:
 

“No quadriénio 2013-2016, a verba alocada foi 45,6 milhões de euros. No ciclo 2018-2021, agora a concurso, a verba inicial era de 64 milhões de euros. (…) No passado dia 20 de Março (...) tive oportunidade de anunciar (…) um reforço anual de 2 milhões de euros para o orçamento de apoio às artes. Com este reforço, o financiamento passou para 72,5 milhões de euros, ou seja, mais 59% face ao ciclo anterior.”
 
“(...) devemos aumentar a dotação orçamental. Foi isso que decidimos. (…) Este reforço de M€ 2,2 significa um total de investimento orçamental, este ano, de 19,2 milhões de euros o que ultrapassa, aliás, o referencial comparativo de M€ 18,5 do ano de 2009.”
António Costa quis mesmo mostrar-nos números e é preciso trabalhar diariamente na área ou fazer um esforço grande de concentração para não nos perdermos em tantos “milhões”. Registe-se em primeiro lugar o facto de este Governo ter passado a falar de valores globais para 4 anos, em vez de valores anuais – sempre causam mais impacto. Será uma boa estratégia de propaganda, mas enviesa qualquer análise séria que queiramos fazer. Esqueçamos por isso os 45,6, os 64 e os 72,5 milhões e concentremo-nos na verba que está actualmente anunciada para os apoios às estruturas de criação e programação artísticas em 2018: 19,2 milhões de Euros, depois de três “reforços”, anunciados no espaço de duas semanas, à medida que crescia a contestação popular.
Ainda assim parece muito, não é? Vejamos: este dinheiro vai financiar 183 estruturas. Dá uma média de 105 mil euros por estrutura, num concurso que se destina, segundo o seu próprio nome, a “apoios sustentados” a entidades que prestam um serviço público nas diferentes áreas artísticas.
Ainda assim parece muito, não é? Vejamos: se considerarmos que uma estrutura profissional de criação artística, por exemplo na área do teatro, tem de ter pelo menos, um/a director/a artístico/a, um/a produtor/a, um/a técnico/a e – vá, também não queiramos ser demasiado ambiciosos/as – três intérpretes, estaremos sempre a falar de uma equipa mínima de 6 pessoas. Estamos habituados a salários baixos, pelo que podemos contabilizar um salário médio de 870 euros (1,5 vezes o salário mínimo). Se contabilizarmos ordenado, subsídio de alimentação e TSU, isto representa um “encargo” por pessoa de 16 mil euros/ano. Ou seja: uma equipa de seis pessoas, com um vencimento bruto médio de 870 euros, “custa” 96 mil euros. Sobram, do financiamento do Estado, nove mil euros, para produzir os dois ou três espectáculos por ano a que a companhia fica obrigada. Eis o que o Governo de António Costa considera uma “estrutura sustentada”: uma equipa de 6 pessoas, cada uma a receber 870 Euros brutos por mês, capaz de produzir espectáculos cuja produção custe em média 3.600 Euros (nestes custos incluam por favor os direitos de autor/a, os honorários do/a encenador/a, do/a cenógrafo/a, do/a figurinista e de outros/as criadores/as, os honorários de intérpretes, técnicos e outros/as profissionais contratados/as pontualmente, a construção de cenário, adereços e figurinos, a divulgação, os seguros, os consumíveis técnicos, a logística, a comunicação e outras alíneas orçamentais a que vos poupo). Isto, claro, se a estrutura em causa não tiver encargos com o(s) espaço(s) em que trabalha.
 
Já parece menos, não é?
Mas não nos afastemos do valor de que António Costa tanto se orgulha: “um total de investimento orçamental, este ano, de 19,2 milhões de euros”. São 9% (nove por cento) do total do orçamento do Ministério da Cultura para 2018. Quanto é que este representa no total do Orçamento do Estado? Isso: 0,12%. Então: estes “milhões” que o Governo decidiu destinar “aos artistas” representam 0,01% (zero vírgula zero um por cento) do Orçamento do Geral do Estado.
Convenhamos: o financiamento público da criação artística pode causar incómodos a muita gente e a muita coisa, mas não é seguramente às contas públicas.
 

* Soma das despesas dos “Serviços Integrados” (327 milhões de Euros) com os “Serviços e Fundos Autónomos” (144 milhões de Euros), excluindo a despesa com a RTP (260 milhões de Euros) – mapas II e VII do OGE.

** Soma das despesas dos “Serviços Integrados” (130 mil milhões de Euros) com os “Serviços e Fundos Autónomos” (52 mil milhões de Euros) – mapas II e VII do OGE.

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