Tarifa zero nos transportes públicos: uma escolha para defender o planeta

23 de abril 2020 - 19:34

A Constituição portuguesa estabelece o direito à saúde e à educação como direitos constitucionais, tendencialmente gratuitos. Porque não incluir o direito à mobilidade como um direito constitucional equivalente? Artigo de Heitor de Sousa, publicado na revista Esquerda.

porHeitor de Sousa

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cidade verde

A partir do dia 1 de março os transportes públicos (TP) passaram a ser totalmente gratuitos no Luxemburgo. Esta medida abrange todo o sistema de transportes públicos, independentemente do operador, público ou privado, ou do utilizador, nacional ou estrangeiro.

Será esta a primeira vez em que tal acontece? À escala de um país, é.

É verdade que estamos a falar de um país cuja área (2.586 km2) é um pouco inferior à da Área Metropolitana de Lisboa (3.015 km2) e que, em população (0.6 milhões versus 2.8 milhões), é bastante inferior. Em termos de deslocações, a cidade do Luxemburgo, com 116 mil residentes, é diariamente invadida por 400 mil pessoas, das quais 180 mil são “commuters” (tráfego médio/dia de pessoas que entram/saem da cidade) dos países vizinhos – França, Bélgica e Alemanha. A esmagadora maioria dessas pessoas desloca-se em carros privados, induzindo enormes problemas de congestionamento e de poluição.

Segundo o Índice de Tráfego Global da INRIX[1], a cidade do Luxemburgo ocupava o 15º lugar no ranking das cidades em que os condutores são obrigados a circular devagar, devagarinho ou parados, passando, por ano, uma média de 28 horas nos engarrafamentos citadinos. Extrapolando esse valor para as várias centenas de milhares de veículos que diariamente entopem a circulação automóvel, calcula-se que se desperdiçam cerca de 7 milhões de horas/ano no tráfego, as quais, transformadas em valor, poderá equivaler a um total de 100 milhões de euros perdidos só nos engarrafamentos. Como o Governo prevê um encargo de 500 milhões de euros/ano com a introdução da Tarifa Zero nos TP, isso quer dizer que a eliminação dos engarrafamentos pode representar um benefício de 20% do total do custo do projeto.

Esta questão terá sido uma das principais razões para se avançar com a gratuitidade nos TP a partir de 1 de março de 2020, isto após alguns testes bem-sucedidos realizados no início do ano. A este claro benefício, acresce um outro não menos relevante: a redução de carros a circular nas ruas constitui um importante contributo para diminuir as emissões de Gases com Efeito de Estufa (GEE). Na conferência de imprensa de explicação do projeto, foi ainda invocada uma terceira razão, a que o atual Governo de coligação da chamada “Gâmbia[2]” atribuiu grande importância: «trata-se de uma medida principalmente social», cujo objetivo «é acabar com o aumento do fosso entre ricos e pobres», pois «para as pessoas com baixos rendimentos as despesas de transportes são importantes».

Embora se possa ter bastantes dúvidas sobre o alcance da medida – «acabar com o aumento do fosso entre ricos e pobres» – parece, no entanto, indiscutível que, de entre a população móvel nas grandes cidades, são precisamente os mais pobres a quem o custo dos transportes mais pesa na sua bolsa. Logicamente, com a sua gratuitidade serão estes os principais e imediatos beneficiários.

A Tarifa Zero nos transportes públicos levanta também um conjunto de questões que estão ainda por responder, a principal das quais é saber de que forma o sistema de transportes rodoviário e ferroviário estará à altura de suportar a pressão de um aumento da procura que vai acontecer.

Até 2023, o Governo luxemburguês prevê um investimento público de 2,2 mil milhões de euros nas redes de transportes do país: autocarros e comboios. Porém a experiência mostra que, no imediato, poderão surgir graves problemas de sobrelotação dos veículos, se, porventura (como aconteceu no nosso país com o PART), a oferta disponível não for suficiente para acomodar a procura.

A gratuitidade nos transportes públicos não caiu do céu aos trambolhões nem surgiu de repente na política de mobilidade. De facto, no Luxemburgo, já existia há alguns anos várias componentes do tarifário no TP gratuitas, como sejam, os menores de 20 anos, os estudantes com menos de 30 anos e as pessoas com o rendimento mensal igual ao salário mínimo nacional. O custo anual do passe para todos os transportes (autocarros, metro e comboios) era de 440 euros e por 2 euros podia-se viajar para qualquer ponto do território até 2 horas de duração.

De resto, o que acontecia no Luxemburgo com diversas componentes do tarifário nos transportes gratuitos, também já acontecia em muitas cidades ou aglomerações urbanas de pequena ou média dimensão, espalhadas pelo mundo.

A gratuitidade dos Transportes no mundo

Segundo o sítio freepublictransport.info, no final de 2019 havia 157 cidades de pequena ou média dimensão com modelos diferentes de gratuitidade nos Transportes Públicos.

São ainda poucos os casos onde o sistema de TP gratuitos se aplica à maioria dos seus utlizadores: Changning/China (autocarros); Talin/Estónia (autocarros/metro); Melbourne / Austrália (metro/autocarros); Dunderque (autocarros); Aubagne / França; e Cascais / Portugal.

Nestas cidades, a regra é aplicar a Tarifa Zero aos residentes, não abrangendo os forasteiros. Por isso é que o caso do Luxemburgo é, por enquanto, único: a gratuitidade é universal para quem utilizar os Transportes Públicos.

Nos casos referidos, percebem-se algumas diferenças essenciais nas políticas de transporte em execução que ajudam a compreender melhor as várias dimensões do problema, a saber:

1. Tallin/Estónia – o Tarifário Zero entrou em vigor a 1 de janeiro de 2013. População residente: 450.000. A condição de acesso abrangendo os residentes, foi acompanhada por um desconto fiscal sobre os impostos que incidem sobre o património imobiliário, tendo em vista favorecer a instalação de pessoas em Tallin visando o reforço da população residente, em simultâneo com o aumento da coleta fiscal. As pessoas com +65 anos também beneficiam de transportes gratuitos mesmo que não sejam residentes. Desde que a medida foi implementada a capital estoniana ganhou mais de 25.000 residentes. 

2. Changning City/Hunan na China, a Tarifa Zero teve início a 1 de julho de 2008. A gratuitidade começou por ser aplicada a todos os residentes e visitantes, limitada a 3 carreiras de autocarros que atravessavam a cidade. Ao fim de 8 meses de estudos e avaliações sobre custos/benefícios foi decidido estender a gratuitidade a todas as carreiras de autocarros. População residente: 810.000.

3. Melbourne/Austrália, a gratuitidade incide sobre a rede de metro ligeiro de superfície existente na zona central aplicável a todos os utilizadores, designada por “Free Tram Zone“. População residente: 664.000.

4. Em Dunquerque/França, a gratuitidade abrange toda a rede de autocarros da cidade. Iniciou-se em setembro de 2016 apenas aos sábados e domingos mas em 1 de setembro de 2018, a Tarifa Zero estendeu-se a toda a semana. População residente: 70.000.

5. Aubagne/França, a gratuitidade no TP (autocarros) iniciou-se em 4 de fevereiro de 2009 e aplica-se a todos os residentes da região de “Pays d’Aubagne et de l’Étoile (Bouches-du-Rhône)“, localizada na zona Leste de Marselha. Foi financiada através do aumento de 0,6% para 1,5% da taxa de transportes (“versement transport”) pago pelas empresas que tenham, pelo menos, 9 assalariados ao seu serviço e incide sobre a respetiva massa salarial. Desde 2014, o sistema da gratuitidade foi alargado às linhas de metro ligeiro de superfície (2 linhas de 14 km cada) que, entretanto, foram construídas. População residente: 100.000.

6. Merece igualmente destaque a introdução da gratuitidade nos TP no concelho de Cascais a partir de 1 de janeiro de 2020. Após um primeiro mês de adaptação, o programa passou a aplicar-se, a partir de fevereiro, “a todas as carreiras de autocarros municipais, ou seja, a todas as carreiras que circulam apenas dentro do concelho de Cascais”. Beneficiários: todos os residentes, estudantes e trabalhadores com registo de atividade no concelho, devidamente confirmados por comprovativos da entidade empregadora ou do estabelecimento de ensino que se frequenta. O financiamento do programa, com um custo previsto de 12 milhões de euros/ano, deverá ser assegurado pela coleta do Imposto Único de Circulação (IUC) e pelas receitas do estacionamento tarifado, as quais deverão corresponder a cerca de 40% do custo total do programa. Total de residentes no concelho de Cascais (2018): 212.094 habitantes.

Estes são alguns exemplos que se incluem na listagem atualizada de 157 cidades com transportes gratuitos no mundo. Genericamente, em todos eles, após a adoção destas medidas, o acréscimo da procura nos TP foi, no mínimo, de +50%, ao mesmo tempo que se observou uma redução significativa da circulação automóvel, especialmente nos centros das cidades e nas zonas de maior concentração de comércio e serviços. Por outro lado, tais medidas foram, em regra, acompanhadas de operações de requalificação e reordenamento do espaço urbano, abrindo espaço para alargamento das zonas pedonais ou de lazer, bem como a criação de corredores cicláveis ou para modos suaves de deslocação, em zonas onde antes o automóvel era omnipresente. A melhoria da qualidade de vida foi indiscutível.

Também são conhecidas decisões pontuais de gratuitidade nos TP quando ocorrem situações excecionais nalgumas grandes cidades. Conhece-se o exemplo de Paris com a limitação da circulação automóvel, consoante o número par ou ímpar em que as respetivas matrículas terminam, quando se atingem níveis de alerta de poluição do ar que não podem ser ultrapassados. Em Seul, na Coreia do Sul, quando ocorrem situações climáticas semelhantes, os transportes são grátis nas horas de ponta durante os dias em que a qualidade do ar está pior.

Essas decisões são motivadas por razões ambientais, ao contrário dos cinco casos descritos anteriormente. Nesses casos, a discussão central diz respeito à “viabilidade económico-financeira” da medida da Tarifa Zero e da avaliação Custo-Benefício do custo dos congestionamentos, do aumento dos custos de operação dos veículos e consumos, assim como do tempo perdido pelos condutores e pelos TP, no que se costuma designar por custo generalizado nos transportes.

Só a partir do momento em que o combate às alterações climáticas passou a fazer parte da agenda central das Conferências da ONU sobre o Clima, especialmente desde a Cimeira da Terra no Rio de Janeiro em 1992, que teve continuidade nas sucessivas cimeiras da ONU sobre o Clima, é que se têm vindo a reforçar as medidas e os mecanismos de controlo e avaliação das alterações climáticas que o planeta sofre em resultado de toda a atividade humana predadora do ambiente. Sendo genericamente aceite que o setor dos transportes é responsável por cerca de 25% do total das emissões de gases de efeito estufa (GEE) à escala global, surge então a discussão sobre as medidas mais eficazes para reduzir essa fonte de emissões.

Dir-se-á que muitas das medidas que se conhecem para limitar a circulação dos transportes privados e favorecer o uso dos TP representa, em alguma medida, uma abertura de um caminho para uma política de Tarifa Zero universal nos TP. Os casos analisados sugerem essa hipótese, embora não seja inexorável e automática a adoção duma estratégia de mobilidade compatível. Para reforçar as razões dessa escolha, nada como refletir sobre uma experiência que nos está muito próxima e que se refere à aprovação de um Programa de Apoio à Redução Tarifário (PART) nos transportes públicos, adotado pelo anterior governo PS e que entrou em vigor no passado dia 1 de abril de 2019.

Lições do PART

Nove meses após a introdução do PART não restam dúvidas sobre a relevância de um programa de redução de preços nos transportes provando, mesmo ao pior dos céticos, que o preço elevadíssimo dos transportes era o principal mecanismo-travão para o direito do acesso à mobilidade por parte de largos setores da população portuguesa.

De acordo com dados da Área Metropolitana de Lisboa (AML), entre abril e dezembro de 2019 foram transportados 477 milhões de Passageiros em todo o sistema de transportes, o que representou um acréscimo de +18% face a igual período do ano anterior. Deste acréscimo, 84% do total utilizaram passes Navegante nas suas diferentes modalidades. Nos últimos três meses de 2019, a média mensal da venda de Navegantes foi da ordem dos 770 mil, o que, face a 2018, constitui um aumento de +37,3%, este sim, um aumento que se pode classificar de explosivo face ao ano anterior (ver gráfico 1).

Gráfico 1

Tudo porque o custo para o consumidor teve uma redução bastante significativa no preço de aquisição do passe mensal, o que explica o crescimento da procura de transporte 3 vezes superior ao cálculo preliminar que o Governo fez, em março de 2019, através do Ministério do Ambiente e da Transição Energética (MATE). Nessa altura, o MATE previa um acréscimo de +10% na procura. Três meses depois, o aumento foi 3 vezes superior, sendo que o maior aumento deu-se no transporte ferroviário pesado (+40%). Neste aspeto, a esta evolução não foi certamente estranha o facto de a Fertagus praticar preços perfeitamente absurdos para a realidade portuguesas: 141 euros para uma assinatura mensal nos comboios da Fertagus. Esta realidade mudou radicalmente com o PART, obrigando a uma redução de +70% no custo do passe, ainda por cima multimodal. Se isso não acontecesse, o grupo Barraqueiro dificilmente teria conseguido a borla do atual Governo de ver prolongada por mais cinco anos - até setembro de 2024[3] - a concessão do serviço ferroviário no Eixo Norte-Sul.

A prudência dos cálculos sobre a evolução da procura por parte do governo não representou apenas o falhanço dos pressupostos em que assentou o PART, mas pôs também a nu as graves carências no investimento em transportes que este governo PS não foi capaz ou não quis corrigir, herdado do anterior governo PSD/CDS.

Só quem quer esconder o sol com uma peneira ou quem é pouco conhecedor das questões da mobilidade e transportes é que pode ter ficado surpreendido com a avalanche de pessoas que, desde abril de 2019, passaram a encher os autocarros, metros, comboios nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Consequentemente, multiplicaram-se os episódios de sobrelotação de veículos, algo que já não se via há largas dezenas de anos, obrigando amiúde muitos passageiros a ficarem na paragem à espera do transporte seguinte.

Essa é a segunda lição do PART: a necessidade de cada medida não ser pensada isoladamente, mas ter de ser planeada e articulada no âmbito de um programa de investimento em transportes. Para haver investimento é preciso definir uma estratégia de meios para atingir os objetivos e as metas a atingir para que as decisões sobre os investimentos necessários façam sentido. Nada disto aconteceu com o PART. Em ano de eleições, o Governo geriu o processo da redução radical no custo dos TP para a transformar numa bandeira eleitoral para exibir na campanha, seis meses depois.

Investimento em Transportes precisa-se!

Rapidamente se percebeu que o Governo não contava com uma tão grande avalanche de pessoas nos TP, a partir de abril de 2019. Tal como “em casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão”, assim também, neste caso, os elogios ao PART rapidamente passaram a protesto popular face à falta de material circulante disponível. Protestos que também se estenderam às muitas “zonas brancas” de utentes dos transportes públicos que ficaram de fora do PART, como seja o caso dos largos milhares de passageiros que têm origem fora das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto e que a estas afluem em deslocações pendulares diárias e que utilizam a CP ou qualquer uma das empresas rodoviárias. A estes o PART ainda não chegou, obrigando todas essas pessoas a um sobrecusto nessas viagens, as quais, apesar de algumas reduções, continua a ser bastante superior aos 40 euros do Navegante Metropolitano na AML ou na AMP. O mesmo tipo de “zona branca” e de sobrecusto também se verifica no resto do país nas situações em que as pessoas vivem numa CIM e trabalham numa outra, contígua ou não com a primeira.

Não foi por falta de alertas para as insuficiências e lacunas do PART que o Governo continua a ignorar as propostas feitas na Assembleia da República pelo Bloco no âmbito do Orçamento de Estado de 2019 e 2020. Foi exclusivamente por falta de vontade política que não as aceitou. E sobretudo por causa da sempre presente questão, na “sombra”, em todas as decisões do Governo em matéria de investimento ou de despesa pública: a opção pelo barato pelo dogma do equilíbrio orçamental, hoje em dia atualizado para excedente orçamental.

Esqueceu-se (?) o ministro Pedro Matos Fernandes que não se compram autocarros, nem carruagens de metro ou comboio, nem barcos, tal como se compra um automóvel num stand. E que as compras têm de ser antecedidas por concurso público. E que, após a sua adjudicação, se não houver reclamações, tem de se passar à encomenda do material, obrigando nessa altura a abrir os cordões à bolsa com uns largos milhões de euros…

Ora, como a escassez do investimento em autocarros, metros, comboios e barcos é generalizada, não seriam apenas necessários alguns milhões de euros para se acudir a emergências de falhas de material neste ou naquele modo de transporte, mas sim muitos mais milhões para todos os modos de transporte[4]. Mas nas Finanças manda o ministro Centeno e, como “todos os ministros são Centeno”, o investimento ficou-se pelas promessas, alinhando-se com a escola do chamado “défice zero”.

“Queremos défice zero”? Então não há investimento para ninguém, empurra-se com a barriga e adia-se os problemas.

Veja-se o que tem acontecido com o processo de aquisição de 22 novos comboios para a CP. Este ainda não passou da fase do concurso, 18 meses depois do ministro Pedro Marques, “especialista na propaganda de obras governamentais” do anterior governo PS ter anunciado, em setembro de 2018, o lançamento do respetivo concurso público. Na verdade, o concurso só foi realmente lançado quatro meses depois, mas todo o processo bloqueou recentemente quando um dos concorrentes impugnou a decisão da adjudicação. Refira-se que o atual ministro das Infraestruturas e Habitação, Pedro Nuno Santos, reconheceu no Parlamento que “esta impugnação implicará mais um atraso relevante no processo”. Com algum jeitinho, o ministro Centeno pode ficar descansado que os cerca de 50 milhões de euros necessários para formalizar a encomenda do material, só serão precisos lá para 2021. Tendo na mente o anunciado excedente orçamental para 2020, Centeno agradecerá.

O combate às alterações climáticas por parte de países que têm um largo défice de investimento público em redes e serviços de transportes públicos, como é o caso português, exige que esse esforço de investimento seja continuado e sistemático. Por isso, não se pode ter apenas o horizonte de uma legislatura, sendo necessário que nas próximas duas décadas se consiga recuperar o atraso existente no país.

O crescimento exponencial do investimento público, em particular do investimento ferroviário (na reabilitação e requalificação das existentes ou na construção de novas linhas para novos destinos, para viagens mais rápidas e confortáveis em novos comboios com tipologias ajustadas às novas linhas e em muito maior número), bem como a introdução de padrões de qualidade e de sustentabilidade ambiental nos transportes urbanos e regionais (motores cada vez mais limpos e sistemas de mobilidade baseados em metros ligeiros de superfície para várias regiões do país e não apenas Lisboa e Porto), constituem linhas orientadoras para um Programa Nacional de Investimentos nas Redes de Transportes Públicos que terá de ser necessariamente muito mais ambicioso do que o enunciado contido no chamado Programa Nacional de Investimentos 2030 (PNI2030).

O combate às alterações climáticas por parte de países que têm um largo défice de investimento público em redes e serviços de transportes públicos, como é o caso português, exige que esse esforço de investimento seja continuado e sistemático. Por isso, não se pode ter apenas o horizonte de uma legislatura, sendo necessário que nas próximas duas décadas se consiga recuperar o atraso existente no país.

O Bloco foi pioneiro na legislatura anterior através da apresentação de uma proposta de Plano Ferroviário Nacional para as próximas duas décadas que, infelizmente, não teve o acolhimento que a urgência da proposta reclamava. Está na altura de voltar a esse debate e aprovar um Plano de Investimentos que faça da ferrovia o motor do desenvolvimento económico do futuro, mais equilibrado e mais amigo do ambiente.

Tarifa Zero nos TP: quanto pode custar?

No início deste artigo, equacionaram-se algumas estimativas dos efeitos que a introdução da gratuidade nos TPs no Luxemburgo deverá ter no país e na mobilidade das pessoas.

Mas, por um momento, pensemos na situação ao contrário. Isto é, como poderia ser “transportado” o exemplo do PART para a realidade do Luxemburgo: qual deveria ser o nível de preço dos passes nesse país para que o seu custo fosse equivalente ao que os portugueses pagam pelo passe Navegante Metropolitano?

Se tal acontecesse, considerando o nível de vida existente no Luxemburgo, medido pelo SMN, o valor equivalente do passe dos transportes deveria ser de 14€ e não de 40€. Ou seja, em Portugal, paga-se, pelo mesmo passe, 3 vezes mais do que pagaria qualquer cidadão ou cidadã luxemburguesa se houvesse um PART aplicado no seu país… Portanto, temos ainda muito caminho para percorrer até atingirmos o limiar de preço que correspondia ao preço dos transportes no Luxemburgo, antes da decisão da Tarifa Zero desde o passado dia 1 de Março.

Mesmo assim, os dados que se conhecem sobre a evolução do número de passes e das estimativas de receitas dos mesmos ao longo do ano de 2019 permitem-nos conhecer a situação com rigor e simular o custo de uma Tarifa Zero dos TPs, por exemplo, na Área Metropolitana de Lisboa (AML).

Tendo presente os números das vendas dos passes na AML no início deste artigo, pode construir-se uma estimativa para as receitas arrecadadas por tipo de passe e para os totais mensais, nos termos do gráfico 2.

Gráfico 2

Principais conclusões:

> O número de passes, sob as mais variadas formas, tem sido crescente ao longo do ano, começando, em abril, com 625.000 e atingindo, no último trimestre, uma média de 770 mil passes vendidos (+23%);

> O Navegante Metropolitano equivale a 60% do total de passes vendidos, mas, em termos de receita, vale 69% da receita total arrecadada;

> O Navegante Família é o tipo de passe que mais tem crescido desde a sua criação, equivalendo a 4% do total da receita estimada;

> Urge corrigir a situação de largos milhares de passageiros que têm de se deslocar entre CIMs contíguas ou entre uma CIM e as AMs para poderem beneficiar igualmente do PART, em especial, integrando o serviço regional de comboios da CP no PART.

Considerando a comparação com o ano de 2018, atente-se nas estimativas para a evolução dos passes e receitas anualizadas no período em análise.

Tabela 1

Os dados mostram que o acréscimo de passes vendidos anualmente serão da ordem de +637.120 passes, equivalendo a uma receita líquida estimada em 22,1 milhões de euros. Feitas as contas, considerando os 73 milhões de euros da verba inscrita no OE2019 para o financiamento da aplicação do PART na AML pode-se concluir que o esforço líquido do Estado com o PART se reduziu em 30% apenas com o acréscimo de passes vendidos, para cerca de 50 milhões de euros.

Por outro lado, extrapolando os valores médios obtidos ao longo de nove meses de 2019 para um ano, e admitindo um perfil de mobilidade constante, estima-se que o custo de um programa generalizado de Tarifa Zero na AML seria da ordem dos 290 milhões de euros/ano, conforme estimativas da tabela seguinte.

290/300 milhões de euros seria a dimensão do envelope financeiro para tornar os TP gratuitos na AML tendo por base o nível do que aconteceu em 2019. Esse seria o valor da despesa pública anual se se optar por uma estratégia de transportes públicos consequente para garantir o direito de acesso à mobilidade como um direito universal, a exemplo do que hoje se considera quando nos referimos ao direito de acesso à educação ou à saúde como direitos universais.

A Constituição portuguesa estabelece o direito à saúde e à educação como direitos constitucionais, tendencialmente gratuitos. Porque não incluir o direito à mobilidade como um direito constitucional equivalente?

É desejável por razões de democracia. E será cada vez mais necessário por razões de combate às alterações climáticas, pois as novas políticas de redesenho e requalificação do espaço público, especialmente nas zonas históricas e/ou de maior concentração da atividade socioeconómica, tende a restringir crescentemente o acesso de automóveis às zonas de Emissões Zero, o que implica que a única alternativa de acesso a essas zonas são os Transportes Públicos. Neste contexto, a Tarifa Zero nos TP não só será necessária como constituirá condição de acesso massivo das pessoas a essas zonas de Emissões Zero. Naturalmente, que a contrapartida para o sucesso de tais medidas exige mais e muito melhores rede de Transportes Públicos nas cidades e nas grandes regiões urbanas e metropolitanas.

Lisboa prepara-se para uma chamada “revolução” na limitação do acesso do automóvel privado à zona de Zero Emissões, entre a Av. Liberdade e o rio Tejo. A uma zona de Emissões Zero só pode corresponder uma Tarifa Zero nos TP, assegurado por uma rede de elétricos cada vez mais alargada e por autocarros de Emissões Zero ou de emissões reduzidas. Aqui fica o desafio.


Artigo de Heitor de Sousa, publicado na revista Esquerda em março de 2020.


Notas:

[1] INRIX Global Traffic Scorecard inrix.com/scorecard

[2] Formada pelo azul do Partido Democrata, o vermelho do Partido Socialista e o verde dos Verdes, tal como a bandeira daquele país africano.

[3] Neste caso, a concessão do eixo ferroviário Norte-Sul,
que terminava em 31/12/2019, foi renegociada à última
da hora pelo atual governo PS por mais cinco anos, até
30 de setembro de 2024.

[4] O aluguer de 24 composições ferroviárias à RENFE implica um encargo anual de 8,5 M€ até 2022, num total de cerca de 34 M€.

Heitor de Sousa
Sobre o/a autor(a)

Heitor de Sousa

Economista de transportes