China: pandemia não fez abrandar repressão

O ano de 2020 ficou marcado pela interferência na autonomia de Hong Kong para silenciar os protestos e pela denúncia das centenas de campos de trabalho forçado para os uigures na província de Xinjiang.

20 de dezembro 2020 - 15:50
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Campo de reeducação da comunidade uigur, em Xinjiang.
Campo de "reeducação" da comunidade uigur, em Xinjiang. Fonte, wikipedia.

Após a vitória nas eleições locais de novembro e de uma manifestação com mais de meio milhão de pessoas em dezembro, o movimento pró-democracia em Hong Kong organizou um protesto logo no primeiro dia do ano de 2020 que levou às ruas cerca de um milhão de pessoas, nas contas dos organizadores. Marcharam em defesa dos “cinco pontos” da agenda de reivindicações: reforma eleitoral, amnistia para os participantes nas manifestações, investigação ao uso da força policial, retirada da acusação de “distúrbios” e retirada total da lei de extradição. 400 manifestantes acabaram presos depois de a polícia dispersar o protesto com canhões de água e gás lacrimogéneo.

O ano novo prometia assim continuar a vaga de contestação à interferência da China na autonomia do território, mas a seguir veio a pandemia, que paralisou tanto os protestos como a repressão. Uma espécie de tréguas que terminaram em abril, com a detenção de 15 líderes da oposição por terem participado nas manifestações do ano anterior. Ex-deputados, advogados e alguns veteranos da luta pró-democracia foram acusados de promoverem “assembleias ilegais”.

No que diz respeito ao reforço do poder do regime chinês sobre o território, a pandemia não podia ter vindo em melhor altura. A ausência de protestos nas ruas foi uma oportunidade para introduzir na agenda política uma lei de segurança que deu a Pequim a concretização do objetivo antigo de acabar na prática com o princípio de “um país, dois sistemas”. A lei foi apresentada em maio no parlamento chinês, o Congresso Nacional Popular, justificada pela necessidade de lutar contra o separatismo e o terrorismo. Nela se incluiu a possibilidade de criar bases dos serviços secretos e agências de segurança chineses com liberdade de ação dentro de Hong Kong, possibilidade até então reservada ao governo local. Uma proposta semelhante tinha sido derrotada pelos protestos nas ruas em 2003.

Os protestos voltaram às ruas após a apresentação da lei, mas em menor número e reprimidos pela polícia, cujo porta-voz não perdeu tempo a vir elogiar a iniciativa chinesa. A lei acabou por ser aprovada no fim de junho, com o voto do único representante de Hong Kong no Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional, o órgão máximo legislativo da China.

Entre as regras da aplicação da nova lei ao território, encontra-se também a possibilidade da polícia local fazer rusgas sem ter mandados judiciais “em circunstâncias especiais”, confiscar propriedade “em caso de ofensas à segurança nacional”, de monitorizar suspeitos de forma secreta a mando do governo da região e censurar material online se houver “motivos razoáveis”. Quem publicar mensagens que se considerem atentatórias segundo a nova lei pode ser condenado a um ano de prisão e as organizações políticas internacionais ficam obrigadas a fornecerem informações sobre atividades no território, nomeadamente dados pessoais, fontes de rendimento e despesas.

Logo após a aprovação destas regras, muitas lojas retiraram os cartazes e faixas amarelas de apoio ao movimento de protesto e as livrarias e bibliotecas apressaram-se a retirar os livros de autores simpatizantes e ativistas do movimento pró-democracia.

O adiamento das eleições previstas para setembro, com a desculpa da pandemia, não travou o acentuar da legislação repressiva. As primárias realizadas em julho, com a participação de 600 mil eleitores, foram declaradas ilegais pelo governo. E em novembro, o parlamento chinês aprovou uma resolução que permite ao Governo de Hong Kong expulsar deputados se os considerar uma ameaça à segurança nacional e logo em seguida a contestada líder do executivo, Carrie Lam, deu ordem para a destituição de quatro parlamentares da oposição, que integravam o grupo de doze deputados impedidos de se recandidatar ao cargo. Em resposta, 15 deputados pró-democracia apresentaram a sua demissão em bloco do parlamento do território.

Aumenta o número de campos de detenção e o trabalho forçado dos uigures

No final de 2019, os “China Cables” divulgados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação tinham exposto ao mundo inteiro a realidade de centenas de milhares de cidadãos de minorias étnicas muçulmanas detidos em campos de reeducação na província de Xinjiang. Entre as revelações estavam as diretivas emanadas por altos dirigentes do Partido Comunista daquela região sobre a gestão dos campos, a disciplina e punição dos detidos. 

Para identificar as pessoas a deter foram utilizados métodos com recurso a inteligência artificial, que sinalizavam os alvos a partir da utilização de aplicações nos seus telemóveis. O estado chinês sempre negou a existência destes campos e da discriminação da minoria uigur, afirmando tratarem-se de centros para a sua integração e essenciais no combate ao extremismo islâmico. Este ano foram conhecidas novas notícias sobre a transferência de dezenas de milhares destes detidos para fábricas, um exemplo de trabalho forçado com o patrocínio do Estado. Com a pandemia, muitos foram trabalhar no fabrico de máscaras com destino ao mercado interno e à exportação. 

Segundo uma coligação de mais de 190 organizações de defesa dos direitos humanos, o governo chinês fornece também os uigures detidos nos campos para trabalharem na produção de algodão para as fábricas das principais marcas de roupa internacionais. 84% do algodão produzido na China (e 20% da produção mundial) é proveniente de Xinjiang, o que significa que o trabalho forçado dos uigures contribui para o algodão presente em uma em cada cinco peças de roupa comercializadas no mundo, apontam as ONG.

Um relatório divulgado em setembro pelo Instituto Australiano de Políticas Estratégicas aponta que a China continua a construir estes campos de detenção, que ascendem já a 380 na província de Xinjiang. Dados que contrariam a versão de Pequim acerca do sucesso da reeducação e do aumento do número de libertações a par da redução do número de detidos.

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