Brasil

Apresentadores de programas “policialescos” e influencers ao assalto das autárquicas

01 de outubro 2024 - 21:02

Nos programas sobre crime, prolifera um discurso que incentiva o cometimento de crimes por agentes do Estado e a defesa de uma política de segurança centrada na morte e no encarceramento. Os seus protagonistas aproveitam a sua popularidade para saltar para a política.

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Alex Pegna Hercog

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Montagem com arma
Montagem com arma. Por Intervozes.

A população brasileira já está acostumada com a exibição de programas de rádio e TV que exploram a violência nas cidades. Os “policialescos” ocupam cadeira cativa na programação das emissoras e seguem um padrão consolidado de cobertura, que conta com apresentadores caricatos, repórteres acompanhando operações policiais e agentes públicos de segurança a serem entrevistados. Em época de eleição, muitos desses personagens candidatam-se, buscando converter a audiência em votos. Uma investigação realizada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social mapeou 66 candidaturas ligadas a programas policialescos nas eleições municipais de 2024. O levantamento faz parte do projeto Mídia Sem Violações de Direitos, uma iniciativa permanente do coletivo.

A pesquisa consultou o banco de dados do Tribunal Superior Eleitoral e complementou as informações com buscas sobre a programação local de rádio e TV em pelo menos três municípios em todos os estados do Brasil. O levantamento identificou 51 candidaturas de apresentadores e repórteres de programas policialescos ou de quadros policiais de programas jornalísticos disputando cargos de prefeito e vereador. Além deles, considerou oito candidaturas de agentes de segurança pública com presença frequente nesses programas. Há ainda sete casos de comunicadores policialescos que não são candidatos, mas apoiam a candidatura de familiares ou correligionários. Com exceção do Rio Grande do Sul, todos os estados tiveram candidaturas identificadas com esse perfil.

A grande quantidade de candidatos reforça denúncias antigas sobre o uso político dos programas policialescos. Operando sob concessão pública, as emissoras utilizam a sua programação como trampolim eleitoral e promoção individual que ferem princípios de isonomia na disputa eleitoral e fragilizam a democracia. O que predomina nos policialescos é um discurso que incentiva o cometimento de crimes por agentes do Estado e a defesa de uma política de segurança pautada na morte e no encarceramento.

Programas com esse perfil costumam ignorar debates que trazem contrapontos ao modelo de segurança pública pautado no racismo e na violação de direitos humanos. Outro ponto recorrente nos programas pesquisados é o assistencialismo, criando uma imagem paternalista em torno do “apresentador bonzinho que ajuda quem precisa”. Já para os agentes de segurança que se destacam nos policialescos, a imagem de “linha dura no combate ao crime” torna-se o principal mote de campanha.

Disputa à prefeitura

Um dos programas policialescos mais influentes na televisão brasileira é o Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes. No ar desde 1997, o programa tem alcance nacional, além de possuir versões locais em todo o país. Desde 2003 à frente do Brasil Urgente, o apresentador José Luiz Datena (PSDB) afastou-se recentemente do programa para concorrer à prefeitura de São Paulo. Um dos jornalistas mais populares do país, Datena já foi apresentador do similar Cidade Alerta, na Record.

Outro programa policialesco de referência é o Balanço Geral que, em Belo Horizonte (MG), é transmitido pela TV Record Minas. Seu mais longevo apresentador, Mauro Tramonte (Republicamos), também aproveitou a projeção alcançada à frente do programa para disputar a prefeitura da capital mineira. Tramonte terá a concorrência de Carlos Viana (Podemos), jornalista que trabalhou no mesmo programa e fez carreira em policialescos até 2018, quando se afastou para concorrer às eleições, saindo vitorioso e conquistando um lugar no Senado.

Já em Belém (PA), um dos candidatos à prefeitura é Jefferson Lima (Podemos), que trabalhou como apresentador e repórter em diversas rádios e TVs e atualmente conduz o “Jefferson Lima na TV”, pela TV Grão Pará. O comunicador já liderou quadros com forte apelo assistencialista, a exemplo do “Dia de fazer o bem”, em que distribuía cestas básicas. Jefferson foi eleito suplente de vereador na capital paraense em 2008 e, desde então, sem nunca abandonar seus programas, participou em todas as eleições.

Outros municípios brasileiros também terão a presença de policialescos disputando lugares para prefeito ou vice, como em Aracaju (SE), Alta Floresta (MT), Caruaru (PE), Guarulhos (SP), Londrina (PR), Parnamirim (RN) e Santa Rita (PB).

Concessões públicas a promover agentes públicos

Uma característica dos programas pesquisados é o alinhamento com as polícias militar e civil, enaltecendo a figura dos agentes, tratados como “guerreiros”. Apesar da situação catastrófica na segurança pública em todos os estados brasileiros, as emissoras não costumam debater a eficácia das políticas de segurança que vigoram, tampouco modelos alternativos. O debate da política pública é ignorado e o que prevalece é o personalismo que separa os “bonzinhos” dos “malvados”.

Desta forma, o trampolim eleitoral dos policialescos não promove apenas os jornalistas da emissora. Diariamente, agentes de segurança pública protagonizam os programas, dando entrevistas ou atuando em operações que são exibidas como um reality show ou um filme de ação. Em 2024, ao menos seis estados terão candidaturas de polícias que ganharam visibilidade na TV.

Candidata a vereadora de Macapá (AP), a Delegada Sandra Dantas (PDT) já participou em diversos episódios do Bronca Pesada (TV Cidade), concedendo entrevistas sobre operações policiais. O programa apela para imagens sensacionalistas, como a exibição de cadáveres, o que já lhe rendeu uma condenação pelo Tribunal Regional Federal por exibir “imagens fortes (…) em horário acessível a crianças e adolescentes”, de acordo com a sentença. Na ação, o Ministério Público Federal cita cenas exibidas pelo programa, como a de uma mulher “mutilada com objeto cortante, em busca de atendimento médico”.

Em Salvador (BA), disputa a Câmara Municipal o Coronel Humberto Sturaro (PSDB), figurinha carimbada em diversos podcasts, portais e programas ligados a policialescos. Em 2021, o militar foi para a reserva e em 2023 ganhou o cargo de coordenador em uma prefeitura-bairro do município. Ainda assim, continuou a conduzir ações exibidas por policialescos. Um exemplo é a Operação de Sturaro na Gamboa, divulgada pelo “Alô Juca” – o canal do YouTube tornou-se um programa de TV liderado por Marcelo Castro (TV Aratu/SBT). O ex-apresentador do Balanço Geral (Record/BA), Castro foi demitido pela emissora após a descoberta de um esquema de desvio de doações conhecido como “Golpe do Pix”, tornando-se réu.

A investigação identificou outras candidaturas de militares que aproveitaram a visibilidade em programas policialescos para seguir o caminho da política. Na disputa para vereador, há registos em Feira de Santana (BA), Goiânia (GO), João Pessoa (PB) e Uberlândia (MG). Para a prefeitura, há registos em Cabedelo (PB) e Caucaia (CE).

Quando o acusador é quem comete o crime

Os programas policialescos costumam evocar para si o papel de legislador, acusador e juiz, envolto num manto de moralismo que define o “bem” contra “mal”. No polo positivo, o comunicador que “não tem medo de bandido” e o agente de segurança transformado num “herói de farda” na luta implacável contra a “criminalidade”. Do outro lado, suspeitos negros ou de bairros periféricos, sentenciados e condenados ao vivo.

Esta narrativa alimenta a ideia de que o melhor caminho para enfrentar os problemas de segurança pública é o encarceramento em massa, a violação de direitos e a atuação policial à margem da lei. Também define como principais responsáveis pela criminalidade um perfil racializado. Não constam registos de que tais programas tenham importunado o ex-senador mineiro que teve o seu helicóptero apreendido com 450kg de pasta base de cocaína. Nem entrevistas com delegados sobre casos que envolvem crimes cometidos por desembargadores, empresários milionários ou oficiais da aeronáutica flagrados a traficar drogas em voos da Força Aérea Brasileira. O alvo tem classe social e um perfil racial definido.

No que diz respeito à histórica omissão do poder público em punir violações de direitos humanos na comunicação social, alguns candidatos já foram condenados por crimes cometidos durante o programa. É o caso do apresentador e candidato a prefeito de Alta Floresta (MT), Oliveira Dias (PL), condenado por homofobia, junto com a TV Nativa (Record), após debochar da orientação sexual de um defensor público durante o programa Olho Vivo.

Já em Manaus (AM), concorre a vereança Fofinho do Povo (Agir), que ganhou visibilidade como repórter de rua no programa Novo Alerta (TV A Crítica), apresentado por Sikêra Jr. Ainda que não tenha sido identificada nenhuma acusação contra Fofinho, são conhecidos os crimes cometidos por Sikêra Jr. Nos seus programas, o apresentador incentiva agentes de segurança a cometerem crimes e destila ataques contra mulheres, pessoas LGBTs e humilha publicamente suspeitos sem respeitar a presunção de inocência ou o direito a um julgamento justo. O apresentador responde a diversos processos, mas a sua impunidade prevalece face à omissão do judiciário, como destaca Mabel Dias no artigo “Caso Sikêra Jr.: até quando a Justiça ficará de olhos vendados para as violações na mídia?”.

Em Salvador (BA), em 2021, o apresentador Zé Eduardo (Bocão), do Balanço Geral (Record/BA), xingou e acusou sem provas Eliete Paraguassu (PSOL), marisqueira de Ilha de Maré, integrante da Articulação Nacional das Pescadoras e que tinha sido candidata a vereadora um ano antes. Após os ataques, Eliete, que tem uma trajetória de ações e denúncias que questionam os grandes empreendimentos do entorno da ilha, passou a sofrer ameaças. Em 2024, ela voltou a candidatar-se e, em agosto deste ano, comemorou nas suas redes uma vitória na justiça em ação movida contra a Record. Em publicação, Eliete afirmou que “essa decisão não é apenas uma vitória pessoal, mas um marco na luta contra a desinformação e o racismo na mídia”. Este caso revela que os policialescos não apenas promovem futuros candidatos, mas também utilizam o espaço mediático para atacar lideranças e representações políticas.

Casos de Família

Os programas policialescos oferecem diariamente aos espetadores um projeto político de sociedade que, em época de eleição, abastece propostas dos partidos. Além disso, os seus comunicadores também incidem eleitoralmente com apoios a terceiros. É o caso do deputado federal e apresentador do Balanço Geral (TV Vitória/Record) Amaro Neto, que tem feito campanha para diversos candidatos à prefeitura no Espírito Santo. Já em Caucaia (CE), o atual prefeito e ex-apresentador do Cidade 190 (TV Cidade/Record), Vitor Valim (PSB), busca eleger o seu sucessor, Waldemir Catanho (PT).

Em Sergipe, alguns casos chamam a atenção. No município de Nossa Senhora do Socorro, o ex-prefeito Fábio Henrique (União) e apresentador do Balanço Geral (TV Atalaia/Record) até esboçou a sua pré-candidatura, mas teve os seus direitos políticos cassados após condenação por improbidade administrativa. Nas suas redes sociais tem declarado apoio a candidatos à prefeitura de Aracaju e Nossa Senhora do Socorro.

Já em Itabaiana (SE), o radialista e ex-vereador Alex Henrique (União) também está fora das eleições e ainda foi cassado pela Câmara após condenação a mais de um ano de prisão pelo crime de calúnia, por ter feito acusações sem provas contra o antigo prefeito. À frente do Jornal da Capital (Capital FM), o jornalista já chegou a afirmar no seu programa que a polícia deveria “dar trabalho ao Instituto Médico Legal”. Inelegível, Alex Henrique apoia a candidatura de sua irmã, Elizamara de Alex Henrique (União).

Na capital sergipana, à frente do Patrulha da Xodó (Rede Xodó FM), Bareta passou a dividir a apresentação do programa com seu filho, Bareta Filho (PRD), que disputará o cargo de vereador, a exemplo do seu pai que, em 2022, concorreu para deputado estadual. Outro herdeiro mediático-político de Bareta é o Cabo Amintas (União), que pretende retornar à Câmara de Aracaju. Amintas foi repórter policial e comentarista nos programas Balanço Geral e Programa do Bareta.

Em Salvador, concorre à reeleição a vereadora Débora Santana (PDT), esposa de Uziel Bueno, apresentador do Brasil Urgente (Band). Uziel, que já foi deputado e vereador, não apenas apoia a sua esposa, como também destinava a ela participação no seu programa, à frente do quadro Terça Gospel.

A carne mais barata da TV: quando o sangue do negro rende voto para o branco

O mapeamento permite traçar um perfil das candidaturas policialescas: auto-declaram-se homens (88%), brancos (49%), cisgénero (100%) e heterossexuais (100%). Estes dados dizem muito sobre as características que predominam nestes programas: recorrem a valores machistas (enaltecem a agressividade masculina e a violência como resolução de conflitos), destilam LGBTfobia (muitas vezes surfando na moral religiosa) e definem como alvo dos abusos e corpos “matáveis” uma população de baixo rendimento e maioritariamente negra.

De acordo com investigador Paulo Victor Melo, no artigo “O papel da mídia brasileira na consolidação da necropolítica”, os “discursos racistas e a banalização da violência” pelos meios de comunicação social brasileira, sobretudo nos programas policialescos, reforçam a necropolítica que vigora no país, concedendo uma “autorização” para as políticas de Estado que “determinam quais sujeitos devem morrer e quais têm o direito à vida”.

Para a jornalista e coordenadora executiva do Intervozes, Ana Mielke, a exibição dos candidatos nos programas policialescos desequilibra o sistema eleitoral. “Estes apresentadores ou repórteres têm entrada diária na casa de milhares de pessoas na sua cidade, estado ou país. São horas de exposição pública, muitas vezes promovendo campanhas de marketing disfarçadas de ações solidárias”, afirma Mielke, que defende um tempo maior de “quarentena” para os comunicadores que desejam candidatar-se.

Além disso, a jornalista chama a atenção para os casos em que os apresentadores continuam “no ar”, mesmo no exercício de um mandato. Para Ana Mielke, além dos conflitos éticos e de interesse em conciliar as duas funções, os programas oferecem ao político eleito “um canal direto com o público, podendo construir imaginários sociais que beneficiem a aprovação dos seus projetos”. Esse cenário é ainda mais problemático, uma vez que as emissoras de rádio e TV atuam a partir de autorizações e concessões públicas. “Além de desequilibrarem o jogo democrático, obtendo vantagem indevida no processo eleitoral, estes apresentadores estão a serviço de um discurso autoritário, repleto de populismo penal e soluções fáceis para a violência”, conclui Ana Mielke

Influenciadores “policialescos” disputam as eleições em todas as regiões do país

Das ruas às redes. Das redes às urnas. Nas eleições municipais de 2024, pelo menos 16 estados brasileiros contarão com “influenciadores policialescos” disputando a prefeitura ou um cargo de vereador. O levantamento realizado pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social mapeou 25 candidaturas de influencers com projeção nas redes sociais e que abordam o universo policial ou da segurança pública.

O mapeamento levou em consideração as informações divulgadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), além de consultas às redes sociais dos candidatos. Cerca de 68% deles informaram ser policiais ou agentes de segurança. Em parte, esses candidatos identificados utilizam os seus canais no YouTube ou páginas pessoais noutras redes para divulgar sua atuação e o quotidiano da corporação. Há também os que reproduzem conteúdos de violência explícita similar aos exibidos pelos programas policialescos da televisão. Apresentadores de podcast e perfis com visibilidade e que se posicionam sobre ocorrências policiais ou políticas de segurança também foram mapeados. A pesquisa buscou candidaturas com estas características em ao menos três municípios por estado.

Dentre as candidaturas identificadas, apenas uma é feminina, de Amanda CSI, que concorre à vice-prefeitura de João Pessoa (PB). Todos os candidatos que declararam ao TSE identidade de género e orientação sexual afirmaram ser cisgénero e heterossexuais. Em relação à raça, 68% declararam-se brancos e 24% pardos, além de um preto e um indígena. Dos 25 candidatos, dez são do Partido Liberal (PL), quatro do Progressistas (PP), três do Republicanos e dois do Partido Social Democrático (PSD). MDB, Podemos, PRD, PSDB, Solidariedade e União Brasil tiveram um registo cada.

São Paulo é o estado com mais influenciadores policialescos identificados, com quatro registos em Campinas, Guarulhos e na capital paulista. Cuiabá (MT), João Pessoa (PB), Goiânia (GO), Maceió (AL), Manaus (AM), Natal (RN), Porto Alegre (RS), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA) e Vitória (ES) também são capitais com candidaturas identificadas pela pesquisa. Além destas cidades, constam registos de candidatos influenciadores em Ananindeua (PA), Campina Grande (PB), Caruaru (PE), Feira de Santana (BA), Ji-Paraná (RO), Joinville (SC), Maringá (PR), Serra (ES) e Vila Velha (ES).

Uso político das instituições públicas de segurança

De acordo com levantamento divulgado pelo jornal Folha de S.Paulo, 6.649 candidatos nas eleições de 2024 declararam ser polícias, militares ou ligados a forças de segurança. Apesar de ser uma quantidade 23% menor que o registado nas eleições de 2020, o número ainda é considerado elevado. Em 2018, eram apenas 961 candidatos com esse perfil. Aproximadamente 18% das atuais candidaturas são ligadas ao PL.

A participação de agentes de segurança pública nas eleições não é novidade, no entanto, um fenómeno crescente é a presença de influenciadores policialescos que apostam na conversão de seguidores em eleitores. Em disputas eleitorais anteriores, alguns nomes se destacaram, a exemplo do Delegado Da Cunha, que alcançou a Câmara Federal após ser eleito pelo estado de São Paulo. O delegado, youtuber e deputado federal possui 1,9 milhão de seguidores no Instagram e um canal no YouTube com 6,62 milhões de inscritos. Foi por lá que ganhou projeção, compartilhando vídeos de operações policiais de que participava.

Réu por violência doméstica, Delegado Da Cunha já foi indiciado por utilizar a estrutura da Polícia Civil para gravar vídeos para o seu canal. Em busca de projeção, o youtuber já admitiu ter forjado operações para encenar flagrantes supostamente realizados por ele. O seu caso é um exemplo do uso de instituições públicas de segurança para fins privados e eleitoralistas. O atual deputado não disputará a eleição municipal, mas, nas suas redes, tem declarado apoio a outros candidatos.

Em alguns estados, as instituições vêm normatizando a utilização das redes sociais por polícias, para evitar o uso da imagem e da estrutura da corporação sem consentimento. É o caso do Acre, Alagoas, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina e o Distrito Federal. Em Alagoas, chegou-se a aprovar a lei 9.028/2023 que “dispõe sobre a vedação ao uso de imagens de investigação e operações policiais para fins de divulgação em perfis pessoais das redes sociais por parte de agentes da segurança pública do estado”.

Ainda assim, são recorrentes os casos de influenciadores que ultrapassam os limites do serviço público. Um exemplo vem de Salvador (BA), onde o polícia Alexandre Tchaca já chegou a ser preso pela Polícia Militar (PM) em 2022 por associar a corporação às suas redes sociais, em que promovia candidaturas de aliados. O militar, que foi réu pela participação na Chacina do Cabula, na qual 12 pessoas foram executadas e outras seis baleadas aleatoriamente, apresenta um podcast policialesco e concorre ao cargo de vereador pelo PSDB.

Outro influenciador que se tornou nacionalmente conhecido em eleições anteriores é Gabriel Monteiro, terceiro vereador mais votado do Rio de Janeiro em 2020. No mesmo ano, o ex-policial foi expulso da PM. Ele possui um canal no YouTube com 6,6 milhões de inscritos. Com diversos vídeos de operações militares, o youtuber chegava a faturar até R$ 300 mil por mês com publicações na plataforma, de acordo com depoimento de um ex-funcionário. Segundo a denúncia, o então vereador utilizava a estrutura da Câmara Municipal, incluindo o pagamento de assessores parlamentares, para a produção dos seus vídeos, que eram monetizados pela plataforma.

Gabriel Monteiro foi cassado em 2020 por quebra de decoro, após acusação de violação, assédio sexual e moral. Preso desde 2022, o youtuber não disputou as eleições daquele ano, mas aproveitou a sua influência nas redes para ajudar na eleição do seu pai e sua irmã aos cargos de deputado federal e estadual, respetivamente. Já em 2024, o Supremo Tribunal Federal manteve a sua prisão por violação. Novamente fora das eleições, Gabriel será “representado” na disputa à Câmara Municipal do Rio de Janeiro pelo seu advogado Sandro Figueiredo, que se apresenta nas urnas como Dr. Sandro Família Monteiro. O candidato também já foi policial militar, mas foi expulso da corporação em 2006, sob acusação de cobrar dos moradores uma “taxa de segurança”.

Discurso que viraliza

Seguindo a lógica das plataformas digitais, muitos dos candidatos apelam para polémicas e violências em busca de repercussão e seguidores (ou futuros eleitores). Em Cuiabá (MT), o candidato a vereador Rafael Ranalli (PL), publica nas suas redes entrevistas e vídeos em que defende mais assassinatos cometidos pela polícia. Com perfil similar, o deputado estadual Capitão Assumção (PL), candidato à prefeitura de Vitória (ES), também já “viralizou” ao oferecer dinheiro para quem assassinasse um homem suspeito de um crime em Cariacica, durante um discurso no plenário da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, quando estava fardado com trajes militares.

A incitação à violência e ao cometimento de crimes por agentes de segurança está presente em diversos canais. Além disso, muitos candidatos apelam para publicações sensacionalistas em busca de alcance e engajamento nas redes – e consequente promoção dos seus perfis. É o caso do Coronel Urzêda (PL), candidato a vereador de Goiânia (GO), que costuma compartilhar nas suas redes vídeos de pessoas a reagirem a assaltos ou a matarem suspeitos. Já em Ji-Paraná (RO), o candidato a vereador Jornalista Jean Lemos (PRD) apela, nas suas redes, para cenas de acidentes e de violência explícita, incluindo um vídeo recente em que um indivíduo tenta o suicídio ao atear fogo em si mesmo.

O oportunismo em torno da segurança pública para alcançar promoção pessoal também é recorrente nas candidaturas pesquisadas. Um exemplo curioso vem de Caruaru (PE), em que o candidato a vereador Delegado Lessa (Republicanos) reproduz nas suas redes uma estética similar à dos programas policialescos da televisão. Ele faz uma dobradinha com Adielson Galvão, que se define como repórter policial e produz matérias para o seu canal Adielson Galvão no Facebook. Em frequentes “reportagens” da página, Lessa é entrevistado, simulando um ar “jornalístico”, apesar da nítida promoção do candidato pelo “repórter”. Numa destas “matérias”, por exemplo, ao comentar sobre a segurança pública no município, Lessa anuncia durante a entrevista a sua pré-candidatura. “A reportagem é sobre violência, ele aproveitou para falar de política”, foi uma das críticas que ele recebeu nos comentários.

No Rio Grande do Sul, durante as cheias que ocorreram no primeiro semestre de 2024 e que vitimaram 183 pessoas, deixando mais de 500 mil desalojadas, muitos indivíduos foram acusados de utilizar as suas redes sociais para auto-promoção. De ex-BBB a empresários, de políticos a polícias, com boas intenções ou por puro oportunismo, facto é que as redes viraram palco para a cobertura da tragédia e a divulgação de benfeitorias. O brigadiano Soldado Arruda (PL), por exemplo, alcançou milhares de visualizações com publicações sobre as enchentes e operações de resgate. Há poucos meses da campanha, ele chegou a publicar um vídeo em que enaltece a si mesmo por tomar “uma decisão tão arriscada” e por, “mesmo sem condições financeiras e sem saber nadar”, arrumar um “barco modesto” e, com as “mãos que tremiam ao segurar um leme” e com a “mistura de medo e determinação”, não ignorar “os gritos desesperados por socorro” e se arriscar para “resgatá-las”. Agora, ele é candidato a vereador em Porto Alegre.

Das redes às ruas, das ruas às urnas

Todas as candidaturas pesquisadas possuem um alinhamento ideológico que enaltece a atuação policial. Além de utilizarem os seus canais para construírem uma imagem de si mesmos como um “oficial linha dura”, “policial que não tem medo de ninguém”, “guerreiro que combate a bandidagem”, “delegado revoltado com a impunidade”, os influenciadores também alimentam um discurso que oferece soluções fáceis para o problema de segurança pública, como mais violência, mais encarceramento, mais mortes. Prevalece a narrativa simplista do “bem contra o mal”, em que, obviamente, o influenciador é sempre o bonzinho e até mesmo o cometimento de crimes por agentes de segurança se torna justificável.

Um levantamento divulgado pelo Datafolha, em dezembro de 2023, aponta que o conjunto “Segurança Pública”, “Violência” e “Polícia” são a segunda maior preocupação da população brasileira – atrás de “Saúde” e à frente de “Educação”. Segundo o jornalista Gabriel Veras, que participou da pesquisa realizada pelo Intervozes, “o Amazonas é um dos estados brasileiros com mais projetos de reconhecimento facial e promessas de ampliar e armar a guarda municipal se tornaram unanimidade entre os prefeituráveis, o que pode ser uma evidência de como a segurança pública, com o apoio dos policialescos, tem dominado a eleição”. Veras também afirma que “viver em Manaus é ser bombardeado por esse tipo de conteúdo policialesco, seja na rádio, na televisão ou nas redes sociais”.

Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, a letalidade policial ceifou a vida de 6.393 pessoas, 82% negras, sendo 71,7% crianças, adolescentes ou jovens. De acordo com o relatório “Missão letalidade policial e impacto nas infâncias negras na Bahia e no Rio de Janeiro”, lançado pela Plataforma Dhesca Brasil em 2024, esse cenário de violência também tem sido aproveitado como palanque eleitoral por diversos influenciadores digitais, muitos deles produzindo conteúdos enquanto estão em serviço. O documento sugere a necessidade de “políticas públicas efetivas de combate às violações e abusos cometidos por agentes de segurança pública influenciadores digitais e toda a rede que os mantém e lucra com eles, incluindo as plataformas digitais”.

O Relatório Dhesca também apresenta recomendações, como a criação de um grupo de trabalho interministerial para promover “estratégias de enfrentamento às ilegalidades e práticas racistas cometidas por agentes públicos de segurança que produzem conteúdos como influenciadores nas redes sociais”. Outra proposta, direcionada às plataformas digitais, é o banimento do “impulsionamento, patrocínio e monetização de conteúdos danosos (…) que violem os direitos humanos e contenham ilegalidades”, além da criação de filtros para conteúdos que exponham crianças e adolescentes.

Relatora da Dhesca e coordenadora executiva do Intervozes, Iara Moura cita a falta de transparência na moderação de conteúdos pelas plataformas “que tem na violação de direitos, na promoção de discurso de ódio e desinformação uma base dos seus modelos de negócio, lucrando com esse tipo de conteúdo”. A jornalista também chama a atenção para a responsabilidade que as plataformas têm durante o processo eleitoral, por promoverem perfis que disseminam discurso de ódio, violência política e violação de direitos. “Elas não têm tomado nenhuma medida concreta de combate a esse fenómeno, pelo contrário, a gente observa vários candidatos com esse perfil e figuras públicas construindo carreira política por conta da difusão desse tipo de conteúdo”, complementa Moura.


Os dados foram coletados a partir de um trabalho coletivo realizado por membros do Intervozes: Clarissa V. M. de Moura, Franciani Bernardes, Gabriel Veras, Iago Vernek Fernandes, Mabel Dias, Nataly de Queiroz Lima, Paulo Victor Melo, Raquel Baster e Rodolfo Viana, sob coordenação de Alex Pegna Hercog e apoio de Olívia Bandeira. O levantamento faz parte do projeto Mídia Sem Violações de Direitos, uma iniciativa permanente do Intervozes.

 

Originalmente publicado pelo Le Monde Diplomatique aqui e aqui. Adaptado para português de Portugal pelo Esquerda.net.