Mulheres de Abril: Testemunho de Isabel do Carmo

04 de abril 2017 - 9:53

O meu primeiro confronto político foi com o padre que dava aulas de moral no Liceu de Setúbal e que, tinha eu dez anos, me disse “a menina é comunista”. Por Isabel do Carmo.

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Isabel do Carmo numa manifestação da FUR em 1975. Foto publicada no site memoriando.net

 

Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.


Dum país pobre para um país com esperança

Nasci no Barreiro nos anos 40 do século XX. Este país era pobre e atrasado. Foram os anos de guerra e do racionamento, mas também foram os anos da descoberta dos antibióticos e do impulso da melhoria das condições sanitárias e da vida em geral, que se seguiram à guerra nos outros países da Europa, excepto Portugal, Espanha e Grécia, que ficaram esquecidos pelos Aliados. O nosso país manteve-se sob a ditadura, com miséria e pobreza. Morriam no parto muitas mães e recém-nascidos, havia infecções intestinais na infância, infecções respiratórias e tuberculose nos adultos, numa altura, à beira dos anos 50, em que o tratamento já existia.

No Barreiro havia uma escala naquilo a que podemos chamar proletariado, em que os vários extractos não eram confundíveis. Os mais pobres eram aqueles que ainda viviam no trabalho do rio, fossem pescadores, fossem descarregadores. Seguiam-se os trabalhadores da cortiça. Vinham depois os ferroviários, com salários baixos quando trabalhavam na linha ou nas oficinas, mas com alguma segurança comparados com os anteriores. Os maquinistas e revisores ficavam no topo dos trabalhadores do Caminho-de-Ferro. Depois vinham os trabalhadores da Cuf, que por sua vez tinham várias escalas. No entanto, na Cuf havia os “balões” ou seja os despedimentos colectivos promovidos pelo patrão dos patrões, o Alfredo da Silva. A seguir à guerra houve esperança de mudança, mas quando entrámos nos anos 50 estabeleceram-se os anos cinzentos. Só havia a memória: da Escola de Esperanto, onde o meu pai tinha sido professor e que fora fechada, da bandeira vermelha que tinha sido içada na chaminé dum bairro dos trabalhadores do Caminho-de-Ferro, das greves da Cuf e dos ferroviários, dos militantes que tinham estado nas Brigadas Internacionais na Guerra de Espanha, dos que tinham estado no Tarrafal, dos que regressavam. Os velhos e os desempregados da cortiça pediam esmola na rua, nas casas havia pobreza escondida ou miséria. Os “remediados” como nós contavam os tostões e a questão das despesas era muito falada no interior das famílias. Poucas eram as que sentiam segurança, embora estivesse garantida a reforma para os trabalhadores da Cuf e dos Caminhos-de-Ferro efectivos. Os outros eram deixados à sorte e à caridade. Tinha-se que pagar os médicos e os remédios e só isso era factor de angústia dentro das famílias.

Neste ambiente era quase natural e sem mérito ser contra o Estado Novo e os ricos. No entanto, no Barreiro e no distrito de Setúbal em geral havia outro factor de repressão e revolta – o papel da Igreja Católica no apoio e na fusão com o regime. E foi assim que o meu primeiro confronto político foi com o padre que dava aulas de moral no Liceu de Setúbal e que, tinha eu dez anos, me disse “a menina é comunista”. Esta premonição do padre, que era nazi, proporcionou-me uma luta de cinco anos contra tal personagem, com regozijo da turma, que tinha muita gente filha de famílias de esquerda, mas que não ousavam afrontar a criatura.

Quando vim para o Liceu Maria Amália fui completamente esmagada por aquele ambiente, mas mais uma vez ousei afrontar a professora de moral e ainda distribui uns panfletos do MUD. Aos 17 anos entrei para a Faculdade de Medicina, rapidamente integrei a Comissão Pró-Associação (a Associação tinha sido fechada Pela PIDE), que foi uma verdadeira escola de democracia de base e de convívio com alunos mais velhos (o curso tinha 7 anos) que me abriram as portas do conhecimento político e da experiência de reuniões. E foi assim que logo nesse ano escolar, em 1958, integrei a campanha presidencial, primeiro do Arlindo Vicente e depois do Humberto Delgado e tive o privilégio de participar na grande manifestação deste último que veio de Santa Apolónia até à Avenida da Liberdade. Aos dezoito anos entrei para o Partido Comunista (PCP), integrei a célula de Medicina e passei para a direcção clandestina do PCP na Cidade Universitária.

Isabel do Carmo é médica Especialista em Endocrinologia, Diabetes e Nutrição

Espalhávamos as ideias comunistas, recrutávamos, distribuíamos o Avante e panfletos. Em Março/Abril de 1962 falei na assembleia do estádio universitário, numa altura em que havia um clima social que inibia o papel activo das mulheres, apesar de estarem muitas e valiosas no movimento dos estudantes nas Faculdades. Cinquenta e cinco anos depois ainda nos reunimos cerca de 150 só de Lisboa daquela luta! Foi um marco importante, numa altura em que começara a guerra colonial e a Oposição levantava a cabeça. Em 1969 estive na comissão política da Comissão Democrática Eleitoral (CDE) de Lisboa. Saí do PCP em 1970, por dissidência – posição anti-estalinista e proposta da luta armada, prometida, mas nunca cumprida. Depois disso fundei as Brigadas Revolucionárias com o Carlos Antunes. Fui presa em 1970 e depois em 1972, na sequência da morte do Ribeiro Santos. Passei à clandestinidade em 1973 e recebi a notícia do movimento revolucionário do 25 de Abril de 1974 com muita alegria. 


*Isabel do Carmo - Médica Especialista em Endocrinologia, Diabetes e Nutrição. Fundadora da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade. Fundadora da Sociedade Científica Núcleo de Doenças do Comportamento Alimentar. Professora da Faculdade de Medicina de Lisboa.