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O transporte público pode ser gratuito

Não pomos moedas nos candeeiros públicos nem pagamos ao minuto nos jardins públicos. Há boas razões para fazermos das tarifas do metro e do autocarro uma coisa do passado. Artigo de Wojciech Kębłowski.
Transporte público em Talin.
Transporte público em Talin. Foto do site da companhia municipal de transporte da capital estónia.

A acreditarmos nos especialistas e profissionais dos transportes, a abolição das tarifas para todos os passageiros é a última coisa que os operadores de transportes devem fazer. Para Alan Flaush, um ex-CEO da autoridade pública de transportes de Bruxelas e atual Secretário Geral da Associação Internacional de Transportes Públicos, “no que diz respeito à mobilidade, o transporte público gratuito é um absurdo”.

Para Vincent Kauffmann, professor da Universidade de Lausanne e uma das figuras chave da mobilidade sustentável, “transporte público grátis não faz qualquer sentido”. Livrarmo-nos dos bilhetes no trânsito de massas é visto como “irracional”, “antieconómico” e “insustentável”.

Contudo, se ouvirmos os comentadores fora do âmbito temático dos transportes, a opinião sobre a abolição das tarifas muda radicalmente. Cientistas sociais, ativistas, jornalistas e responsáveis públicos — muitas vezes falando a partir de cidades onde a abolição das tarifas foi testada — defendem fervorosamente a medida.

Para Judith Dellheim, investigadora da Fundação Rosa Luxemburgo em Berlim, fornecer acesso livre ao transporte público é “o primeiro passo para a transformação socio-ecológica”. Para Michiel Van Hulten, um dos primeiros proponentes do transporte público gratuito na Europa, “trata-se do regresso aos bens comuns”. Por fim, de acordo com Naomi Klein, isto é mesmo o que as cidades deviam estar a fazer — “para responder de facto à urgência das alterações climáticas, o transporte público terá de se tornar gratuito”.

Experiências de tarifários gratuitos

Apesar da controvérsia que pelos vistos cria, o número de cidades a experimentar o transporte público com tarifa gratuita (TPTG) está a crescer. Em 1980, havia apenas seis. Em 2000, o número tinha crescido para 56. Hoje em dia o TPTG existe na sua forma “completa” em pelo menos 98 cidades e vilas em todo o mundo. A abolição completa das tarifas significa que as viagens gratuitas estão disponíveis para a grande maioria dos serviços e rotas dos transportes públicos locais, para a grande maioria dos utilizadores e em grande parte do tempo. Noutras centenas de cidades, as tarifas estão suspensas de forma parcial — seja em zonas específicas das cidades ou modos de transportes, ou em períodos específicos do dia ou do ano.

Foi nos Estados Unidos que apareceu o primeiro caso de sistema de TPTG completo — em 1962 na cidade de Commerce, nos subúrbios de Los Angeles — e onde podemos encontrar a maior parte dos programas de TPTG nos anos 1970, 1980 e 1990. Nessa altura, os proponentes da abolição de tarifas na América do Norte baseavam-se em argumentos políticos e sociais, sublinhando as vantagens sociais esperadas com a abolição das tarifas, e argumentando que acabar com as tarifas podia ajudar ao aumento da utilização de transportes públicos e fazer face ao grande investimento na infraestrutura automóvel.

As maiores experiências desse tempo — entretanto descontinuadas — situavam-se em Mercer County (Nova Jérsia) e Denver (Colorado). Hoje em dia, o TPTG existe em 27 localidades nos Estados Unidos: pequenas áreas urbanas ou rurais (por exemplo Edmund, Oklahoma; Kootenai County, Idaho) campus universitários (Chapel Hill, Carolina do Norte; Macomb, Illinois) e parques naturais ou estâncias turísticas (Crested Butte e Estes Park, ambas no Colorado).

A primeira experiência europeia de abolição de tarifas começou em 1971 em Colomiers, nos subúrbios de Toulouse (França) e foi logo seguida por Roma e Bolonha. O caso mais famoso de abolição de tarifas foi talvez o de Hasselt, na Bélgica. Confrontado com o problema dos engarrafamentos de trânsito, o presidente do município afirmou em 1996 que “nós não precisamos de estradas novas, precisamos de ideias novas”. Hasselt abandonou os planos para construir uma nova circular e em vez disso eliminou as tarifas e reabilitou a rede de transportes coletivos, dando-lhe prioridade real. Os aumentos nos custos operacionais e as mudanças no governo da cidade acabaram por levar ao cancelamento da política de transportes gratuitos de Hasselt em 2014.

Desde os anos 2000, surgiu na Europa uma panóplia de sistemas de tarifa grátis, onde encontramos a maioria (56) dos casos de TPTG completos. Boa parte deles situam-se na Polónia (21, todos iniciados desde 2010) e França (20). Muitos municípios europeus justificam o TPTG como uma estratégia para reduzir o uso do automóvel (como em Avesta, na Suécia ou em Belchatów, na Polónia) ou a poluição e ruído do automóvel (Tórshavn, nas Ilhas Faroé). Em muitas cidades, são usados argumentos socio-políticos: o TPTG é concebido explicitamente como uma política social dirigida aos grupos desfavorecidos (como em Lubin, na Polónia; Colomiers e Compiègne, na França), ou como uma tentativa de redefenir o transporte coletivo como um bem comum (Aubagne, França; Miawa, Polónia).

A geografia da abolição de tarifas abrange portanto pequenas e médias cidades com menos de cem mil habitantes. A maioria delas não passa nas notícias — alguma vez ouviu falar de Kościerzyna ou Vitré, Hallstahammar ou Lugoj, Velenje ou Akureyri? Uma exceção importante é Talin, a capital da Estónia, que é a maior cidade (440 mil habitantes) a acolher um programa sem bilhetes, sendo um bom argumento para mostrar que o TPTG pode funcionar numa área urbana maior.

Ainda assim, os especialistas em transportes parecem convencidos de que a abolição de tarifas é irracional, insensata e irresponsável. Como compreender então que apesar disso ela exista em quase cem cidades em todo o mundo? Em baixo irei passar ao debate e ilustrar alguns dos argumentos com exemplos de programas de TPTG que existem em Talin (Estónia) e Aubagne (França). A escolha destas cidades não é por acaso; cada uma delas é importante para analisar o TPTG. Aubagne, situada nos subúrbios de Marselha, está entre os casos mais discutidos de abolição das tarifas em França, um importante centro de TPTG. Enquanto Talin promove a sua imagem como “a capital do transporte público gratuito” e divulga ativamente esta política tanto no seu país como no estrangeiro.

Prejudicial e irracional?

Boa parte dos académicos e profissionais discutem o TPTG na base da sua utilidade, eficiência e contribuição para o crescimento económico (ou falta dele). A ideia de abolir as tarifas é criticada por ameaçar a estabilidade financeira das redes de transporte público. O acesso gratuito a autocarros e trams elimina a receita de bilhética e aumenta o custo de manutenção da segurança e da resposta à maior procura por parte dos passageiros. Como explica um responsável dos transportes de Montpellier (França), acabar com as tarifas é uma política que “priva o transporte público de recursos essenciais para o seu desenvolvimento”. Também de acordo com muitos engenheiros e economistas dos transportes, o transporte público devia funcionar como uma entidade auto-sustentável ou lucrativa, submetida aos mecanismos do mercado.

O TPTG é então uma “falsa boa ideia” baseada na ilusão de que “há bens e serviços que não têm custos”. Por outras palavras, reduzir o preço a zero alegadamente desvaloriza o serviço tanto para os operadores como para os passageiros-clientes. Finalmente, o TPTG é muitas vezes retratado como uma ideia irracional. Supostamente, as tarifas são não apenas uma fonte de receita económica, como um mecanismo que controla o comportamento dos passageiros. Sem bilhetes, os passageiros fariam viagens que os engenheiros clasificam de marginais, “não-produtivas” ou mesmo “inúteis”. Simplificando, é a existência de bilhetes que impede os passageiros de enlouquecerem.

Mas há analistas que sublinham que abolir as tarifas pode ajudar a diminuir os custos com equipamento e pessoal. Ao vermo-nos livres dos vários aparelhos e máquinas que vendem, validam e fiscalizam os bilhetes, poupamos dinheiro. Deixa de se pagar comissão sobre as vendas de bilhetes noutros locais, bilhetes em papel ou eletrónicos, e serviços de contabilidade.

Ao mesmo tempo, a receita perdida das vendas de bilhetes só costuma ser uma parte do orçamento total do transporte público. Isto significa que os custos reais da manutenção e investimento num sistema público de transportes nunca são inteiramente cobertos pelos passageiros — o subsídio público tem aqui um papel bem mais importante.

Estes argumentos apoiam-se na experiência de Talin e Aubagne. Antes de Talin mudar para um sistema de tarifas grátis, apenas um terço do orçamento operacional da sua rede de transporte público era coberta pelas receitas tarifárias, enquanto os restantes dois terços eram pagos por um subsídio municipal. Fundamentalmente, as tarifas grátis são apenas para os residentes recenseados na cidade.

Em resultado disso, entre maio de 2012 (sete meses antes da implementação do TPTG) e maio de 2016 o número de residentes de Talin cresceu de 415 mil para 440 mil, atraídos evidentemente pelo acesso a viagens grátis. Como os municípios da Estónia têm o direito de arrecadar uma parte do imposto sobre rendimentos dos seus residentes, e a contribuição média por residente é de cerca de 1.600 euros por ano, ao ganhar 25 mil residentes isso significa arrecadar mais 40 milhões de euros por ano em receita fiscal. Isso chegou e sobrou para cobrir a receita perdida dos bilhetes (12.2 milhões) e os investimentos feitos para responder ao aumento da procura (11.7 milhões). Assim, em vez de perder dinheiro, Talin ganhou 16.3 milhões de euros por ano.

Em Aubagne, a receita das tarifas era ainda menor (8.6% do orçamento operacional) e andar à borla nos transportes era uma atitude comum. A mudança para o TPTG permitiu às autoridades locais aumentarem a contribuição para os transportes — um imposto que os municípios franceses cobram às empresas com mais de 11 trabalhadores. Seguindo a lei francesa, o imposto pôde ser aumentado de 1.05% para 1.8%  assim que Aubagne se comprometeu a construir uma linha de tram com direito preferencial de passagem — um projeto que deve ser visto como indispensável na transição para uma rede sem tarifas que, para além de pôr as tarifas a zero, significou uma reformulação e melhoramento dos serviços de transporte público. O aumento desse imposto aumentou a receita em 5.7 milhões de euros, que em conjunto com as poupanças operacionais (160 mil euros) cobriu de longe o custo da abolição de tarifas (1.57 milhões).

Insustentável?

Outro conjunto de argumentos a propósito do TPTG anda à volta da questão da sua capacidade de contribuir para a mobilidade “sustentável”. Nessa perspetiva, o transporte é visto como componente chave para a “boa cidade”, que é não só economicamente forte, mas também socialmente coesa e diversa, amiga do ambiente, saudável e participativa. Para aumentar a “qualidade de vida” e a “habitabilidade”, os proponentes da mobilidade sustentável concentra-se no desafio de facilitar uma mudança dos carros para os transportes públicos e modos “leves” como andar de bicicleta ou a pé.

Nesta perspetiva, os investigadores em transporte sustentável afirmam que desincentivar o uso de carros — através da política de parqueamento, taxas de congestionamento ou aumento dos impostos sobre combustíveis — é mais eficaz no que toca à regulação da mobilidade automóvel do que abolir tarifas no transporte público. Além disso, partem do princípio de que os novos passageiros atraídos pelo TPTG são peões e ciclistas, em vez de automobilistas. Ou seja, para muitos operadores de transportes, reduzir o preço dos bilhetes a zero contraria os esforços para aumentar a qualidade do seu serviço.

Nenhum destes argumentos parece válido quando se olha para os dados dos exemplos reais de TPTG. Em primeiro lugar, qualquer um dos programas de abolição de tarifas indica que houve um aumento significativo no número de passageiros. Em Talin, após três anos de abolição de tarifas, o número de passageiros subiu 14%. No mesmo período em Aubagne, cujo transporte público estava claramente subutilizado, o número de passageiros aumentou uns espantosos 135.8% Como pode tal aumento de passageiros — independentemente de usarem antes o carro, a bicicleta, ou caminharem — ser considerado um fenómeno negativo?

Embora não estivesse entre os principais objetivos desta política, o TPTG atraiu mesmo alguns automobilistas para o transporte público. Em Talin, a fatia do transporte público cresceu 9% e a dos carros caiu 3%. Em Aubagne, embora não haja dados exatos, nas sondagens feitas aos passageiros observou-se uma mudança menor para o transporte público: 20% dos novos passageiros que costumavam conduzir diziam ter abandonado o uso do automóvel por causa das viagens grátis. Por último, embora em Talin tal como em Aubagne a qualidade do transporte público já tivesse aumentado antes da abolição das tarifas, ela continuou a aumentar não apesar, mas muito por causa do TPTG. Disponibilizar viagens grátis aos passageiros reuniu ainda maior apoio político para o desenvolvimento do transporte público, que permanece no centro da agenda política em ambas as cidades.

Socialmente justo, politicamente transformador

O terceiro conjunto de argumentos no debate sobre TPTG olha para esta medida não em termos da sua viabilidade económica, mas no seu potencial para facilitar uma profunda transformação social e política a longo prazo. O valor fundamental da abolição de tarifas está na simplificação da forma como é usado o transporte público: pode ser usado por qualquer pessoa, a qualquer hora, de acordo com quaisquer necessidades que possam ter. O transporte público é então imaginado não como uma mercadoria, mas como um “bem comum” — semelhante a tantos outros serviços públicos como a saúde, educação, jardins, estradas, passeios, ciclovias, postes de iluminação, bibliotecas, escolas, jardins de infância ou parques infantis.

Tal como acontece nestes serviços, podemos imaginar o transporte público a ser fornecido gratuitamente, independentemente de se precisar dele alguma vez ou não. Afinal de contas, não precisamos de pôr uma moeda para acender um candeeiro de rua quando vamos à noite para casa, ou pagar por cada minuto que passamos no jardim público ou na biblioteca.

Neste sentido, o TPTG introduz uma lógica diferente no transporte. Afasta-se do foco na rentabilidade ou gestão da procura na lógica de mercado. Desafia diretamente o dogma do livre-mercado de que “continua a conceber o pagamento como forma de assegurar o respeito pela infraestrutura”.

Para alguns responsáveis municipais, ele enquadra-se na visão socialista do transporte enquanto um serviço público, acessível e comportável. Para outros, exprime um princípio mais radical e anticapitalista de desmercadorizar os serviços e bens comuns, e sinaliza a transição dos “passageiros-clientes” para  os “cidadãos”. Abolir as tarifas pode ser visto como uma forma de desafiar o controlo biopolítico sobre os passageiros, exercido através da bilhética e da vigilância, muitas vezes acompanhado de estratégias de policiamento dirigidas sobretudo aos utilizadores indocumentados.

Finalmente, disponibilizar acesso incondicional ao transporte público é elogiado por se dirigir de forma direta ao problema da exclusão social, desigualdade e pobreza no transporte. Aumentar a acessibilidade para passageiros de baixos rendimentos significa criar um sistema de transportes mais socialmente justo. Uma rede sem tarifas “mostra solidariedade com os fracos, com os que não podem pagar um carro, com os que estão dependentes do transporte público, que são particularmente afetados pelos seus inconvenientes”.

Esse resultado está bem à vista em Talin. O acesso incondicional ao transporte público resultou no aumento da utilização por parte de desempregados (32%) e grupos com baixos rendimentos (26% entre os residentes com rendimento inferior a 300 euros mensais). Os autocarros e os trams são usados mais frequentemente por residentes com baixa ou licença parental (21%) e pensionistas (17%). Este fenómeno é visível entre grupos etários e em especial nos jovens (21% entre os 15 e os 19 anos), a meia idade (16% entre os 40 e 49 anos) e os idosos (19% entre residentes dos 60 aos 74 anos).

A utilização do transporte público aumentou nos complexos habitacionais pós-soviéticos onde vive boa parte dos residentes russófonos de Talin, ajudando à integração deste grupo étnico. Ao mesmo tempo, o uso de transporte também tem aumentado nos bairros da classe média, demonstrando que as viagens grátis não atraem apenas os pobres.

Contudo, é evidente que o TPTG “não vai resolver todos os nossos problemas; na melhor das hipóteses será apenas o primeiro passo” em direção a uma transformação alargada das relações de poder que moldam a política de transportes. Contrariando os especialistas em mobilidade que afirmam que os passageiros estão mais preocupados com os temas da segurança, frequência, fiabilidade e disponibilidade do transporte, muitas organizações e movimentos têm feito campanhas pela abolição de tarifas.

Um desses exeplos é o Movimento Passe Livre que surgiu no Brasil durante os protestos contra o aumento do preço dos transportes em junho de 2013. O tema do aumento dos bilhetes era importante não apenas como um sinal da desigualdade gritante da mobilidade entre os automobilistas e os pobres que não tinham alternativa ao transporte público. O TPTG também constituiu um grito de alerta contra a contínua mercadorização dos serviços públicos e a sua imposição de considerações puramente económicas, “racionais” e “sustentáveis”.

E os trabalhadores?

Continuando o debate, o tema do TPTG também discute a posição dos trabalhadores. Como pode afetá-los esta mudança para a abolição de tarifas? Em muitas cidades, incluindo Talin e Aubagne, o TPTG tem sido aplaudido pelos motoristas por melhorar as suas condições de trabalho. Mesmo que o horário e o salário tenham ficado como antes, os motoristas já não têm de monitorizar ou vender bilhetes a bordo, o que era uma fonte de stress considerável.

A mudança para o TPTG também significa que os motoristas já não têm de contar dinheiro no fim do dia de trabalho. Em Aubagne, um motorista disse-me que o TPTG “é o paraíso. Já não há o stress com os borlistas ou de verificar os bilhetes. O motorista pode concentrar-se em conduzir e dar os bons dias aos passageiros e mais nada.” A política “transformou o trabalho do motorista de autocarro, que agora só tem uma coisa na cabeça: conduzir bem o autocarro”.

A mudança não foi inteiramente positiva para todos os trabalhadores. Em Talin, 70 dos 80 fiscais de bilhetes foram considerados dispensáveis. Em Aubagne, os fiscais ficaram responsáveis pela segurança a bordo dos autocarros, já que inicialmente se previu que o fim das tarifas iria trazer mais vandalismo. Quando se percebeu que os riscos para a segurança eram pequenos, os fiscais passaram a supervisionar a atitude e desempenho dos motoristas — em vez de monitorizarem os passageiros, agora monitorizam outros trabalhadores.

A redução das tarefas com o TPTG deixou na mesma, ou enfraqueceu, a posição dos motoristas face às suas agências de transporte. Em Talin, embora os motoristas possam aderir ao sindicato criado na empresa, a sua capacidade real para forçar a negociação coletiva continua a ser gravemente limitada por um sistema em que os bónus salariais individuais não são atribuídos a trabalhadores que levantam obstáculos à política da empresa. Como me disse um motorista, “com ou sem tarifas, há um bónus fixo mensal: se o horário é cumprido, o bónus é pago, mas se fazes uma queixa então o bónus pode ser reduzido”.

Em Aubagne, o TPTG foi introduzido no contexto de uma mudança de uma empresa do tipo familiar para uma rede privatizada a cargo de um ramo da Veolia, uma empresa transnacional francesa. Para um sindicalista local, existe “uma grande contradição entre abolir tarifas e deixar uma empresa privada a gerir isso”. Embora a Veolia tenha aderido e se tenha adaptado ao TPTG, ao mesmo tempo implementou uma série de medidas para “racionalizar” a rede de transporte público. Por exemplo, a pontualidade individual dos motoristas começou a ser medida por um sistema GPS, e a sua responsabilidade na gestão da empresa diminuiu gradualmente. A introdução do TPTG veio complicar a sua situação em vez de os empoderar na sua luta para aderirem ao sindicato da sua escolha, ou ter voz no debate sobre a política da empresa.

O transporte não é (apenas) sobre o transporte

A controvérsia criada pela questão da abolição de tarifas revela um problema maior que diz respeito à forma como o transporte público é concebido e analisado. O debate sobre transportes parece dominado por narrativas técnicas e económicas, enquanto as dimensões claramente sociais e políticas da mobilidade são muitas vezes postas de lado. No caso particular do TPTG, abordar a política como um mecanismo de transporte dá origem a uma série de mitos e mal-entendidos que não encontram substância nos exemplos existentes de programas de TPTG. Embora se diga que a abolição de tarifas leva à bancarrota, na verdade pode ajudar a criar novas receitas, atraindo novos residentes contribuintes (Talin) ou aumentando os impostos locais (Aubagne). Enquanto é atacada como uma medida que falha em tornar as cidades mais sustentáveis e habitáveis, há provas de que as viagens grátis atraem em alguma medida os automobilistas, o que ajuda ao aumento da utilização de transportes públicos, que por sua vez reduz a poluição e o ruído. A qualidade dos serviços de transportes grátis não é necessariamente pior que nos transportes pagos — o TPTG pode ser uma poderosa afirmação simbólica do apoio político aos transportes coletivos.

Noutras palavras, as políticas de transportes não são (apenas) sobre transportes. É olhando para o TPTG como uma política urbana em vez de uma política de transportes que podemos começar a compreender por inteiro a sua ambição e impacto. Isso exige olhar para ela não a partir do vácuo dos modelos matemáticos ou da análise de padrões de tráfego, mas no contexto do local onde é desenhada e implementada — subjacente às relações de poder e lutas políticas, interagindo com o seu contexto social e espacial, afetando as condições laborais dos seus trabalhadores. Isso significa que enquanto a política de abolir as tarifas dos transportes públicos está obviamente ligada ao campo do transporte, não pode ser entendida apenas como uma política de transportes.


Wojciech Kębłowski é geógrafo e investigador de pós-doutoramento no Centro de Investigação Urbana COSMOPOLIS da Universidade Livre de Bruxelas. Artigo publicado em International Viewpoint. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net
 

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