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O que a Cornucópia não pediu

Luís Miguel Cintra (LMC) não pediu uma exceção. Não pediu um favor. Não pediu uma conversa de café com o Presidente nem sequer com o Ministro da Cultura. LMC não pediu nada, falou sobre um problema. Trabalhou durante 43 anos e o modelo de financiamento tornou-se incompatível com uma estrutura de criação, seja a Cornucópia ou outra qualquer. E não falou do sub-financiamento mas sim do modelo, especificamente do modelo. Não acusou a tutela de injustiças e perseguições e, por isso mesmo a crítica implícita foi mais forte. Deixou a nu um problema estrutural dos apoios às artes, que não começa mas passa pelo sub-financiamento crónico e pela precarização exigida aos corpos artísticos que passaram a pagar menos e a despedir mais para cumprir o que lhes era exigido. LMC não falou da Cornucópia, falou de todas as estruturas que cumprem serviço público (incluindo os teatros nacionais e municipais, já agora).
O encerramento da Cornucópia lançou um debate furioso que, infelizmente, terminou antes de começar. Logo no primeiro dia, a diretora-geral das artes dedicou-se a esclarecer que a Cornucópia é das companhias com maiores subsídios, como se a decisão de encerrar a Cornucópia fosse uma birra. Gabriela Canavilhas, que deu os primeiros passos na política de austeridade com cortes nos apoios às artes em 2010, esclareceu no fórum TSF que a Cornucópia recebia apoio plurianual e que "isso é já de si um regime de exceção", os ingratos. E o Presidente da República, que há um mês nada disse sobre o orçamento de estado para a Cultura, encurralou o Ministro da Cultura para uma conversa ao microfone sobre uma exceção (de nada valeu o protesto de LMC bem-educadamente a insistir que não queria). O resultado é que a questão mediatizada não foi o modelo mas sim a disponibilidade da tutela para um jeitinho. Tudo junto, o efeito na opinião pública é desastroso e a mensagem de LMC foi transformada num peditório. É indigno.
Nem a Cornucópia pediu uma exceção nem a exceção iria resolver o que quer que fosse. Há um problema de sub-financiamento crónico que inviabilizou um modelo à partida desenhado para racionalizar e submeter os artistas "subsídio-dependentes". A "exceção" na Cultura é um problema ideológico que só perpetua a caricatura que o PSD e CDS fazem dos serviços públicos de cultura, uma pulsão demagógica na qual o Partido Socialista participou desenfreadamente na última década.
Devemos por isso desintoxicar o debate público. O que temos hoje fomenta a precariedade e as produções baratas pagas por baixos salários. Querem criar um regime onde companhias de trabalho reconhecido recebem financiamento não sujeito a concursos públicos? Muito bem. Há cerca de cem estruturas espalhadas pelo território que correspondem a serviços públicos de cultura. E não é demagogia exigir que uma política de sustentabilidade dos corpos artísticos não se resuma à capital. O debate é mais vasto do que a Cornucópia, tal como LMC deixou bem claro. É esse o debate que devemos fazer.
Comentários
Sobre esta matéria dos apoios
Sobre esta matéria dos apoios ao teatro penso ainda o que pensava em 1994: devem ser objetivados mediante a adoção de critérios claros e múltiplos, seja de acesso aos apoios seja de contabilização dos mesmos, antecipadamente conhecidos e divulgados.
De tal modo que os apoios públicos estabeleçam um verdadeiro regime de igualdade material entre os criadores e as companhias. De tal modo que sobre esse desenho objetivado de igualdade pudesse depois recair um outro desenho, esse forçosamente desigual, em que 'riscassem' o público e os apoiantes privados. Posso dar exemplos.
Um critério para acesso aos apoios públicos ao teatro poderia ser a prévia dedicação em regime de exclusividade por dois ou três anos. Companhias cujos membros comprovassem essa dedicação, poderiam concorrer aos apoios estaduais. Outras, não.
E vários poderiam ser igualmente os critérios para aferição dos apoios:
1) Para infraestruturas - instalação ou rendas;
2) Por número de espetáculos - defendendo eu que o Estado só deveria por este critério apoiar um máximo de três por ano;
3) Por número de apresentações por espetáculo - sessenta, setenta, no mínimo;
4) Por número de atores envolvidos - até um máximo a estabelecer;
5) Por número de apresentações fora do espaço em que a companhia estivesse instalada;
6) Por número de apresentações no estrangeiro;
7) Por número de ações de formação;
8) Por prémio de antiguidade - um determinado montante a apurar por ano, a partir de determinado ano de atividade ininterrupta e face ao número médio de criadores envolvidos;
9) Prémio de notoriedade - face ao reconhecimento internacional a comprovar por exemplo por críticas difundidas no estrangeiro.
Enfim, os parâmetros suscetíveis de gerar apoio poderiam e deveriam ser variadíssimos - e portanto abertos às escolhas e ponderações legítimas de política teatral do governo em funções. Mas de tal modo objetivos que tornassem desnecessária a intervenção de qualquer júri. De tal modo claros que se bastassem com a intervenção de um matemático capaz de os equacionar e de os concretizar depois face aos montantes orçamentais disponíveis.
O que se passa neste país é que em matéria de apoio ao teatro comandam os amigos, as máfias de várias espécies, as trocas de favores, a cama, o conluio de companhias, criadores e críticos - e o medo que os políticos têm de sequer pensar no assunto e de irritar o status quo.
Estamos num campo de total falta de clareza (mesmo) ideológica porquanto os interesses de grupos afetos à esquerda são comuns a outros que vão sendo afetos a quem mais convém, dominando a cor de quem vai navegando habilmente ao sabor do vento que sopra.
O teatro sem apoios estaduais não sobrevive. Mas o Estado não pode apoiar uns em detrimento de outros porque gosta mais, porque sim, porque desse modo decidiu o júri que para esse efeito nomeou. Não pode favorecer uns em detrimento de outros porque os fundos disponíveis não chegam para todos. Ou melhor, não deveria poder...
É que estão em causa meios que viabilizam a subsistência - e não deve ser o Estado a determinar subjetivamente quem tem e quem não tem o direito efetivo de existir. É que não há só a liberdade de expressão e de criação artística - que o Estado deve salvaguardar - há também um princípio de igualdade a impor tratamentos objetivos segundo critérios de igualdade material.
Creio que esta discussão estará em boa medida por fazer. A uns - os eleitos - não convém. E a outros - os aspirantes - pode não convir. Claro que de quando em vez movimentos e vozes críticas vão dizendo de sua justiça. Mas é como se viessem clamando no deserto.
Luís Miguel Cintra e a Cornucópia merecem um tratamento mais excecional do que aquele de que já beneficiam?... Para mim a questão é outra:
Não seria impossível que segundo critérios objetivos até pudessem receber mais do que os 300.000 por ano que já recebem. Mas o que recebem - tal como o que recebem as companhias apoiadas - é já expressão de privilégios sistematizados que eles próprios (à semelhança dos demais) deveriam ter querido combater.
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