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As prisioneiras de Daniel Ortega na Nicarágua

Uma heroína da revolução contra a ditadura da família Somoza e a filha da primeira presidente mulher do continente são duas das mulheres presas na nova onda de repressão. Por Julia Garcia/Agência Pública.
Dora Mária Téllez, heroina da revolução nicaraguense presa por Daniel Ortega. Foto Wikimedia Commons.
Dora Mária Téllez, heroina da revolução nicaraguense presa por Daniel Ortega. Foto Wikimedia Commons.

Se em 2021 há poucas dúvidas de que a Nicarágua vive sob uma ditadura comandada pelo ex-revolucionário sandinista Daniel Ortega e a sua esposa, Rosario Murillo, convém lembrar que essa ditadura se foi cozinhando lentamente. Hoje, é remota a lembrança de 2006, quando Ortega voltou ao poder pelo voto popular.

Mais próxima é a imagem do último 13 de junho, quando 60 polícias de choque e quatro patrulhas da polícia rodearam a casa de Dora María Téllez, de 66 anos, uma mulher magra e determinada, de cabelos grisalhos muito curtos. Entraram a pontapés, ameaçaram matar os seus cães, agarraram-na pelos cabelos e golpearam-na no estômago.

Na verdade, a semelhança daquela cena é maior com o ano de 1978, quando a Nicarágua vivia sob a ditadura de Anastasio Somoza Debayle, um regime que tinha começado em 1937 com o seu pai, Anastasio Somoza García, seguido pelo irmão, Luis Somoza Debayle. Também naquela época, era um negócio de família.

Anastasio Somoza García chegou ao poder com o apoio dos Estados Unidos. Foi presidente duas vezes, e, entre os seus mandatos, o país teve presidentes fantoches, que respondiam apenas a Somoza.

Somoza, que enriqueceu com dinheiro público, tornou-se dono de 50% das terras cultiváveis da Nicarágua e consolidou a tortura dos opositores como método da Guarda Nacional, morreu assassinado em 1956. Mas a sua família continuou a mandar na Nicarágua com a complacência das elites, da Igreja Católica e da embaixada americana. Somoza deixou de herança pelo menos 150 milhões de dólares. Dizem que até 1979 os seus filhos tinham quintuplicado a fortuna.

A Comandante Dois

Dora María Téllez foi um símbolo da Revolução Sandinista que pôs fim à ditadura dos Somoza. Ficou conhecida por ser a “Comandante Dois” da invasão ao Palácio Nacional de Manágua, um prédio de dois andares com um enorme pátio interior onde funcionava o Congresso. Foi uma das ações mais ousadas dos guerrilheiros sandinistas: tomar como reféns os membros da Câmara de Deputados em troca da liberdade de 60 presos políticos.

Em 1978, Dora era “uma rapariga muito bela, tímida e absorta, com uma inteligência e bom juízo que lhe teriam servido para qualquer coisa grande na vida”, escreveu Gabriel García Márquez quando ela, com apenas 22 anos, participou da operação. Deu resultado: dois dias depois, os presos políticos foram enviados para o exílio. Um ano depois, todos regressariam com o triunfo da Revolução Sandinista. Entre eles estava Daniel Ortega, que se uniu ao grupo de nove comandantes que assumiram o país através de uma junta entre 1979 e 1984. Depois disso, houve eleições, e Ortega ganhou a presidência pela primeira vez.

A mais gritante diferença entre 2021 e 1978 é que naqueles idos a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) – um movimento inspirado no herói nacionalista e anti-imperialista Augusto Sandino, assassinado por Somoza García – combatia a ditadura, trazendo ao povo esperança de viver em paz, sem temer que os seus pais, filhas ou irmãos fossem sequestrados pela Guarda Nacional e desaparecessem somente por pensar diferente; havia esperança de que não mais teriam um governo que enriquecesse à custa do dinheiro público. Havia.

Agora a FSLN, transformada em partido, está no poder. E Dora María Téllez, que foi uma de suas maiores líderes, está há anos afastada do partido, depois de ter expressado sua discordância com a vocação ditatorial que agora demonstra. Hoje, não há nenhum movimento popular como naqueles tempos, capaz de retirar do poder o casal Ortega e Murillo.

Murillo não teve um papel destacado durante a revolução, mas tornou-se uma figura influente na área da cultura quando Ortega chegou ao poder. É a sua esposa e escudeira: esteve com ele quando perdeu as eleições; defendeu-o quando a sua filha, Zoilamerica, o acusou de tê-la violado desde que era adolescente. Tamanha é a sua influência que se diz na Nicarágua que, desde que Ortega chegou ao poder, quem manda mesmo é Rosario Murillo

A Comandante Dois, agora sexagenária, está em El Chipote, uma prisão conhecida por ter sido um notório centro de torturas nos tempos de Somoza.

Desde 13 de junho ninguém mais a viu. Nem mesmo os seus advogados. Os seus familiares vão todos os dias à cadeia para levar comida e remédios, mas nunca são recebidos pelos guardas.

Dora María é uma das seis mulheres que foram presas em junho, um mês em que 21 pessoas – entre elas cinco candidatos à presidência, dois jornalistas, antigos líderes sandinistas, líderes sociais, académicos, um banqueiro e outro empresário – foram detidas.

Por trás do recrudescimento do regime está um conjunto de leis que a Assembleia dominada por Ortega aprovou para anular a oposição meses antes das eleições presidenciais programadas para sete de novembro, quando ele pretende alcançar um quarto mandato – após mudanças na Constituição, ele pode ser reeleito indefinidamente.

A herdeira de Violeta Chamorro

No dia em que levaram Dora María Téllez, Ana Margarita Vijil, também oposicionista e membro do partido político União Democrática Renovadora (Unamos), estava com ela. Horas depois, capturaram a presidente da Unamos, Suyén Barahona. Em poucas horas, toda a cúpula do grupo de oposição estava presa. Quatro pessoas.

Antes delas, haviam colocado sob prisão domiciliária Cristiana Chamorro, uma figura de peso, que se apresentava como possível candidata à presidência. É filha da ex-presidente Violeta Barrios de Chamorro, a primeira mulher do continente americano a ser eleita pelo voto popular, e do conhecido jornalista Pedro Joaquín Chamorro, assassinado também naquele ano de 1978 pela ditadura de Somoza.

Embora muitos na capital Manágua assegurem que Cristiana tinha grandes possibilidades de ganhar a eleição ao recordar a figura da mãe, Violeta Chamorro, em cuja presidência o país começou a curar as feridas da longa guerra civil, a sua candidatura ainda não tinha sido lançada.

Nem deu tempo. No dia dois de junho, a polícia invadiu a sua casa, revirou todas as gavetas, confiscou os telefones, computadores, tablets e telemóveis e colocou-a em prisão domiciliária. Dezanove dias depois, invadiram a casa do seu irmão Carlos Fernando Chamorro, o jornalista mais influente da Nicarágua, mas ele já tinha partido para o exílio (pela segunda vez em três anos). E no dia 25 de junho aprisionaram o seu irmão Pedro Joaquín ao abrigo da Lei de Defesa dos Direitos do Povo à Independência, Soberania e Autodeterminação pela Paz. Essa lei pode mandar para a prisão e retira o direito de ocupar cargos públicos a quem “exalta e aplaude sanções contra o Estado da Nicarágua”.

Há tempo que os membros do governo estavam a apertar o cerco a Cristiana Chamorro. Em 28 de maio tinham detido dois ex-funcionários da Fundação Violeta Barrios de Chamorro: Walter Gómez, o administrador financeiro, e Marcos Fletes, o contabilista. A fundação é uma ONG que se dedicava a promover a liberdade de imprensa e que Cristiana Chamorro decidiu fechar antes de que se aprovasse outra lei tenebrosa, a Lei de Agentes Estrangeiros, em 19 de outubro de 2020. Segundo essa lei, deve-se registar como “agente estrangeiro” toda a organização que recebe doações ou financiamento do exterior, inclusive de pessoas físicas. Quem dirige essas organizações não pode exercer cargos políticos.

Certeira, a lei não foi feita com uma dedicatória escrita apenas para Cristiana Chamorro: quase todas as figuras da oposição que trabalham com direitos humanos ou jornalismo recebiam financiamento estrangeiro. Com uma só lei, puderam calar muitas vozes incómodas.

Chamorro está em prisão domiciliária por causa de um inquérito que averigua suposta lavagem de dinheiro na fundação. Através desse inquérito foram intimados a depor dezenas de jornalistas, também brutalmente ameaçados.

María Lilly Delgado, correspondente do canal de TV americano Univisión, foi implicada no caso e proibida de sair do país. Wilfredo Miranda, correspondente do jornal espanhol El País, e Fabián Medina, chefe de informação do jornal local La Prensa, entre outros, também foram convocados. Miranda foi o primeiro jornalista a ser ameaçado de prisão pela terceira das leis abusivas de Ortega, a Lei de Ciberdelitos, também aprovada em outubro de 2020 para punir com cadeia quem publicar informações “falsas” ou “enviesadas” que “incite o ódio ou a violência, ponha em perigo a estabilidade económica, a ordem pública, a saúde pública ou a segurança soberana”.

No caso contra Cristiana Chamorro também foi convocado a depor o renomado escritor Sergio Ramírez, vencedor do prémio Cervantes, o mais importante prémio de literatura em língua espanhola, e presidente de um festival literário que tinha a colaboração da Fundación Violeta Barrios de Chamorro. Ramírez é um velho conhecido de Ortega: foi seu vice-presidente e hoje é um crítico vocal.

Desde dois de junho, um grupo da polícia de choque vigia a sua casa, num bairro residencial nas imediações da capital, Manágua; não permitem visitas.

As cinco mulheres, prisioneiras

Nessa onda de recrudescimento, as seguintes mulheres foram detidas: Violeta Granera, Tamara Dávila, Ana Margarita Vijil, Suyén Barahona e María Fernanda Flores.

Violeta Granera, uma socióloga de 68 anos, é a presidente do Movimento pela Nicarágua e era uma voz constante nas redes sociais, onde criticava abusos de poder do governo. Violeta Granera também foi algemada e espancada quando a polícia invadiu a sua casa em 8 de junho, mas durante alguns dias permaneceu em prisão domiciliária. Em 11 de junho a levaram, supostamente ao El Chipote, mas ninguém conseguiu comunicar com ela.

Tamara Dávila, uma jovem dirigente da oposição, socióloga, feminista e mãe de uma filha de quatro anos, denunciou a desaparição de Granera pelas redes sociais; apenas algumas horas depois, em 12 de junho, a polícia invadiu a sua casa e levou-a. No dia seguinte foram buscar Dora María Téllez.

Depois de Cristiana, outros quatro pré-candidatos presidenciais que poderiam desafiar Ortega nas eleições foram presos. Todos por causa de mais uma lei recém-aprovada, a Lei de Defesa dos Direitos do Povo à Independência, Soberania e Autodeterminação pela Paz, que pode mandar para a prisão e retira o direito de ocupar cargos públicos a quem “exalta e aplaude sanções contra o Estado da Nicarágua”. O último pré-candidato foi detido na noite de 5 de Julho. Medardo Mairena é um líder camponês que combateu a tentativa de Ortega de construir um canal na sua região, e um dos líderes dos protestos de 2018. Na mesma noite foram detidos em diferentes partes do país três companheiros seus do Movimiento Campesino: Pedro Mena, Fredy Navas e Pablo Morales.

Como se cozinha lentamente uma ditadura… com 35% de apoio

Na segunda-feira, 14 de junho, morreu Enrique Bolaños, o último presidente democrático que a Nicarágua teve. Ele morreu junto com a democracia do seu país, que foi corroída aos poucos depois de Ortega ter voltado ao poder em 2007.

A presença de Ortega foi uma constante no poder desde que o sandinismo derrubou Somoza. Primeiro, ele esteve entre os nove comandantes que governaram o país através de uma junta militar, de 1979 a 1984. Depois, como presidente, até 1990, quando perdeu a disputa pela reeleição após anos de guerra civil. Quando Ortega voltou à presidência em 2006, depois de ter perdido três eleições consecutivas – contra Violeta Chamorro em 1990, Arnoldo Alemán em 1996 e Enrique Bolaños em 2001–, ele pôs em marcha um plano para desmantelar as instituições nicaraguenses e igualar todos os espaços de poder do país.

O plano tinha começado antes mesmo de assumir a presidência, quando, em 2000, assinou um pacto com o então presidente Arnoldo Alemán. Em troca da impunidade garantida por Ortega quando deixasse o cargo, ele aprovou uma reforma constitucional que permitia a qualquer candidato conquistar a presidência na primeira volta se tivesse apenas 35% dos votos. O mesmo limite que Ortega tinha alcançado nas três eleições anteriores.

Uma vez no poder, com a ajuda de milhões de dólares em cooperação petrolífera enviados pelo governo de Hugo Chávez – e seguindo um roteiro parecido ao venezuelano –, Ortega desenvolveu uma política clientelista, enquanto a sua família assumia quase todas as redes de televisão e grande parte das rádios do país. Fez um pacto com a Igreja e com os empresários. Pressionou os jornais com impostos, ou por não deixar o papel-jornal importado passar pela alfândega. Por causa disso, o influente jornal El Nuevo Diario fechou. Armou tropas de choque, chamadas Juventudes Sandinistas, encarregadas de espancar qualquer manifestante que saísse às ruas.

Controlou a polícia, o Exército, o Judiciário e a Assembleia Legislativa. Ortega e Murillo tomaram o poder eleitoral e fecharam os partidos políticos ou os “adjudicaram” aos seus aliados. Como a Constituição do país proibia a reeleição, em 2009 Ortega apresentou um recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, onde todos os magistrados já eram indicados por ele, e obteve a reeleição mais duas vezes, sempre com a força da sua base fiel.

Aos poucos, Ortega e a esposa, Murillo, fundaram uma dinastia familiar: os filhos são conselheiros especiais do governo. Agora, ele busca “ganhar” novas eleições, tirando da frente, com a ajuda de leis projetadas para ele, qualquer pessoa que esteja no caminho.

O que aconteceu connosco? Na última década, a economia crescia, o pacto com os empresários dava tranquilidade ao governo, a abertura de uma zona franca gerava empregos e o sistema de saúde público, para quem tem um contrato de trabalho, funcionava bem. O país marcado pela guerra e pela escassez dos anos 1980 vivia uma grande bonança económica. E, enquanto houvesse comida no prato, ninguém se queixava dos abusos do governo.

Só a imprensa independente denunciava o que estava a acontecer: as liberdades iam diminuindo lentamente. Mas ninguém quis ouvir. Hoje, os jornalistas estão em fuga, e eu, uma mulher que vive em Manágua, não posso nem assinar esta crónica com o meu próprio nome. Ninguém está a salvo.

A fuga para o exílio

Nos últimos dias, na Nicarágua muitas pessoas cruzaram a fronteira temendo pela sua vida. Quando um mandado de prisão foi emitido contra o ex-ministro da Educação Humberto Belli, ele deixou o país. A polícia invadiu a sua casa na quinta-feira, dia 17 de junho, e por algumas horas nada se soube a respeito de sua esposa, que mais tarde foi libertada. A sua irmã, a famosa escritora Gioconda Belli, denunciou que no sábado à noite dez homens com máscaras de esqui e facas entraram novamente na casa do seu irmão, disseram que estavam numa segunda missão e levaram tudo o que viram depois de ter espancado a sua cunhada e ameaçado violar a sua sobrinha.

Depois de 2018, quando houve um levantamento popular durante meses que foi violentamente reprimido, muitas pessoas acabaram na prisão por agitarem a bandeira nacional azul e branca na rua ou usarem distintivos azuis e brancos, as cores nacionais. As manifestações foram proibidas. E agora é a polícia, fiel a Ortega, que tem o poder de permitir – ou não – comícios políticos.

O que aconteceu com o Ortega da revolução? Quem sabe ele sempre esteve lá, mas nunca fora visto. Quando a revolução triunfou, havia nove comandantes: Humberto Ortega, Tomás Borge, Bayardo Arce, Daniel Ortega, Henry Ruiz, Carlos Núñez, Víctor Tirado López, Jaime Wheelock e Luis Carrión. Todos ficavam juntos nas fotos, ninguém podia brilhar sozinho. Em 1984, quando o sandinismo organizou eleições, Daniel Ortega foi nomeado candidato. E quando perdeu para Violeta Barrios de Chamorro, incrédulo, prometeu que voltaria.

Voltou, e agora não quer ir embora nunca mais.


Julia Garcia é um pseudónimo utilizado por uma jornalista de Manágua.

Texto publicado na Agência Pública. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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