Queremos uma democracia que faça germinar a semente de Abril

25 de abril 2023 - 13:03

No seu discurso na sessão solene do 25 de Abril na Assembleia da República, Catarina Martins recorreu a versos de "Tanto Mar" de Chico Buarque, para recordar que "sem esperança, a democracia definha". Leia aqui o discurso na íntegra.

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Catarina Martins
Catarina Martins na sessão solene comemorativa do 25 de Abil. Foto de Tiago Petinga/Lusa.

Senhor Presidente da República,
Senhor Presidente da Assembleia da República,
Senhoras e Senhores Convidados,
Senhoras e Senhores Membros do Governo,
Senhoras e Senhores Deputados,

“Foi bonita a festa, pá” cantava Chico Buarque em 1975. “Foi bonita a festa”, celebrava o prémio Camões, finalmente entregue, agora que o Brasil se livrou do seu presidente carrasco e regressa à celebração da cultura, do mundo e dos direitos humanos.  

“Foi bonita a festa.” Essa festa aberta pela coragem, inteligência e generosidade dos Capitães de Abril e por quem com eles e antes deles alimentou a luta antifascista, que foi também luta anti-colonial. E é por isso que hoje, 50 anos passados do seu assassinato, a celebração do 25 de Abril terá de ser também homenagem a Amílcar Cabral. Evocamos hoje a coragem revolucionária de todos e todas que, na noite mais longa e sem saber quando e se seriam vitoriosos, arriscaram tudo para vencer a ditadura. E venceram, a 25 de Abril de 1974.

“Foi bonita a festa” e estendeu esperança ao mundo e onde era mais precisa. Do outro lado da fronteira, em Espanha, ainda sob a ditadura franquista, ou do outro lado do oceano, no Brasil, que sofreria a ditadura militar mais 11 anos.

“Foi bonita a festa” e a festa foi o povo. Foi a esperança, foi a determinação. A revolução foi o que se seguiu ao golpe que derrubou o regime. Foram os dias do povo na rua a decidir da vida. Foi o fim da guerra, foi a ocupação das fábricas e dos campos, foi construir o que o fascismo negara. Foi o poder do povo contra o aparelho de Estado corrupto e brutal e contra o jogo viciado do poder económico predador e rentista. Foram as mulheres a sair à rua de cabeça erguida e punho cerrado. Foi a luta pelo salário, a construção das casas, a exigência de ter médico a quem recorrer, uma escola onde aprender. Foi uma torrente a querer a igualdade e a liberdade por inteiro. A revolução não foi uma declaração. Foi uma construção.

E se nada voltou a ser o mesmo, - e ainda bem -, nos quase 50 anos deste caminho, só a desonestidade pode negar o que ficou por fazer, o que foi abandonado, os recuos a que também assistimos. Os salários que não chegam para viver e as casas com preços que os salários não conseguem pagar. O transporte que não vem e a justiça que não anda. Os atropelos que tiram acesso à saúde e aos cuidados aos mais velhos, ou a falta de professores que nega o ensino aos mais novos. As novas formas de precariedade, de exclusão e até de trabalho forçado. À recusa do tanto que ficou por fazer juntam-se recuos democráticos que não devemos ignorar.

E não vale dizer que os indicadores de hoje são incomparáveis com os de há 50 anos. Que mundo tão triste, o de quem vive do passado. A democracia constrói-se na resolução dos problemas do presente e o seu oxigénio é o horizonte de uma vida melhor. Sem esperança, definha.

“Já murcharam tua festa”, lamentava Chico Buarque em 78. “Já murcharam tua festa, pá/ Mas certamente / Esqueceram uma semente / Em algum canto de jardim.”

É dessa semente que cuidamos.

Até porque, se é certo que se sente o cheiro do bafio em tantos cantos do mundo, que se propagam os fungos do ódio nas caves escuras das redes sociais, que a desesperança contamina e adoece a democracia, não é menos certo que estes fungos podem ser derrotados e que o bafio desaparece sob o mesmo sol que germina semente. Não tem de ser futuro, o que é feito do pior passado. Saibamos nós cuidar a semente de Abril.

O maior perigo das celebrações de Abril é que se transformem em cerimónias fúnebres. Palavras repetidas, cravos esquecidos no peito, frases feitas, declarações antifascistas em tom inflamado e sem nenhuma tradução concreta, evocações vazias das lutas passadas que se negam no presente.

Nada pior do Povo feito alfinete de lapela e a Revolução bem fechada nas páginas da enciclopédia, como que a deixar claro que os tempos do povo a agarrar o seu destino, para construir uma vida de que se possa orgulhar, já lá vão.

Nada pior do que esta resignação a um país em que a história é postal para turista. Em que não pode se aspirar a mais do que a gorjeta, ou então a emigrar, para talvez um dia, como no poema da Capicua, poder pagar as mordomias do Hostel da Mariquinhas.

Nada pior do que esse rame rame insidioso do habituem-se, que os netos não terão acesso aos direitos que os avós construíram ou que as crises podem justificar todas as misérias governativas. Como se o governo em democracia não fosse para resolver as crises em nome do povo.

Nada pior do que essa lama que contamina todo o debate, que faz do medo o argumento para todas as coisas: se não for assim, pode ser pior. Se não formos nós, podem ser uns piores.

O bafio antidemocrático, o pulsar do ódio e do salve-se quem puder, e que se vai fazendo sentir pelo mundo, é invariavelmente alimentado por esta lama de desesperança e do medo, que transforma a política num debate vazio e nega resposta ao concreto das vidas.

A política é uma escolha. E só é uma escolha democrática quando é fonte de esperança. Quando alimenta a construção coletiva de um presente digno e de um futuro por que ansiar.

Cuidar da semente de Abril é ter o desassombro da esperança e a coragem do confronto com os poderes que crescem na sombra para diminuir a soberania popular. Cuidar a semente de Abril é fazer essa escolha: o salário em vez do abuso, a casa em vez da especulação, o médico em vez do negócio da doença, um planeta para viver em vez do poder extrativista.

Um governo que se esconde na vitimização com a pandemia ou a guerra, que se transforma numa agência de publicidade e powerpoints em que já ninguém acredita, por muitos cravos que espete ao peito, não cuida da semente de Abril.

E se sempre que o bafio fascista se fizer sentir, no parlamento como na vida, estaremos juntos sem hesitação para o combater, recusamos determinadamente a subalternização de todos os debates substanciais da política às arruaças da extrema-direita.

Queremos uma democracia que faça germinar a semente de Abril. Recusamos afogá-la em formol.

E felizmente há todo um povo que cuida dessa semente. Que a rega, que a mantém viva e a quer fazer crescer. Que “Manda novamente/ Algum cheirinho de alecrim.”

É dessa semente que cuidam os professores que saem à rua, os milhares que exigem habitação, saúde e vida digna, que marcham pela igualdade, que ocupam pelo Clima. Que bonita é essa festa, que enche ruas e avenidas, que resiste e propõe, em que nos encontramos e encontraremos. Essa é a semente e o compromisso da esquerda. É dessa semente que nascerá a alternativa política, popular, que se constrói a cada dia.

“Canta a primavera, pá”. Façamos a festa hoje. Viva o 25 de Abril!