Senegal: Golpe de Estado institucional de Macky Sall enfrenta forte contestação

09 de fevereiro 2024 - 10:18

O Senegal assistiu a um novo assalto à democracia em direto na televisão, com o anúncio da suspensão do processo eleitoral por parte do presidente Macky Sall. Protestos nas ruas e na própria Assembleia Nacional são fortemente reprimidos com censura, prisões e violência policial.

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Foto de IAEA Imagebank, Flickr.

O Senegal foi, outrora, considerado o farol da democracia e dos direitos humanos no continente africano. Mas o seu presidente, Macky Sall, em 12 anos de autocracia, tem procurado, por todos os meios, destruir quaisquer conquistas democráticas do país, instrumentalizando a justiça e as forças de segurança, transformadas em instrumentos de repressão e perseguição contra opositores políticos, ativistas e jornalistas.

Após cumprir dois mandatos na presidência, o último dos quais termina a 2 de abril, e depois de ter anunciado, no ano passado, que não se candidataria a um terceiro mandato, que, aliás, seria inconstitucional, Macky Sall estava confiante de que o Senegal teria um presidente da sua confiança.

Ao eliminar do panorama presidencial Ousmane Sonko, que ficou em terceiro lugar nas eleições de 2019, Macky Sall pensou ter feito a parte mais difícil. Sonko está preso desde abril de 2023 e sobre si pesam, nomeadamente, acusações de apelo à insurreição, conspiração com grupos terroristas e de colocar em perigo a segurança de Estado na sequência do seu papel nas mobilizações contra a recandidatura do atual presidente. Aquando da sua prisão, os seus apoiantes saíram às ruas e foram fortemente reprimidos com munições reais. Mais de uma dúzia de pessoas foram assassinadas. O governo senegalês também bloqueou o acesso à Internet durante a violência.

Acresce que o partido de Sonko, o Patriotas Africanos do Senegal pelo Trabalho, Ética e Fraternidade (Pastef), veio a ser ilegalizado e que, a 20 de janeiro, foi conhecida a decisão final do Conselho Constitucional do Senegal, que rejeitou a candidatura de Sonko às eleições presidenciais agendadas para 25 de fevereiro. Isto apesar de o Supremo Tribunal o ter declarado elegível para concorrer em dezembro de 2023. O Conselho Constitucional do Senegal aprovou 20 candidatos para as eleições presidenciais e as campanhas estavam programadas para começar a 4 de fevereiro.

Ainda assim, surgiu, a partir da base de apoio de Sonko, um novo candidato, Bassirou Diomaye Faye, que foi autorizado a concorrer, embora também esteja preso há vários meses, acusado de “colocar em perigo a segurança do Estado, apelar à insurreição e à conspiração criminosa”. E a sua vitória tornou-se cada vez mais credível, o que faz tremer Macky Sall, que parece não estar confiante da popularidade do primeiro-ministro Amadou Ba, o candidato da coligação Benno Bokk Yakaar (BBY), mas também a França que, depois de ter sido expulsa de vários países da região, está preocupada com o discurso anti-imperialista de Sonko.

Na semana passada, a administração penitenciária, sob a responsabilidade do Ministro da Justiça, sujeitou Bassirou Diomaye a regras mais apertadas, diminuindo os horários das visitas e condicionando os contactos telefónicos.

 

O anúncio do golpe de estado constitucional

Entretanto, no sábado, véspera do início da campanha eleitoral, Macky Sall levou a cabo aquilo que tem sido considerado como um verdadeiro “golpe de estado constitucional”.

O presidente senegalês suspendeu o processo eleitoral regido pela Constituição e pelo Código Eleitoral. Sall, que anunciou a sua decisão num discurso televisivo, alegou que o adiamento foi necessário devido a uma disputa sobre a lista de candidatos aprovados para as eleições, e que o Senegal vive uma crise institucional.

Além de Ousmane Sonko, Karim Wade, ex-ministro e filho do ex-presidente Abdoulaye Wade, também foi excluído das listas, por ter dupla cidadania, francesa e senegalesa. Wade mora no Qatar desde 2016, quando foi libertado da prisão com o perdão presidencial de Sall. O ex-governante cumpriu pena de seis anos por corrupção e não tentou voltar ao país desde então. O Partido Democrático Senegalês (PDS) e a Coligação K24 (Karim 24) apresentaram um pedido formal para adiar as eleições, com base na acusação de alegada corrupção de juízes. E Wade anunciou renunciar à nacionalidade francesa.

A poucos dias do início oficial da campanha foram também levantadas suspeitas de que a candidata do movimento Senegal Nouveau, Rose Wardini, cuja candidatura foi validada pelo Conselho Constitucional, teria igualmente dupla nacionalidade franco-senegalesa.

Um decreto juridicamente nulo

A oposição senegalesa contestou de imediato o adiamento das eleições, e recorreu da decisão junto do Conselho Constitucional. E na internet está a decorrer uma petição contra o adiamento das eleições.

Várias vozes têm defendido veementemente que o decreto é juridicamente nulo, na medida em que não há nenhuma “crise institucional, um bloqueio das instituições ou ameaças à segurança" que o justifique, o que implica que a medida é tomada em flagrante violação da Constituição do Senegal e do Código Eleitoral.

Ndiaga Sylla, especialista eleitoral, considera que, a fim de restaurar o Estado de direito e preservar a democracia, os membros do Conselho devem decidir sobre os recursos contra a suspensão das operações eleitorais, declará-la contrária à Constituição e fixar uma nova data para as eleições.

Desta forma, acrescenta Ndiaga Sylla, a eleição presidencial poderia realizar-se no quarto domingo seguinte à entrega da decisão do Conselho Constitucional, a 10 de março de 2024, permitindo a realização da campanha eleitoral no prazo previsto no código eleitoral, de 20 dias. Além disso, o Tribunal pode igualmente decidir que os eleitores votem com as cédulas já impressas.

Indignação e revolta respondida com forte repressão

Após o anúncio do adiamento das eleições, os protestos eclodiram um pouco por todo o Senegal no domingo, liderados por partidos políticos da oposição e grupos da sociedade civil. O descontentamento teve como resposta por parte do regime de Sall uma forte repressão e uma vaga de detenções. A ex-primeira-ministra Aminata Toure, por exemplo, foi presa durante um protesto na capital Dakar. Nas redes sociais senegalesas, circulam apelos à realização de protestos massivos nos próximos dias.

Foram ainda realizadas iniciativas na diáspora, que serão replicadas, com maior força, nos próximos dias em capitais como Paris.

A indignação subiu de tom quando, na segunda-feira, o projeto de lei que consolida o adiamento, e marca nova data de eleições para 15 de dezembro, foi aprovado pelos deputados da coligação governante do presidente Sall, a BBY, e de uma coligação de oposição conhecida como Wallu Senegal.

Os membros da oposição que tentaram bloquear a sua aprovação foram retirados à força da Assembleia Nacional e presos, entre os quais Guy Marius Sagna, Abass Fall e Cheikh Aliou Beye. No exterior do edifício da Assembleia Nacional, em Dakar, muitos manifestantes e apoiantes da oposição reuniram-se para protestar contra o projeto de lei à medida que o debate se desenrolava e foram alvo de violência policial que recorreu, nomeadamente, a gás lacrimogéneo.

O grupo parlamentar da oposição Yewwi Askan Wi [Libertar ao povo], liderada pelo partido Pastef, entretanto ilegalizado, reagiu a estas prisões, exigindo “a libertação imediata de todos os cidadãos presos no quadro de atividades da campanha eleitoral em curso”.

Em comunicado divulgado na quarta-feira, o gabinete de Sall disse que o Ministério da Justiça deveria “pacificar o espaço público” em referência às perturbações que o seu anúncio de sábado causou.

A ditadura senegalesa, em pânico, montou um forte dispositivo de repressão e intimidação. Nas ruas há uma forte presença policial para impedir os protestos.

A agência de telecomunicações senegalesa anunciou o corte da internet móvel na noite de segunda-feira, após a votação parlamentar. A medida foi criticada pela Amnistia Internacional como um “ataque flagrante ao direito à liberdade de expressão”.

Também a estação de televisão privada, Walf TV, foi retirada do ar por “incitação à violência”. E até o campeonato de futebol foi suspenso.

Entretanto, confrontado com uma contestação sem fim à vista, Sall tem vindo a tentar acalmar as ruas, garantindo que quer promover o diálogo com todas as forças políticas e um processo eleitoral transparente, livre e inclusivo. Mas o povo senegalês já conheceu várias promessas vazias do presidente.

Sonko denuncia projeto monarco-dinástico e apela à mobilização

Em entrevista ao Yoor-Yoor, Ousmane Sonko afirma que o que está em causa é “o projeto monarco-dinástico do campo Macky Sall, o projeto do mandato vitalício por via de reformas constitucionais”.

O líder do Pastef dirige-se diretamente aos jovens senegaleses, frisando que o que os une “é o ideal de uma sociedade justa em que os recursos e as riquezas são distribuídas de forma equitativa e onde terão as mesmas oportunidades”.

Sonko alerta que se Sall levar avante o seu golpe irá esmagar todos aqueles que se atravessem no seu caminho. Por isso deixa um apelo a políticos, movimentos sociais, sociedade civil, jornalistas, sindicalistas, ativistas e, inclusive, religiosos para que se mobilizem. E deixa também uma nota especial aos “irmãos e irmãs da diáspora”: “não ganharemos este combate nem aqueles que se avizinham sem vós”.

Vários líderes da oposição senegalesa têm apelado à "desobediência civil". "A população senegalesa deve resistir e manter uma posição de desobediência civil contra [as intenções] de um terceiro mandato do Presidente Macky Sall, o que é proibido pela Constituição", disse à agência EFE o deputado Guy Marius Sagna.

Entretanto, sindicatos, movimentos sociais procuram uma estratégia comum para responder ao golpe de Sall e convocaram uma conferência de imprensa para esta sexta-feira.

Multiplicam-se as condenações do golpe de Estado constitucional

O ditador da Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló apressou-se a parabenizar Sall pela sua decisão, que considera ser necessária para garantir eleições “mais inclusivas, mais justas e mais credíveis”.

Apesar deste apoio de ditador para ditador, Sall parece estar cada vez mais isolado, inclusive sendo questionado no seio da sua coligação governamental e do próprio governo.

Num comunicado divulgado terça à noite, os partidos membros da plataforma CDS, que integra a coligação governamental BBY, sublinharam que um “adiamento não só é legalmente impossível como também politicamente inoportuno”. “Não há nenhuma crise institucional no país, nenhuma interrupção no funcionamento regular das instituições que possa justificar tal adiamento”, referem.

A CDS “exige de todos os intervenientes o respeito pelas prerrogativas de todas as instituições, a garantia da estabilidade e da paz civil, o respeito escrupuloso pelo calendário republicano e a realização das eleições presidenciais no dia 25 de fevereiro de 2024”.

O assalto à democracia por parte de Sall também levou à demissão da Ministra de Estado da Presidência da República do Senegal e presidente do Comité Nacional da Iniciativa para a Transparência das Indústrias Extrativas, Awa Marie Coll, bem como do ministro secretário-geral do Governo senegalês, Abdou Latif Coulibaly.

"Depois de tomar nota com muito cuidado do discurso [do Presidente do Senegal] dirigido ao povo senegalês, tomei a decisão de retirar todas as consequências disto tudo e de deixar o Governo", disse Coulibaly, em comunicado.

Macky Sall anuncia suspensão do processo eleitoral, 3 de fevereiro de 2024.

O Conselho Nacional dos Leigos Senegaleses (CNL), que reúne as associações e movimentos da Ação Católica e foi criado pela Conferência dos Bispos do Senegal em abril de 2008, também manifestou o seu desacordo com a decisão do presidente Macky Sall. Em comunicado, o CNL indica que esta decisão “sem precedentes, em contradição com a lendária tradição democrática do Senegal, acarreta riscos reais de instabilidade”. E acrescenta que “esta decisão, cujas consequências podem levar o Senegal a um futuro incerto”, suscita “profunda preocupação”.

Philippe Abraham Birane Tine, presidente da CNL, apela “ao Presidente da República, bem como a todos os atores políticos, a respeitarem escrupulosamente o calendário republicano”, e insta o Estado e as partes a “trabalharem pela paz e estabilidade do Senegal, encontrando o mais rapidamente possível as soluções necessárias para organizar eleições transparentes, inclusivas, pacíficas e democráticas”.

O Imã Fansou Bodian, guia espiritual de Bigona, exortou todos os atores a consolidarem “as conquistas democráticas, a respeitar o calendário republicano e as leis e regulamentos do país”, bem como pediu “a libertação de todos os presos políticos”.

O Grupo de Estudos e Investigação sobre Democracia e Desenvolvimento Económico e Social em África [GERDDES] repudiou, igualmente, o adiamento das eleições presidenciais de 25 de fevereiro de 2024, que considera ser um “golpe de Estado institucional”.

Também sindicatos como o dos Arquitetos ou o SAES - Syndicat Autonome de l'Enseignement Supérieur (Sindicato Autónomo do Ensino Superior) se pronunciaram contra a decisão de Sall.

Hardi Yakubu, coordenador do grupo de ativismo pan-africano Africans Rising, é contundente: "O adiamento das eleições de 25 de fevereiro é uma tentativa clara do Presidente Sall de se agarrar ao poder para além do seu limite constitucional". "Por outras palavras, com esta última manobra, ele está a tentar alcançar o mesmo resultado que as manipulações anteriores pretendiam alcançar", acrescenta em comunicado.

Algumas reações internacionais

Além fronteiras, Macky Sall também enfrenta críticas, algumas contundentes, outras mais lacónicas, inclusive de quem se tem remetido até ao silêncio ou até tem sido conivente com o seu silêncio.

O senador democrata norte-americano Ben Cardin, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, emitiu uma declaração em que afirma que “o adiamento das eleições presidenciais no Senegal coloca o país num caminho perigoso para a ditadura". “ O desprezo flagrante do presidente Macky Sall pela constituição senegalesa e a sua flagrante falta de respeito pelo apoio do povo senegalês à democracia minam décadas de progresso desde a independência naquilo que antes foi considerado uma das democracias mais confiáveis e dinâmicas da África. O Presidente Sall deve rever esta decisão irresponsável e garantir que as eleições serão realizadas antes do fim do seu mandato constitucional”, escreve.

Na terça-feira, o Departamento de Estado dos EUA assinalou que o adiamento era “contrário à forte tradição democrática do Senegal”. A diplomacia estadunidense exigiu ao governo do Senegal que organize “a eleição presidencial em conformidade com a Constituição e as leis eleitorais".

Mediante a posição de Ben Cardin, a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) sugeriu, na segunda-feira, que o adiamento pode ser inconstitucional. A CEDEAO “incentiva a classe política a tomar urgentemente as medidas necessárias para restabelecer o calendário eleitoral de acordo com as disposições da Constituição”, afirma o bloco em comunicado.

A União Africana também emitiu uma declaração levantando preocupações sobre o atraso nas eleições, defendendo que as mesmas “deveriam ser realizadas o mais rapidamente possível e “em transparência, paz e harmonia nacional”.

Foto da Comissão Europeia.

O bloco europeu também apelou à restauração do calendário eleitoral, com a porta-voz dos Negócios Estrangeiros da União Europeia (UE), Nabila Massrali, a apontar que decisão de Sall “mina a longa tradição democrática do Senegal” e “abre um período de incerteza” no país. A UE criticou o facto de o adiamento das eleições ter sido decidido sem “transparência” e sem consultar as principais forças políticas do Senegal, e exortou os atores políticos a tomarem “rapidamente as medidas necessárias para restabelecer o calendário eleitoral”.

Foto publicada por António Costa na sua conta na rede social X.

E até o Ministério dos Negócios Estrangeiros de França defende que o Senegal deve realizar eleições "o mais rápido possível”. "Apelamos às autoridades para que eliminem as incertezas relativas ao calendário eleitoral para que as eleições possam ser realizadas o mais rápido possível, respeitando as regras da democracia senegalesa", apontou, em comunicado, o executivo francês.

As Nações Unidas (ONU) têm acompanhado “de muito perto” a situação no Senegal. “Para o Secretário-Geral [António Guterres], é muito importante que todas as partes interessadas defendam um ambiente pacífico e se abstenham de violência e de qualquer ação que possa minar o processo democrático e a estabilidade no Senegal”, afirmou o porta-voz da ONU Stephane Dujarric aos jornalistas. Dujarric acrescentou ainda que as partes interessadas deveriam "resolver rapidamente as diferenças através do consenso e especialmente em linha com a longa tradição de governação democrática do Senegal".