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Produzir em Portugal: o quê e para quê
As transformações da estrutura produtiva da economia portuguesa têm nos últimos anos ocupado um lugar cada vez mais importante no debate público. Questões como a desindustrialização e a reindustrialização, a importância crescente do turismo, o declínio ou a requalificação dos setores tradicionais, bem como a promoção de indústrias intensivas em conhecimento são objeto de problematização e debate em período de campanha eleitoral e de elaboração de relatórios e planos. É aceite de forma generalizada que o padrão de especialização e o perfil setorial do emprego e do produto são determinantes fundamentais dos níveis de prosperidade e qualidade de vida no nosso país, na medida em que afetam decisivamente a produtividade, o nível dos salários e a qualidade do emprego. No entanto, há muito menos unanimidade em torno das formas mais adequadas de promover a transformação produtiva ou de qual deve ser a direção a tomar por essa transformação.
Esta discussão, claro está, não é exclusivamente nacional: em todo o debate internacional acerca da política industrial – isto é, acerca do que é que os governos podem e devem fazer para orientar a transformação da estrutura produtiva –, opõem-se tradicionalmente duas grandes perspetivas, respetivamente liberal e desenvolvimentista, que olham para estas questões de formas muito distintas. A primeira desconfia da capacidade dos governos de identificarem corretamente os setores em que apostar, considera que o padrão de especialização de cada economia tenderá a refletir «naturalmente» a sua dotação de fatores produtivos e qualificações, e advoga que o melhor que os governos podem fazer é criar um «ambiente de negócios favorável» através da redução de impostos, de desregulação laboral e da simplificação administrativa, a par do investimento em educação e infra-estruturas. Por outras palavras, para esta perspetiva a melhor política industrial é a ausência de política industrial ou, quando muito, uma política industrial horizontal e não seletiva. Em contrapartida, para a perspetiva mais desenvolvimentista e intervencionista, o Estado pode e deve guiar o sentido das transformações da estrutura produtiva, promovendo a sua qualificação e utilizando para o efeito instrumentos como os subsídios, o crédito bonificado, as compras públicas, a concessão de benefícios fiscais ou instrumentos alfandegários de proteção face à concorrência exterior. Segundo esta perspetiva, os processos de desenvolvimento económico e de qualificação produtiva envolvem saltos não incrementais naquilo que se produz e requerem a coordenação de esforços entre atores públicos e privados, não dispensando a ação do Estado.
Este confronto de perspetivas favoráveis e desfavoráveis à política industrial tem dominado a discussão académica e política sobre estas matérias há várias décadas, com avanços e recuos de parte a parte, ao sabor da evolução da hegemonia das ideias e do contexto político e económico global. Por exemplo, depois de ter sido objeto de proscrição por heterodoxia durante as décadas de ascensão triunfante do neoliberalismo – não obstante ter continuado sempre a ser praticada de facto, mesmo por governos professamente liberais –, a política industrial voltou a adquirir uma certa respeitabilidade e aceitação na última década, facto a que não serão estranhos a ascensão da China como potência económica concorrente e o aumento das tensões geopolíticas globais. Porém, esta visão dualista e relativamente simplista das alternativas em presença passa ao lado da questão do que é que se pretende alcançar com a qualificação produtiva, como se esta fosse uma questão meramente técnica e como se houvesse um único caminho susceptível de ser trilhado. Mesmo para quem aceita que o Estado tem um papel central a desempenhar na qualificação produtiva, tudo se passa quase sempre como se houvesse um único critério para essa qualificação: aumentar a produtividade e o valor acrescentado, olhando para as economias que, à luz destes critérios, são um pouco mais prósperas do que nós e procurando imitar aquilo que produzem.
Ora, a questão é bastante mais rica e complexa do que isso: diferentes padrões de especialização e diferentes direções de qualificação produtiva podem ser mais ou menos extrativistas e destrutivos do ambiente; podem ser mais conducentes à concentração do rendimento e da riqueza ou mais favoráveis à redução das desigualdades; podem propiciar mudanças tecnológicas mais favoráveis aos trabalhadores ou ao capital; podem valorizar mais ou menos a dimensão da provisão não mercantil de bens e serviços, e preocupar-se mais ou menos com o problema dos equilíbrios territoriais; podem promover mais ou menos a autonomia estratégica e a soberania produtiva, energética e alimentar. A questão não é apenas se o Estado deve ou não ter uma política industrial, nem apenas se esta deve ser seletiva ou horizontal; a questão é também que tipo de país queremos construir e como é que o padrão de especialização da economia e a política industrial podem contribuir para trilharmos esse caminho.
Três visões
No contexto português, encontramos três visões que de alguma forma ilustram os diferentes matizes deste problema. A primeira é a proposta de adoção de um «modelo Flórida» para Portugal: a especialização de Portugal no turismo e no acolhimento de expatriados ricos e reformados de outros países, tirando partido da dotação natural do país em termos de clima, condições naturais e património histórico e cultural, mas reconhecendo ao mesmo tempo (e dando por adquirida) a relativamente baixa estrutura de qualificações e intensidade de capital. Este modelo caracteriza-se por um entendimento estático das vantagens da economia portuguesa, pela ausência de problematização das disfuncionalidades do padrão de especialização proposto (desde as fracas perspetivas de evolução da produtividade e dos salários até à precariedade laboral e ao aumento explosivo do custo da habitação) e pela ênfase em medidas regressivas de promoção da competitividade, como a desregulação laboral, a redução dos impostos sobre as empresas e a compressão salarial. Na melhor das hipóteses, admite a possibilidade de desenvolvimento e qualificação derivados em setores como a prestação de cuidados de saúde aos reformados que nos procurem para viver. Esta é uma visão que pode ser associada ao economista Olivier Blanchard, que formulou e nomeou explicitamente o modelo num artigo de 2007[1], mas a sua influência é muito alargada – sendo predominante na maior parte da direita mas fazendo-se também sentir cada vez que alguém considera que «o conceito de turismo a mais não existe, não tem sentido», como afirmava em 2016 o atual ministro das Finanças e, à época, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina[2].
Um segundo tipo de visão é o que consta do plano elaborado por António Costa Silva em 2020 e adotado pelo governo de António Costa[3] como documento orientador da implementação do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Em contraste com a anterior, entramos aqui claramente no domínio do planeamento, com a formulação de uma visão estratégica para o futuro que articula a definição de objetivos e a identificação de medidas e instrumentos de política pública para prosseguir esses objetivos. Pretende-se encetar um processo de desenvolvimento económico assente na qualificação da estrutura produtiva e nas transições digital e energética, mobilizando para isso o investimento público e privado, instrumentos regulatórios e incentivos diversos. Em termos de padrão de especialização, privilegia-se a reinvenção dos setores tradicionais através da inovação e incorporação de maior conteúdo tecnológico e a promoção de domínios como a exploração dos recursos marinhos, as energias renováveis, plataformas logísticas, ciências da saúde, eletrónica e software, e outros. É enorme a diferença que separa esta visão qualificadora, reindustrializadora e com preocupações sociais, culturais e ambientais da visão estática e regressiva do modelo Flórida. Mas há também duas críticas principais que podem ser-lhe feitas. Por um lado, não resiste à tentação da deriva extrativista nas suas propostas relativas à economia do mar e à exploração dos recursos naturais. Por outro lado, é uma visão em grande medida apolítica, no sentido em que olha para a sociedade portuguesa como um todo homogéneo e não conflitual, e no sentido em que o desenvolvimento é problematizado de forma competente e inteligente, mas essencialmente como problema técnico. As preocupações sociais concretizam-se sob a forma de propostas de correções redistributivas – acrescentos importantes mas que não consideram a possibilidade de a própria orientação da estrutura produtiva contribuir, desde logo, para dar corpo e forma a uma sociedade mais coesa, mais justa e menos vulnerável.
Para um exemplo de uma abordagem que aponte pistas neste último sentido, um bom local para começar é a pequena obra de José Reis, também publicada no Verão de 2020, intitulada Cuidar de Portugal[4]. O título resume a proposta que aí é delineada: privilegiar uma economia do cuidado, da produção orientada para a proximidade, da deliberação democrática e que coloque os valores de uso acima dos valores de troca. Isso implica reforçar a auto-suficiência e os sistemas locais de produção, reorganizar a agricultura, a indústria e os serviços públicos e privados, de modo a desfinanceirizá-los e valorizar o trabalho neles incorporado, bem como defender os serviços públicos e a provisão não-mercantil. Em suma, «recolocar a economia em relação com a comunidade que deve servir». Esta abordagem enfatiza menos a identificação de setores-chave do que de processos-chave e critérios-chave que devemos ter em conta, mas não é difícil retirar daqui implicações em termos dos primeiros. Seguramente, não queremos uma hiperespecialização produtiva em serviços de baixo valor acrescentado, com baixos salários e que desorganizam as nossas cidades como espaços de vida. Também não queremos competir por ocupar segmentos fragmentários de cadeias de valor globais sobre as quais não temos qualquer controlo e que pouco acrescentam localmente. Nem queremos um crescimento económico assente numa extração irresponsável de recursos naturais que destrua ecossistemas marinhos e terrestres. Há que qualificar, reindustrializar e modernizar o nosso país, mas há que fazê-lo privilegiando o trabalho, o ambiente, as comunidades locais e aquilo que é comum.
Onde estamos e para onde queremos ir
Pode dizer-se com propriedade que nos encontramos num momento de charneira no que diz respeito ao padrão de especialização da economia portuguesa. Na sequência da adesão à União Económica e dos choques competitivos que lhe estiveram associados, incluindo em termos de sobrevalorização cambial real, a economia portuguesa passou por um período relativamente longo de desqualificação da estrutura produtiva, caracterizado pela desindustrialização e pelo aumento do peso de setores não-transaccionáveis como a construção, o imobiliário ou a distribuição. Durante o período de «ajustamento económico-financeiro», a continuação da tendência de desindustrialização, a desvalorização interna e o forte aumento do peso, no emprego e no produto, dos serviços de baixa produtividade e baixos salários asseguraram a consolidação do modelo Flórida no nosso país, com consequências conhecidas ao nível da evolução dos salários, da precariedade laboral e das dinâmicas imobiliárias e urbanas[5]. Nos anos mais recentes, porém, pudemos assistir a alguns desenvolvimentos mais positivos. Entre 2015 e 2021, a economia portuguesa viu aumentar o peso do emprego em setores de alta tecnologia de 2,7% para 4,2% do total. O emprego na indústria, depois de cair de 867 para 703 milhares entre 2008 e 2013, recuperou parcialmente, para 835 mil em 2019 (e 808 mil em 2021, já em pandemia)[6]. Nos últimos meses, têm sido várias as notícias que dão conta do reforço da capacidade de atração de novos projetos de Investimento Direto Estrangeiro (IDE) pela economia portuguesa, a que não serão estranhas a depreciação cambial real consistentemente registada ao longo da última década nem as tendências globais para a relocalização parcial das cadeias de produção[7].
Estes sinais ténues recentes sugerem que o modelo Flórida não é uma inevitabilidade, sobretudo quando o contexto externo é relativamente favorável. Apesar de o quadro jurídico e regulatório europeu constranger a prossecução de diversos instrumentos de política industrial, constatamos que não os inviabilizam totalmente e, também, que não são realidades inexoráveis. A economia portuguesa poderá com certeza qualificar-se, modernizar-se e reindustrializar-se, assim haja vontade política. Se esta última for suficiente, até talvez possa fazê-lo de um modo progressista e equilibrado do ponto de vista social, territorial e ambiental.
Artigo publicado na edição de julho de 2022 da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique. Veja aqui como pode assinar ou oferecer uma assinatura do Le Monde Diplomatique.
Notas:
[1] Olivier Blanchard, «Adjustment within the euro. The difficult case of Portugal», Portuguese Economic Journal, vol. 6, pp. 1-21, 2007, https://doi.org/10.1007/s10258-006-0015-4.
[2] «Fernando Medina: “Não sei o que é ter turistas a mais”», Jornal de Negócios, 27 de Setembro de 2016.
[3] António Costa Silva, «Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030», Lisboa, 21 de Julho de 2020, documento disponível em www.portugal.gov.pt.
[4] José Reis, Cuidar de Portugal: hipóteses de economia política em tempos convulsos, Almedina, Coimbra, 2020.
[5] José Castro Caldas, «A desindustrialização prematura e as possibilidades de reindustrialização em Portugal», em José Reis (coord.), Como reorganizar um país vulnerável, Almedina, Coimbra, 2020.
[6] Fonte: Eurostat, «Employment in technology and knowledge-intensive sectors at the national level» [htec_emp_nat2].
[7] «Investimento direto estrangeiro duplica valor do melhor ano de sempre», ECO, 31 de Dezembro de 2021.
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