Na véspera da comemoração da Revolução dos Cravos, o Palácio Nacional de Queluz acolheu a cerimónia de entrega do Prémio Camões 2019 ao cantor, compositor e escritor Francisco Buarque de Hollanda. A demora deveu-se à recusa do ex-presidente Jair Bolsonaro em assinar o diploma do prémio quando foi anunciado, o que levou na altura Chico Buarque a dizer que "a não assinatura do Bolsonaro no diploma é para mim um segundo Prémio Camões".
Além do simbolismo da data, a cerimónia simbolizou também a importância da derrota da extrema-direita brasileira no plano cultural, com Chico Buarque a dedicar o prémio “a tantos autores humilhados e ofendidos, nestes anos de estupidez e obscurantismo”.
Esses quatro anos da presidência de Bolsonaro foram "um tempo em que o tempo parecia andar para trás”, resumiu Chico, alertando que “a ameaça fascista persiste no Brasil e um pouco por toda a parte”.
Presente na cerimónia, o presidente brasileiro Lula da Silva afirmou que o convite para participar foi “uma oportunidade de corrigir um dos maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira nos últimos anos”, além de “um motivo de grande honra”.
“Finalmente a democracia venceu no Brasil e é por isso que estamos aqui hoje”, declarou o Presidente brasileiro, vendo neste prémio "a resposta do talento conta a censura”. Dirigindo-se Chico Buarque, Lula afirmou que “ninguém merece este prémio mais do que você”, que fez da sua obra “uma declaração de amor à literatura portuguesa”.
"Meu caro amigo, me perdoe, por favor, essa demora", disse por seu lado o Presidente português, citando versos de uma canção sua. "Dir-se-á que quatro anos é uma longa espera para concretizar, não importa chorar por leite derramado, o prémio respeita a 2019, é entregue pessoalmente em 2023, mas ninguém cuidará de saber a que ano diz respeito. Diz respeito a todos os anos", prosseguiu Marcelo Rebelo de Sousa, dizendo suspeitar que "por uma vez ninguém precisaria da fundamentação dessa decisão [do júri do Prémio Camões], de tal forma ela se impõe como evidência, acima de tudo poética, mas também romanesca".
Leia aqui o discurso de Chico Buarque na cerimónia de entrega do Prémio Camões:
Cerimónia de entrega – dia 24 de abril de 2023, Palácio Nacional de Queluz
Ao receber este prémio penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sergio Buarque de Holanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária.
Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua.
Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a receber o Prémio Camões com muito mais propriedade. Meu pai também contribuiu para a minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro.
No fim dos anos sessenta, retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais profundo.
O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco.
Recuando no tempo em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por duodecavós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Orovida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de tantos cristãos-novos portugueses, sua prole exilou-se no Nordeste brasileiro do século XVI.
Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela Inquisição, pode ser que algum dia eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica. Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tenho uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos sinto-me em casa e esmero-me nas colocações pronominais.
Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966, ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema Morte e Vida Severina com músicas minhas, ele, um poeta consagrado e eu, um atrevido estudante de arquitetura. O grande João Cabral, primeiro brasileiro a receber o Prémio Camões, sabidamente não gostava de música, e não sei se chegou a folhear algum livro meu.
Escrevi um primeiro romance, Estorvo, em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de prémio Camões. De vários autores aqui premiados fui amigo, e de outras e outros – do Brasil, de Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde – sou leitor e admirador.
Mas por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prémios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim.
Valeu a pena esperar por esta cerimónia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prémio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prémios também são perecíveis, têm prazo de validade.
Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte.
Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prémio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prémio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.
Muito obrigado