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Ser clandestino em tempo de ditadura e por causa dela

Estar numa casa clandestina é ter medo de cada toque de campainha, de cada barulho na rua mais estranho, de cada cara fora do habitual. Outro confinamento é o do isolamento na prisão. Caxias. Entramos, aferrolham a porta. Aquele som da chave a rodar, sem volta atrás. Por Isabel do Carmo.

 

O esquerda.net tem publicado um testemunho por dia de resistentes antifascistas sobre o seu quotidiano na prisão e/ou na clandestinidade e as estratégias que encontraram para combater o isolamento.

Todos os testemunhos publicados até ao momento estão reunidos aqui:

Confinamento(s) em tempo de ditadura

Projeto organizado por Mariana Carneiro.


Ser clandestino em tempo de ditadura e por causa dela

A resistência durante os 48 anos de ditadura convém ser medida nessa escala. Enquanto na resistência ao nazismo nos países ocupados durou o tempo da guerra, aqui, em Espanha e na Grécia, durou décadas e apanhou três gerações.

Ser clandestino ou era uma opção para fazer tarefas clandestinas, e para isso era necessário ter uma identidade social de fachada, ou era-se clandestino porque de outro modo se era preso, porque tinha havido uma denúncia. Eu fui clandestina porque fui denunciada num interrogatório de um preso. Não tive outra opção. Andei por várias casas. Algumas legais, sem a presença dos habitantes habituais, outras com os seus habitantes legais, "normais". Outras alugadas com falsos nomes e com uma vivência construída com um cenário de fachada.

Numa delas estive com a minha filha de ano e meio, sozinha com ela. Foi muito difícil. Ela pedia rua, pedia o cão, que andava pela rua. Era difícil entretê-la. Eu estava dependente dos camaradas, que me traziam comida e noticias ou faziam reuniões. Depois vi que era impossível continuar com a minha filha. E a separação tem um tema principal: até quando? Tenho uma grande admiração por essas mulheres que estiveram anos em casas clandestinas, suportando uma vida de fachada, rectaguarda de uma rede em que elas suportavam uma dupla sombra, visto que raramente participavam nas reuniões ou da acção política directa.

Estar numa casa clandestina é ter medo de cada toque de campainha, de cada barulho na rua mais estranho, de cada cara fora do habitual. É tão diferente deste confinamento actual, que muitas vezes sinto uma comparação e uma euforia, porque estou aqui porque quero, abro a janela, falo com a vizinha do lado pela escada de serviço. Sou livre. Pus uma bandeira vermelha à janela no dia 25 de Abril. Que alegria! Não tenho medo.

Outro confinamento é o do isolamento na prisão. Caxias. Entramos, aferrolham a porta. Aquele som da chave a rodar, sem volta atrás. E a nossa solidão. Sem livros, sem papéis, sem relógio. Em frente a janela gradeada a dar para um muro. E no cimo do muro as botas de um guarda para cá e para lá. WC privativo, para não haver saídas da cela. Quinze minutos por dia "recreio": um pátio de altos muros, sem tecto e sem gente. Suportei muito mal este isolamento, tanto mais que me enfrasquei em café, pois tinha isso sim, comigo, um frasquinho de Nescafé. Má ideia, pois fiquei intoxicada em cafeína, com as respectivas consequências. O isolamento é uma tortura e muitos foram os que o suportaram por largos meses e heroicamente. Li o depoimento de um sobrevivente dos campos de concentração, onde este dizia que o isolamento era pior que os campos, porque nestes havia gente.

O ser humano sobrevive em colectivo. Fica menos inteligente isolado. Definha.

Curiosamente, depois da contra-revolução, em 1978, fui presa durante quatro anos e estive oito meses em isolamento, primeiro na cadeia da PJ do Porto e depois em Caxias. Outra vez os quinze minutos de recreio e os mesmos guardas do antigamente, com as mesmas conversas. Condenada na Boa-Hora por dois juízes ultra do plenário. Julgamento depois anulado.Com um procurador da Intersindical (era na altura a onda dos procuradores) a pedir a pena máxima dentro da acusação. Parecia um filme de reconstituição do antigamente. Sala cheia de polícias. Calabouços da Boa-Hora, mais confinamento. Sinistro. A chamada esquerda revolucionária e alguns socialistas foram solidários. A outra, ou foi cúmplice ou calou-se. Mais uns meses de isolamento nas Mónicas. Celas de pedra exíguas. Janela estreita, gradeada, com profundidade superior a um braço estendido. Grande diferença em relação a estes confinamentos pós-contrarrevolução. Tinha livros, jornais, revistas, cadernos, papéis! É uma grande diferença. E enquanto o meu filho dormia a sesta era uma festa de leitura. Depois dava-lhe revistas para rasgar. O rapaz é agora um grande leitor. E vou com os filhos dele, de seis e três anos, uma vez por semana à livraria.

De modo que este confinamento comparado com os do passado, principalmente durante a ditadura, é uma festa. É voluntário. Temos livros, revistas e jornais. Televisão. Internet. Telemóvel. Vizinhos. Escadas de comunicação, mesmo que seja com máscara e a dois metros. Ouvimos as vozes da família quando queremos e como queremos. Há programas sofisticados para fazermos reuniões. Detesto, porque tenho dificuldades de aprendizagem e um Mac antigo, mas isso é geracional.

E sobretudo temos acesso a informação científica correcta, temos um SNS à altura.

E temos esperança.

Só os da minha geração sabem o que era o verdadeiro confinamento. E o medo.

Isabel do Carmo
28.04.2020


Todos os testemunhos do projeto "Confinamento(s) em tempo de ditadura", organizado por Mariana Carneiro, ficarão disponíveis aqui:
Confinamento(s) em tempo de ditadura

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