No dia 20 de novembro, as paragens de autocarro da Avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa, voltaram a ter assento em vez do pequeno encosto implementado aquando da sua renovação pela JCDecaux. Durante essa quarta-feira, os utentes dos transportes públicos puderam voltar a sentar-se graças ao coletivo Infraestrutura Pública e a ação apanhou a atenção dos órgãos de comunicação social.
Mas a Infraestrutura Pública não se esgota nessa intervenção. O protesto contra a polémica renovação das paragens de autocarro foi apenas a última ação de um coletivo cujas ações apelam à “sensatez” das pessoas, porque o seu objetivo é chamar a atenção para os ataques ao espaço público. Seja contra a arquitetura hostil, como no caso dos encostos, contra a retirada de mobiliário urbano ou contra a falta de serviços e utilidades públicas, os ativistas deste grupo têm na sua origem a constatação de que “esta cidade está a destruir o espaço público de uma maneira mesmo rápida e em silêncio”. Quem o diz é Marta, membro do coletivo que não quer ser identificada pelo último nome.s
Uma das primeiras ações com mais impacto do grupo, a ocupação da Praça Paiva Couceiro com cadeiras e mesas depois da retirada de mobiliário urbano, foi mesmo um grito contra essa destruição. “A Paiva Couceiro foi só um exemplo maior”, explica. “Aconteceu de maneira mais dramática, era muito mais fácil haver uma causa que fosse ouvida”. Foram tiradas todas as cadeiras públicas da praça inteira, e isso gerou descontentamento nos moradores daquela zona, que foi canalizada na ação da Infraestrutura Pública.
Lisboa
“Direito a esperar sentados”: coletivo repôs bancos em paragens de autocarro
Mas antes da ação da Paiva Couceiro, a Infraestrutura Pública já tinha registado centenas de bancos que foram desaparecendo em Lisboa. “Só que era sempre um banco daquela esquina que de repente já não estava passado uma semana, ou uma praça que tinha só dois bancos públicos e que desapareceram”, explica Marta.
“O espaço público existe quando tens infraestrutura para fazer dele um espaço em que consegues estar e não só passar”, diz. E para a Infraestrutura Pública isso significa o mobiliário urbano, mas também os bebedouros, os fontanários e os sanitários públicos. Porque há espaços em Lisboa que por essa falta de infraestrutura não são espaços para as pessoas. “Imagina a Praça do Comércio”, propõe a ativista. “Aquele espaço não tem bebedouros, não tem sanitários públicos e não tens bancos, não é um lugar para estar”.
O coletivo reclama assim, de alguma forma, o uso da cidade pelos cidadãos. É o caso de quando devolveram a água ao fontanário do Intendente, que já não funciona há anos, mas também da luta pelos sanitários públicos, que cada vez são menos.
![Fonte do Intendente](/sites/default/files/2024-12/86757675634412.png)
Sanitários públicos, um assunto “tabu”
Quantas casas-de-banho públicas é que existem em cada freguesia? Qual é que é o preço das que são pagas? Porque é numa junta de freguesia há seis sanitários públicos e noutras só um? Porque é que os da freguesia de Arroios são gratuitos mas o da Penha de França já é pago? Porque é que há valores diferentes no valor dos sanitários públicos? São questões que a Infraestrutura Pública foi colocando e sobre as quais continua a trabalhar.
Para chamar a atenção para a necessidade de sanitários públicos e para as limitações dos horários existentes, o coletivo construiu um sanitário público e foi durante uma semana para várias praças que tinham um sanitário público mas já não têm, ou cujos horários limitam completamente a sua utilização. “A quantidade de pessoas que usaram as casas-de-banho foi prova de que são precisas casas-de-banho públicas que não tenham moedas”.
“É uma história que é mesmo tabu”, lamenta Marta. Porque não há visibilidade nem vontade de dar atenção a isso ou sobre a qual há uma perceção diferente. “As pessoas não se lembram que existem, porque estão sempre fechados ou são pagos, ou então acham que são só mesmo para as pessoas em condição de sem abrigo”, diz. Mas os sanitários públicos são uma infraestrutura da cidade como a iluminação, o parque infantil e a recolha do lixo, mas estão a ser privatizados com a desculpa de que é preciso gerarem receita para estarem limpas.
![Sanitário Público da Infraestrutura Pública](/sites/default/files/2024-12/934765363423.png)
E os gratuitos, quanto mais destruídos são, mais são esquecidos. Por isso, o que o coletivo faz é para que isto seja mais um assunto também em todas as suas vertentes. “O Martim Moniz, por exemplo, tinha uma casa-de-banho na estação do metro, tinha uma fonte, e já não tem, por isso não pode ser um espaço bom para as pessoas”, diz a ativista. Apesar disso, o Martim Moniz é um lugar de socialização para muitas pessoas, que pela sua situação habitacional, muitas vezes precária, se encontram lá para conviver e passar o tempo. Mas não tem infraestruturas para ser. “Tu nem sequer tens um sítio para lavares as mãos”, comenta.
Lisboa
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Lutar pelo direito a estar na rua
“Cada vez temos menos o direito a estar na rua, porque se destrói o espaço público”, explica Marta. “Só se estiveres a ir para casa, para o trabalho, ou então na esplanada do café, que implica sempre consumir”, e essas infraestruturas públicas que tornam o ato de estar na cidade possível estão a ser “propositadamente não dadas”.
“Porque estão só a ver-te como um consumidor e todo o dinheiro que tiverem nunca vai ser posto nisso”, lamenta. A ativista insiste que a luta “é triste” porque é uma luta contra a degradação constante da cidade e “não foi agora que nos lembrámos que era fixe ter sanitários públicos na cidade”, só se luta por “uma coisa que sempre existiu e que agora está a ser tirada à força e em silêncio”.
E apesar da situação estar grave há anos, com Carlos Moedas “tem ficado tudo pior, pior, pior”, desde o lixo às paragens de autocarro. Quando a Infraestrutura Pública criticou a arquitetura hostil das novas paragens, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa desculpou-se na Assembleia Municipal dizendo que as paragens estavam assim por questões de acessibilidade. “Foi uma resposta feia, porque ele disse na cara que tinha sido por uma razão, mas não faz sentido nenhum”, diz Marta.
A ativista mostra diferentes fotos de paragens de autocarro no telemóvel. O coletivo foi medi-las para desmentir Carlos Moedas. Na Rua dos Sapadores, onde há um largo passeio, a nova paragem de autocarros substituiu os bancos por encostos, a um minuto de distância, na Rua da Penha de França, onde a passagem é muito mais estreita, o banco mantém-se. Há ainda outras estações onde não passa uma cadeira de rodas devido a caixotes do lixo, árvores ou candeeiros, mas o presidente da Câmara não menciona nada disso.
“Se dá uma resposta destas, não é normal. Não tem vergonha, está a gozar connosco que vivemos aqui e trabalhamos”, lamenta. “E mesmo que argumentem que não colocaram as coisas assim com motivações de implementar arquitetura hostil, estão a importar de fora” à JCDecaux, que “trouxe para aqui com uma intenção” de que as pessoas em condição de sem abrigo não se possam deitar lá.
Mas as pessoas que precisam dos bancos todos os dias não se deixam enganar tão facilmente. Nas suas intervenções, a Infraestrutura Pública ouviu de tudo. Umas pessoas percebiam que o banco era uma solução temporária e não-oficial, outras achavam que finalmente tinha sido resolvida a situação pela Câmara, mas ninguém aceita que os encostos fiquem como estão. “Há pessoas que viveram a vida toda com bancos naquelas estações, agora que estão mais velhas vamos tiras-lhes isso?”, questiona Marta.
Na rua dos Sapadores, os próprios moradores levaram cadeiras de plástico para a estação, para se puderem sentar. “As pessoas vão lá pôr cadeiras novas, há duas semanas estavam outras mas a junta deve ter recolhido”, explica a ativista. Não é mais uma intervenção organizada da Infraestrutura Pública, é uma expressão espontânea de desagrado com a erosão do espaço público que assombra Lisboa.