Uma viagem pelo mundo em 2020 (2): a União Europeia

13 de janeiro 2020 - 16:05
PARTILHAR

Consumado o Brexit, a União Europeia voltará a ficar confrontada com a sua crise existencial, que a unidade dos “27” contra as intenções britânicas (em especial, no que se refere à questão da fronteira irlandesa) serviu para camuflar. Por Jorge Martins.

Tudo indica que a reforma do euro continuará por fazer e que os Estados que utilizam a moeda única continuarão a ser vítimas do espartilho orçamental definido pelas suas regras
Tudo indica que os Estados que utilizam a moeda única continuarão a ser vítimas do espartilho orçamental definido pelas suas regras

Iniciamos esta nossa viagem pelo nosso continente, e, dentro deste, pela União Europeia no seu conjunto.

Posteriormente, analisarei as perspetivas políticas nos seus ainda 28 estados membros, dividindo-a, por uma questão de comodidade, em quatro regiões geopolíticas. Depois, irei até aos que não integram a UE.

UE: Depois do Brexit, o regresso aos dilemas existenciais da União

Na União Europeia, as eleições de maio foram marcadas pelo crescimento das forças da direita reacionária e populista e da extrema-direita, embora o seu avanço tivesse ficado, felizmente, abaixo do que algumas sondagens previam. Subiram os liberais (à “boleia” de Macron) e os verdes, como resposta à emergência climática. Desceram as duas maiores famílias políticas (conservadores e social-democratas) e também a esquerda, que, mais uma vez, não soube capitalizar o descontentamento existente em largas camadas da população na maioria dos Estados membros.

Por outro lado, o processo de escolha da nova Comissão Europeia constituiu um triste espetáculo. Tal como tinha acontecido em 2014, algumas famílias políticas europeias apresentaram os seus candidatos à presidência daquela instituição (os chamados “spitzenkandidaten”) antes das eleições para o Parlamento Europeu. Contudo, como cabe aos Estados, reunidos no Conselho Europeu, indicar a pessoa a submeter à aprovação da assembleia parlamentar da UE, alguns países resolveram ignorar aqueles. No final, assistiu-se a uma transação entre a Alemanha e a França: em troca de propor aos eurodeputados a alemã Ursula von der Leyen como a escolha para a presidência da Comissão, Macron conseguiu a anuência germânica à nomeação da ex-diretora do FMI, Christine Lagarde, para presidente do Banco Central Europeu (BCE). Se já pouca gente vota nas eleições europeias (apesar da ligeira subida da participação ocorrida nestas últimas), este comportamento dos dirigentes dos maiores Estados membros apenas tenderá a aumentar o descrédito dos cidadãos nas instituições europeias, com o consequente crescimento da abstenção no futuro.

Ao mesmo tempo, a UE continua a mostrar-se incapaz de lidar com as violações do Estado de Direito que ocorrem em alguns dos seus membros. A Hungria de Órban, com a sua “democracia iliberal”, e a Polónia, onde o governo da direita reacionária pretende controlar os tribunais, são os casos mais gritantes. Porém, a eles se pode somar a condenação a penas de prisão dos líderes independentistas catalães por parte da justiça espanhola ou a criminalização dos salvadores de imigrantes pelo anterior governo italiano, já não falando da construção de muros nas fronteiras entre Estados membros, em clara violação dos acordos de Schengen.

O ano será marcado pela concretização do Brexit, já no final do mês, e pelas negociações posteriores de um acordo que regule as relações futuras entre o Reino Unido e a UE, para as quais existe um prazo relativamente curto. E com um Boris Johnson eleitoralmente reforçado, as negociações não se afiguram fáceis. Contudo, a ausência de acordo seria má para ambas as partes, pelo que é de esperar que se chegue a um mínimo denominador comum, que seja a base de um acordo aceitável para britânicos e seus ex-parceiros europeus.

Consumado aquele, a União Europeia voltará a ficar confrontada com a sua crise existencial, que a unidade dos “27” contra as intenções britânicas (em especial, no que se refere à questão da fronteira irlandesa) serviu para camuflar.

as negociações para o próximo quadro financeiro plurianual (2021-2027) serão, provavelmente, ainda mais espinhosas que o habitual

Entretanto, as negociações para o próximo quadro financeiro plurianual (2021-2027) serão, provavelmente, ainda mais espinhosas que o habitual e constituirão um primeiro “teste de fogo” após o Brexit. A percentagem com que os Estados membros contribuem para o orçamento da UE é ridícula. No anterior quadro financeiro (2024-2020), a contribuição dos “28” correspondia a apenas 1,0% do PIB da UE, a percentagem mais baixa de sempre.

Com a saída do Reino Unido, um contribuinte líquido para o orçamento da UE, a Comissão Europeia cessante propôs um ligeiro aumento da contribuição dos países, o que aumentaria aquela percentagem para 1,11% daquele valor de referência. Mesmo assim, um pouco menor que o 1,13% com que os “27” (sem os britânicos) financiaram a União nos sete anos anteriores. A referida proposta propõe a redução dos valores a despender com a agricultura e as políticas de coesão, o que implicaria a redução dos fundos estruturais. Mesmo assim, os países mais ricos não aceitam aquela proposta, pretendendo que o montante final do contributo dos Estados membros não ultrapasse 1,05% do PIB da UE. Uma forte diminuição do valor dos fundos estruturais afetará os chamados “países da coesão”, onde se incluem a maioria dos Estados membros do Sul e do Leste do continente. Daí que a proposta da autoria da presidência finlandesa tenha sido rejeitada em bloco por estes últimos, em dezembro passado.

Ligada a essa está a nova reforma da Política Agrícola Comum (PAC), em especial no que se refere aos seus impactes ambientais (em especial, na questão das alterações climáticas) e ao seu financiamento. Desde o início que a PAC sempre favoreceu os grandes agricultores, em especial os da Europa Ocidental, cujas produções sempre foram mais apoiadas que as mediterrânicas. Os enormes excedentes e os danos ambientais produzidos pela produção agrícola intensiva e, frequentemente, monocultural levaram a sucessivas reformas, em especial dando maior apoio a políticas integradas de desenvolvimento rural e definindo alguns critérios ligados à sustentabilidade ambiental e ao bem-estar animal. Desde 2017, quando foi apresentada a proposta da anterior Comissão, que as sucessivas presidências da UE têm vindo a “partir pedra”, mas os Estados membros ainda não chegaram a um consenso que permita um acordo final.

O aumento dos gastos nas políticas de imigração e segurança das fronteiras externas é um mau augúrio

O aumento dos gastos nas políticas de imigração e segurança das fronteiras externas é um mau augúrio. Significa que pouco deverá mudar na política de imigração da UE, que permite que milhares de pessoas morram na travessia do Mediterrâneo e que alguns estados membros construam muros e persigam os que fogem da fome e da guerra, em busca de uma vida melhor no nosso continente. E não nos estranharia que parte desse dinheiro fosse para pagar os vergonhosos acordos com países terceiros (como a Turquia ou a Líbia), de forma a que estes impeçam a entrada dos refugiados em território da União. A existência, na Comissão, de um vice-presidente com o pelouro da “promoção do modo de vida europeu” (seja lá o que isso for), é um péssimo sinal, já que, numa interpretação mais radical, pode significar a ideia de uma Europa branca e cristã, que exclui os que estão fora desse padrão, em lugar de incluir todas as pessoas que nela residem.

Pior ainda é o enorme crescimento das despesas com segurança e defesa, até aqui residuais

Pior ainda é o enorme crescimento das despesas com segurança e defesa, até aqui residuais. Agora que, sob a presidência de Trump, se acentua o desinvestimento dos EUA na NATO e que o Reino Unido se retira da UE, a tendência será para o reforço das tentações de criação de um “exército europeu”, que funcionaria como “braço militar” da União, levando à sua militarização. Esta ideia é muito cara aos franceses, que sempre pugnaram por uma defesa comum europeia, independente dos EUA, algo que sempre contou com a oposição britânica. Com a saída do Reino Unido, os franceses passam a constituir a maior potência militar da UE e querem tirar partido dessa circunstância. Tudo dependerá da atitude da Alemanha, cujo passado histórico levou à existência de uma forte corrente pacifista na sociedade alemã. Para alguns setores da sua elite dirigente, defensores de uma remilitarização moderada do país, a criação de uma força armada europeia seria uma forma de atingir esse objetivo de uma forma menos controversa do que se fosse levada a efeito num quadro meramente nacional. Resta saber se será mesmo assim!

as proclamações da nova equipa de lutar contra as alterações climáticas e tornar a Europa na grande referência ambiental do Globo são contraditórias

Por seu turno, no capítulo ambiental, as proclamações da nova equipa de lutar contra as alterações climáticas e tornar a Europa na grande referência ambiental do Globo são contraditórias com a escassez de meios financeiros a ele destinados, que se mantém praticamente inalterados. Na realidade, aquelas não parecem ser mais que proclamações de boas intenções, que vão a par com as crescentes preocupações manifestadas pelos cidadãos, na Europa e no mundo. Mas, mesmo que seja mais que isso, a elas está subjacente uma aposta num “capitalismo verde”, algo de impossível e que constitui, em si, uma contradição nos termos. É certo que, face às políticas definidas por alguns dos outros grandes poluidores mundiais (EUA, Rússia, China, Índia e Austrália), alguns deles dirigidos por assumidos negacionistas, que continuam a apostar nos combustíveis fósseis, ou a criminosa intenção do governo de Bolsonaro de acelerar o extrativismo na Amazónia, a UE faz boa figura. Mas é preciso questionar o atual modelo produtivista e extrativista para se conseguirem outros resultados. E, isso, as instituições europeias não fazem!

Tudo indica que os Estados que utilizam a moeda única continuarão a ser vítimas do espartilho orçamental definido pelas suas regras

Por fim, o “elefante na sala”, que é a imprescindível reforma do euro. Tudo indica que esta continuará por fazer e que os Estados que utilizam a moeda única continuarão a ser vítimas do espartilho orçamental definido pelas suas regras. Apesar das intenções francesas, expressas pelo presidente Macron, a verdade é que a Alemanha continua a “fazer ouvidos de mercador” e não se espera que, tão cedo, altere a sua posição, até porque é a grande beneficiária da arquitetura disfuncional do euro. Para evitar uma nova crise, vai valendo a política do BCE, de compra de ativos de dívida dos países periféricos nos mercados secundários, o que evita que estas sejam alvo de ataques especulativos. Nesse particular, Christine Lagarde deverá manter-se fiel à linha do presidente cessante, Mario Draghi. Mas, não nos iludamos, a instituição bancária central da UE fá-lo para preservar o euro e não para ajudar os Estados económica e financeiramente mais fracos. De positivo, foi a rejeição pelo Parlamento Europeu, em 2019, da inclusão do Tratado Orçamental no quadro jurídico da UE.

O aumento das verbas para a economia digital e para a inovação científica e tecnológica é importante, mas talvez a melhor notícia seja o crescimento significativo da dotação atribuída ao programa de intercâmbio estudantil Erasmus. Este faz mais pela criação de um espírito comum europeu que as proclamações e toda a propaganda das instituições da UE.

No próximo artigo, iniciarei a análise das diferentes regiões geopolíticas da UE, começando a nossa análise pela Europa do Sul.

Artigo de Jorge Martins

Jorge Martins
Sobre o/a autor(a)

Jorge Martins

Professor. Mestre em Geografia Humana e pós-graduado em Ciência Política. Aderente do Bloco de Esquerda em Coimbra