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Senegal: uma deriva autoritária

Este artigo inclui dois textos: um sobre a atualidade no Senegal, da historiadora Mbissane, escrito a 18 de agosto em Dakar, e outro de contexto, de Gnima Diouf, professora de estudos culturais em França, e María Gómez Garrido, que integra a redação do site Viento Sur.
Macky Sall, presidente do Senegal. Foto de European Parliament, Flickr.

Surgimento de uma esquerda radical e pan-africana e repressão pelo poder liberal

O Senegal tem vivido a crise política mais forte da sua história.

De facto, desde 2021, pesava sobre o líder político do partido Pastef Oumane Sonko uma acusação falsa de violação. Todo o aparelho estatal liberal-socialista BENNO BOKK YAKAR (Juntos com a mesma esperança) tem desenvolvido uma campanha de ódio contra Ousmane Sonko, que se converteu na bandeira da juventude africana e senegalesa. As suas opções e direções na luta contra o sistema pós-colonial de nepotismo, corrupção e espoliação de recursos assustaram Macky Sall e o seu governo. Apesar de várias tentativas de detenção e violência contra ele e membros do seu partido, os juízes recusaram finalmente a acusação de violação, que Ousmane Sonko sempre denunciou como conspiração. Depois, os juízes encontraram uma fantasiosa acusação de "corrupção da juventude", um delito nunca pronunciado no Senegal e que não faz sentido.

Todas estas etapas têm estado marcadas pela violência das forças policiais e inclusive dos militares, que se saldou em cinquenta mortos e mais de 600 presos políticos. Na realidade, por trás desta violência contra Ousmane Sonko, está Macky Sall, no poder há 12 anos e que, inclusive tentou avançar para uma terceira candidatura, algo proibido pela Constituição. Para manter o seu controlo, Macky precisa de eliminar Ousmane Sonko.

Lamentavelmente para ele, os advogados de Sonko e as famílias das vítimas apresentaram uma denúncia perante o Tribunal Penal Internacional contra Macky Sall, que é acusado de estar vinculado à violência que tantas mortes já causou entre 2021 e 2023.

O povo já não quer Macky Sall. Todas as sondagens indicam Sonko como vencedor na primeira volta. Macky Sall quer eliminá-lo.

Todo o Senegal sustém a respiração para saber se Sonko terá a liberdade de participar nas eleições presidenciais de fevereiro de 2024, porque atualmente encontra-se em prisão e greve de fome.

Mbissane

Dakar, 18 de agosto de 2023.

*Mbissane é historiadora.

 


Senegal: Uma deriva autoritária

María Gómez Garrido e Gnima Diouf

O Senegal entrou nos últimos meses num processo de instabilidade política, sem que necessariamente se vislumbrem as chaves de uma possível mudança. As recentes manobras do governo de Macky Sall contra o agora já principal líder da oposição e o seu partido denotam uma série de ações desesperadas, que parecem ser mais do que o simples medo de perder velhas mordomias.

O país, que foi o primeiro ponto de ancoragem do colonialismo francês na África ocidental, tem sido apontado como um conceituado modelo face à estabilidade das suas instituições. Desde a independência, em 1959, não existiu risco de golpe de Estado; As minorias religiosas como o catolicismo e o animismo tem convivido sem dificuldades com o Islão maioritário. A diversidade étnica e linguística de um país traçado com regra e esquadro sustenta-se através de uma série de fórmulas populares como cousinage à plaisanteriei e a força coerente das fraternidades religiosas. Ou, pelo menos, foi assim durante muito tempo com as gerações mais velhas.

Mas estabilidade não é o mesmo que democracia, nem transparência, nem direitos. A corrupção no Senegal é um mau endémico que atravessa todo um sistema público hipertrofiado, e ao mesmo tempo tremendamente débil, na medida em que não cumpre com a ideia de função pública, nem de garantir igualdade no acesso a direitos. O impressionante crescimento económico do país dos últimos dez anos (com uma variação inter-anual de 12% do PIB em 2022) tem sido encenado numa série de obras e infraestruturas faraónicas, como o novo aeroporto, a zona dos estádios, ou o tão esperado comboio, que efetivamente supõe um alívio para o insuportável tráfico dos subúrbios até ao centro de Dakar.

No entanto, este crescimento económico tem deixado intactos outros aspetos fundamentais na vida das pessoas. Particularmente, o acesso à saúde pública continua a ser uma matéria pendente; e também não está garantido o acesso à educação. O Senegal tem uma taxa de analfabetismo de 40%. Num país tremendamente jovem, com uma taxa de fecundidade de 4,5, as escolas corânicas ou daaras são centros de acolhimento para menores de famílias sem recursos, sem que o governo tenha alguma vez conseguido penetrar esses muros.ii

Por último, o conflito pelo Estatuto de Autonomia da Casamance, continua sem resolução quarenta anos depois, e traduz-se em quantidades consideráveis de população deslocada.

Nos últimos anos, o país tem visto os seus melhores recursos agrícolas e pesqueiros serem entregues a empresas e governos europeus e chineses. Os antigos pescadores relatam com estupefação a progressiva redução da sua faina diária por causa dos grandes barcos de arraste na zona. Ninguém os protege. Os acordos assinados pelo governo senegalês deixam o seu povo totalmente vendido.

A descoberta de fontes de gás e petróleo no país entre 2014 e 2016 pôs a população vigilante perante a possibilidade de esses recursos não beneficiarem o país, mas sim uma elite enriquecida. Já existiram mobilizações nas ruas. Em 2017, Ousman Sonko, líder do partido da oposição Patriotas do Senegal pelo Trabalho, a Ética e a Fraternidade (PASTEF), publicou o livro Petróleo e gás em Senegal: crónica de uma expoliação. Dois anos mais tarde, um documentário da BBC em 2019 sobre o caso Petro-Timiii, com adjudicações irregulares nas concessões de prospeção e exploração de gás, em que estava implicado Aliou Sall, filho do atual presidente, fez estoirar uma série de mobilizações nas ruas das principais cidades. O movimento Aar Li Um Bokkiv, uma ampla frente cidadã formada por movimentos sociais, organizações sindicais e partidos políticos, reclamará então a proteção dos bens naturais do país e uma gestão responsável dos mesmos, que olhe pelo bem comum. Este movimento vem a somar-se ao urbano E’an e marre! [Basta já!], movimento social com forte ancoragem entre artistas e jornalistas jovens de Dakar que, em 2011, começou a denunciar a má gestão dos recursos públicos, depois de uma série de cortes de fornecimento elétrico na cidade, e depois de o então presidente Abdoulaye Wade anunciar que ia apresentar-se a um terceiro mandato. E’an em marre! criticou a gestão do então presidente e hoje em dia os seus líderes, já não tão jovens, têm criticado também a reação repressiva levada a cabo pelo governo de Macky Sall.

Mas é o líder do partido Pastef, Ousmane Sonko, quem melhor tem conseguido canalizar o descontentamento da população. Este inspetor fiscal, sem nenhuma ligação prévia com o aparelho de Estado, ao contrário da maior parte dos candidatos eleitorais, conseguiu já em 2019 dar visibilidade a um partido construído em grande parte com as contribuições voluntárias da diáspora senegalesa.

Qualquer pessoa que estude hoje em dia a migração senegalesa a Europa seguramente irá ouvir o nome de Sonko. Este emerge com facilidade nos discursos do migrante, especialmente do migrante varão. Num relato de luta, de tolerância de todo o tipo de violências em Europa, e de penúria na origem, a esperança aparece sempre com o nome deste candidato.

Com um firme discurso anticolonial, Sonko prometeu já na sua campanha de 2019 resgatar o país do espiral da corrupção, e emancipar-se do jugo colonial, entendido no contexto senegalês como o jugo francês. Vários eram então os pontos do seu programa político nessa linha: saída do franco CEFA, a garantia de que os recursos naturais serão geridos por e para os senegaleses, ou uma tónica no Islão como senha de identidade, o que em muitos países que foram antigas colónias tem passado a ser um símbolo de anti-europeísmo, tendo em conta a tendência islamófoba no velho continente.

Em relação ao primeiro ponto, a saída do franco CEFA, tem sido uma medida já muito presente nos debates políticos recentes dos países da África ocidental, e face à qual França dá sinais de cedência.v

O facto de a moeda continuar a depender do valor estabelecido pelo Tesouro francês é um resquício da herança colonial, encarado como uma humilhação.

Mas é sobretudo a ideia de pôr fim aos diferentes acordos comerciais com Europa, e especialmente com França, a linha de força de Sonko, bem como um firme programa para pôr fim à corrupção. O líder tem conseguido máxima popularidade entre a juventude e entre os senegaleses da diáspora. E é, talvez por isso mesmo, que o aparelho de Estado, incluindo o judiciário e as forças da ordem – polícia, militares e militares, têm atuado com virulência contra o líder e o seu partido. A espiral de violência do Estado tem crescido exponencialmente.

Em fevereiro de 2021, com a sua popularidade a crescer, Ousman Sonko foi acusado de ter violado uma massagista. A sua detenção, em março desse ano, provocou uma onda de protestos no país, duramente reprimidas, deixando o saldo de 14 mortos, 12 dos quais por disparos das forças da ordem senegalesas, segundo a Amnistia Internacional. Neste ano, o líder político foi finalmente absolvido do delito de violação, mas constituído arguido por corrupção da juventude. Esta sentença, bem como a sua detenção domiciliária em julho passado em Dakar, voltou a despoletar protestos, cuja repressão somou outros 16 mortos, ao que se acrescenta detenções de jornalistas, inclusive Pape Ale diang, diretor do portal de notícias Dakar Matin, e Aliou Sanei, coordenador do movimento E’na marre. Além disso, a internet tem sido interrompida de forma intermitente durante dias para evitar a comunicação através das redes sociais.

Um dos advogados de Sonko, o franco-espanhol Juan Branco, que tinha denunciado o governo senegalês por crimes de lesa humanidade pela violenta repressão da dissidência, foi detido e posteriormente expulso do país. Sonko ingressou na prisão a 1 de agosto. À acusação de corrupção da juventude soma-se a de insurreição, associação criminosa vinculada a uma empresa terrorista, e complô contra a segurança do Estado. Pastef, que era o principal líder da coligação da oposição Yewwi Askan Wi [Libertar ao povo] foi dissolvido por decreto.

Nesta deriva autoritária, o governo de Macky Sall só está a dar asas às críticas dos setores mais jovens do país, que já não aceitam a herança colonial. Tal como assinalava com lucidez o escritor Boubacar Boris Diop numa entrevista recente, a juventude está cansada de democracias que servem só a umas elites. Por outra parte, a histórica falta de empatia europeia faz com que os africanos desconfiem cada vez mais das operações levadas a cabo no seu território em nome dos direitos humanos.

Sonko parte de um discurso pan-africanista e anticolonial que consegue unir esse espírito crítico. Não obstante, o seu programa está também tingido de ambivalências: põe-se a tónica no trabalho, sem que se fale em nenhum momento de salários dignos (de facto, no ponto “trabalho” do partido é assinalado que o trabalho dignifica o ser humano independentemente da sua remuneração); não há nenhuma referência a políticas sociais. Por último, as atuações do partido dividem o movimento feminista, que viu como tanto o Estado como a oposição travam a sua batalha em torno do corpo de uma mulher, sem que esta possa ter voz por si mesmavi.

O Pastef nasce como um partido cuja principal marca de identidade seria o anticolonialismo, através de uma vaga ideia de desenvolvimento autónomo do país, isto é, sem dependência exterior, mas sem esclarecer como seria esse país que está por construir. Este discurso tem um forte impacto em grande parte da juventude, e da juventude universitária em particular. Convém recordar que o sistema educativo e universitário senegalês é uma cópia quase idêntica do sistema universitário francês. Efetivamente, encontramos os mesmos nomes, as mesmas organizações institucionais, e quase os mesmos conteúdos curriculares. O estudante senegalês, desde a sua infância, não tem tido um conteúdo curricular que corresponda às suas culturas senegalesas e africanas. Nas universidades, ensina-se a partir do francês, do castelhano, do inglês, do português, do alemão, e do árabe. Mas muito poucas vezes em línguas africanas. Este contexto faz com que a rutura se agrave entre umas elites que reproduzem um sistema de tipo neo-colonial sem o questionar e, inclusive, o apresentam como algo “moderno” face a uma “tradição” que não serviria num mundo globalizado, e uma juventude que aspira a que as suas aprendizagens partam do que eles vivem e conhecem. O programa de Sonko, com todas as suas ambivalências, alude a este aspeto e colhe o apoio em massa da comunidade estudantil. Esta juventude é a que tem, sem dúvida alguma, as chaves do desenlace senegalês, já que não tem nada que perder…

Gnima Diouf é professora de estudos culturais em França.

María Gómez Garrido faz parte da redação do site de Vento Sur.

Artigo publicado no Viento Sur. Tradução de Mariana Carneiro para o Esquerda.net.


i Cousinage à plaisanterie é uma prática de comunicação entre dois desconhecidos de etnia diferente (por exemplo, entre um peul e um serer, ou entre um serer e um diola), uma forma de cumprimento, em que se dizem piadas sobre a outra etnia, ao mesmo tempo em que, nesse momento de humor, se estabelece a proximidade do suposto parentesco, fictício, entre as etnias. Sobre esta prática, https://www.cairn.info/revue-raisons-politiques-2004-1-page-157.htm?cont....

ii Sabemos que, em algumas delas, há cuidados, e as e os menores podem sair continuar as suas vidas. Noutras, no entanto, há mal-tratos, violações, e os menores são obrigados à mendicidade. Esta, a mendicidade infantil, é proibida desde 2005. E o governo de Macky Sall mostrou firmeza ao prender alguns marabouts [professores corânicos], acusados de exploração infantil por forçar os meninos à mendicidade. No entanto, em muitos desses casos, a própria população mobilizou-se contra a decisão do governo. De tal forma que a questão das daaras continua a ser um tema delicado, ainda por resolver.

iii O documentário The $10 million energy scandal analisa a adjudicação irregular ao empresário Frank Timis, num procedimento pouco transparente que envolvia também a British Petrol. Quando Macky Sall foi eleito presidente em abril de 2012, abriu uma investigação sobre o caso, para acabar por manter as duas concessões.

iv Aar Li Um Bokk, traduzido às vezes como “Proteger os nossos recursos”. Bokk é aquilo que nos une, que compartilhamos, ou seja “proteger os nossos bens comuns”.

v Em dezembro de 2019, assina-se um acordo entre Macron e o presidente de Costa do Marfim, Alassane Ouattara, em que França se compromete a não intervir mais na moeda do FCA. Anuncia-se a criação do eco, moeda que uniria oito das antigas nações da África ocidental.

vi O corpo de uma mulher como palco político. Texto publicado pela Rede de Feministas de Senegal, a 15 de junho de 2023.

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