Por mais voltas que se dê, por mais que se puxe o lençol para um lado, sempre ficará outro a descoberto. O que aconteceu nas eleições municipais de domingo, 6 de outubro, foi uma vitória retumbante da direita. É certo que o quadro não está totalmente definido, porque ainda vai haver eleições de segunda volta em 52 cidades, incluindo 15 capitais de Estado, entre elas a maior de todas, S. Paulo, que tem 11 milhões e meio de habitantes. Mas poderá a segunda volta mudar os resultados globais de forma significativa? Pode equilibrá-los um pouco, sim, mas não mudar-lhes o sentido.
Vejamos o que dizem os números. Em 2020, os cinco maiores partidos da direita (MDB, PP, PSD, PSDB e DEM) conquistaram 3.223 prefeituras (presidências de câmara), o que corresponde a 57% de todas as prefeituras do país. Este ano, os cinco partidos de direita mais votados conquistaram 3.613 prefeituras, ou 64% de todos as cidades do país. E isto apesar da vitória de Lula em 2022.
Mais números: até agora é o PSD (que, apesar do nome, e tal como em Portugal, é um partido de direita) quem conquistou mais prefeituras. Com 878 prefeitos, o PSD desbancou o MDB, hegemónico neste campo há 20 anos. No ranking de partidos por prefeituras ganhas, o PT só aparece em 9º lugar. Ainda assim, este ano o PT elegeu mais prefeituras que em 2020 (tinha 179, este ano elegeu 253). Nas capitais de Estado, porém, o partido não conseguiu eleger nenhum prefeito na primeira volta, e disputa a segunda em apenas quatro capitais: Cuiabá, Fortaleza, Natal e Porto Alegre.
No ABC paulista, berço histórico do partido e da corrente de Lula, o PT continua fora das prefeituras do “A”, Santo André, do “B”, S. Bernardo, e “C”, S. Caetano, tendo apenas a hipótese de manter as das cidades de Diadema e de Mauá. Sabe-se que Lula queria muito uma vitória do PT em S. Bernardo, até que teve de aceitar a sua impossibilidade. O candidato do PT nem foi à segunda volta, que será disputada pelo Podemos e pelo Cidadania.
Fragmentações na extrema-direita
Há, porém, um fenómeno novo que está a abalar a extrema-direita e poderá trazer mudanças significativas no panorama político. Trata-se do surgimento de correntes de contestação à liderança de Bolsonaro na extrema-direita. S. Paulo forneceu-nos o exemplo mais acabado, com a candidatura de Pablo Marçal.
Pablo Marçal é um influencer na Internet, muito famoso nas redes pelos seus cursos que alegadamente ensinam as pessoas a ganhar dinheiro com a net e a ficarem ricas. O partido pelo qual concorreu, o PRTB, não tem acesso aos tempos de antena de rádio e televisão, mas Marçal não precisou deles: tem a Internet. E foi através das redes sociais que alicerçou a sua campanha, até que, subitamente, o seu nome emergiu do nada e começou a aparecer nas sondagens. Em maio, já tinha 10% das intenções de voto. A partir daí, o fenómeno Marçal impôs-se e catapultou este especialista em marketing digital à disputa pela ida à segunda volta, que até então se travava entre Ricardo Nunes, do MDB, e Guilherme Boulos, do PSOL. Nunes conta com o apoio de Bolsonaro, e Boulos é apoiado por Lula.
Homem branco, macho e arrogante
A campanha de Marçal deixou perplexos os seus adversários. Para além de uma vulgata de frases da extrema-direita, Marçal não estava muito interessado em apresentar propostas para a cidade. O que queria era que se falasse dele. Nos debates, a tática era estar sempre ao ataque, acusando os adversários dos mais diversos crimes, tivessem eles alguma ponta de realidade ou fossem completamente inventados. Num dos debates, provocou tanto o candidato do PSDB, José Luiz Datena, que este lhe desfechou uma cadeirada na frente das câmaras de TV.
A sua candidatura de homem branco, machista e arrogante chegou a seduzir, segundo as sondagens, metade dos eleitores de Nunes. O machismo ostensivo foi ao ponto de prejudicá-lo quando num debate, numa provocação à candidata Tabata Amaral (PSB), disse que “mulher não vota em mulher porque mulher é inteligente”.
Mas o maior tiro saído pela culatra foi o de exibir, no sábado, véspera das eleições, um relatório médico em que constava a internação de Guilherme Boulos numa clínica privada por consumo de cocaína. Em poucas horas, a campanha de Boulos demonstrou que o documento era totalmente falsificado. Nele, nada está correto: nem a assinatura do médico, que já morreu, nem sequer o número de BI de Boulos. Isto é: Marçal sabia que estava a cometer um crime, mas contava que o efeito da divulgação do relatório durasse 24 horas, o suficiente para ultrapassar Boulos e conseguir chegar à segunda volta. Quando fosse demonstrada a falsificação, já os votos estariam nas urnas.
Falhou por muito pouco. Nunes teve 29,48% dos votos válidos, Boulos 29,07% e Marçal 28,14%.
Brasil
Apresentadores de programas “policialescos” e influencers ao assalto das autárquicas
“Que porcaria de líder é este?”
O rescaldo das eleições demonstrou que a extrema-direita passa por uma crise de liderança e que o apoio de um Bolsonaro inelegível para as próximas eleições presidenciais de 2026 nem sempre consegue o resultado almejado. Foi o pastor Silas Malafaia, o mais influente evangélico no clã Bolsonaro, que escancarou as críticas. Num entrevista, Malafaia acusou Bolsonaro de ser covarde e omisso na eleição para prefeito de S. Paulo, deixando-se ficar em “cima do muro” diante das duas candidaturas da extrema-direita, as de Ricardo Nunes e de Pablo Marçal. “Sabe o que ele fez? Jogou para os dois lados”, acusou. E questionou: “Que porcaria de líder é este?”
No dia seguinte, Malafaia anunciou ter feito as pazes com o ex-presidente. Mas as divergências no seio da extrema-direita continuam bem vivas. Numa entrevista dadas depois das eleições, Marçal disse que não apoiará a reeleição de Ricardo Nunes, e que só o faria se o ex-presidente Bolsonaro, o seu filho Eduardo, o pastor Malafaia e o governador de S. Paulo, Tarcísio Freitas se retratassem do que Marçal considera serem mentiras sobre ele.
Marçal foi ainda mais longe: “Tenho a certeza de que ele [Boulos] vence. Ele sabe sinalizar com o povo, e o Ricardo não sabe, Boulos e Lula têm a língua do povo, os outros [estão] só brigando.”
Na eleição de S. Paulo, Marçal teve o apoio de alguns expoentes da extrema-direita, como o deputado federal mais votado de 2022, Nikolas Ferreira, e o também deputado federal Marco Feliciano. Outro exemplo da crise der liderança foi o apoio de Bolsonaro à candidatura de Alexandre Ramagem à Prefeitura do Rio de Janeiro. O empenho de Bolsonaro no apoio a Ramagem, que dirigiu a Agência Brasileira de Inteligência entre 2019 e 2022, não foi suficiente para impedir a reeleição do prefeito Eduardo Paes, do PSD, logo à primeira volta, com 60,47% dos votos. Ramagem ficou com 30,81%.
A direita que ganhou
Enquanto a extrema-direita se engalfinhava, a direita conhecida como do “centrão” acumulava vitórias. O PSD passou a liderar o ranking dos prefeitos eleitos, com 878 (tinha 659), seguido do MDB, com 847 (tinha 790) e do PP com 743 (tinha 697). Seguem-se União, com 578, e só então o PL de Bolsonaro, com 510. O PT aparece apenas no 9º lugar, com 243 prefeitos já eleitos. Assinale-se ainda o trambolhão do PSDB, que elegeu 273 prefeitos, caindo do 4º para o 8º lugar em número de cidades conquistadas e perdendo 250 prefeituras em relação a 2020.
Numa tentativa de minimizar o desgaste para o governo que representa esta avançada da direita, o ministro de Relações institucionais do governo Lula, Alexandre Padilha, considerou os resultados da primeira volta como positivos. “[Houve] um crescimento significativo não só do PT, mas do conjunto dos partidos que apoiam Lula”, disse. “Às vezes, tentam diminuir o tamanho do governo. O presidente Lula construiu uma frente ampla com partidos que apoiaram o governo depois do dia 8 de janeiro. Lideranças que compõem essa frente ampla, e que apoiaram Lula nas eleições passadas, derrotaram os ícones da extrema-direita”, concluiu.
Esta “frente ampla”, de facto, inclui ministros que correspondem ao que já de mais à direita no centrão: três ministros do União: Turismo, Comunicações e Integração e Desenvolvimento Regional, um do PP, o de Esporte, e um do Republicanos, o de Portos e Aeroportos. Com essas nomeações mais recentes, Lula foi montando um governo cada vez mais à direita e com muito pouca capacidade de implementar políticas populares.
O centrão entrou no governo Lula, mas a custos muito altos. Uma parcela cada vez maior do Orçamento do Estado é controlada pelos deputados e senadores, através das emendas dos parlamentares. Isto significa menos verbas do governo para os investimentos que o país precisa.
Em 2024 foram inseridos no Orçamento mais de 49,2 mil milhões de reais em emendas. Em 2014, esse valor era de 6,1 mil milhões de reais.
Através das chamadas emendas PIX, deputados e senadores destinam recursos do Orçamento para serem aplicadas nos seus estados e redutos eleitorais. O controlo do governo sobre estas emendas diminuiu muito, devido às emendas impositivas, de execução obrigatória e que são quase a totalidade das emendas parlamentares. Estas emendas revelam o nome do parlamentar beneficiado, mas dispensam a destinação específica a um projeto ou programa. Isto é, podem ser aplicadas em qualquer coisa sem que haja controlo sobre a sua execução.
Vitória do centrão e emendas PIX
Não é por acaso que o centrão faz cavalo de batalha nestas emendas. É que elas permitem que os partidos do centrão, que são maioria no Congresso, mantenham e ampliem o seu poder.
Um levantamento realizado pelo jornal O Globo mostra que as cidades que receberam maior volume de emendas Pix apresentaram uma taxa de reeleição de prefeitos superior à média nacional.
O estudo analisou os 178 municípios que foram os principais recetores das emendas. Neles, 100 prefeitos foram reeleitos e outros 45 elegeram sucessores do mesmo partido.
Isto significa uma taxa de sucesso de 94,6%, superior à taxa de recondução nacional de 81,4% este ano, que por sua vez já superam em muito os 63,7% de 2008.
Estes dados comprovam a importância das emendas para a manutenção no poder de prefeitos, que as usam para obras no seu município ou para outros benefícios menos lícitos. Na Procuradoria-Geral da República já há mais de uma dezena de investigações em curso sobre suspeitas de desvios na utilização destas verbas.
É uma ilusão perigosa contar com a fidelidade do “centrão” a uma recandidatura de Lula em 2026. Até lá faltam dois anos, e o centrão certamente fará mais chantagem e aumentará o preço dos seus apoios. Isso faz parte da própria lógica da existência deste bloco de direita.
O que está em jogo em S. Paulo
Nesta segunda volta, todo o destaque vai para a segunda volta da eleição em S. Paulo, que opõe o atual prefeito, Ricardo Nunes, do MDB, que conta com o apoio de Bolsonaro, a Guilherme Boulos, do PSOL, apoiado por Lula. À partida, Nunes está em vantagem e, na teoria, os votos de Marçal deveriam ir todos para ele. Mas uma eleição de segunda volta é sempre uma nova eleição, e as opções dos eleitores seguem uma lógica diferente. Isto quer dizer que Boulos, apesar de partir em desvantagem, tem condições de virar o jogo nestas três semanas de campanha eleitoral até o domingo, 27 de outubro, quando finalmente se celebrará a segunda volta. Uma vitória do PSOL, com o apoio do PT, na maior cidade do país, poderia marcar o início de uma mudança em termos nacionais.