Trump está prestes a iniciar o seu segundo mandato à frente da maior potência mundial e Milei completou um ano como presidente de um país periférico. Estão nos antípodas da estrutura económica e da geopolítica mundial, mas fazem parte da mesma vaga de ultra-direita que está a conquistar governos em todo o mundo. Olhar para o que têm em comum e para o que os diferencia ajuda a caraterizar o principal inimigo do momento e a definir como o enfrentar.
Penetração do discurso de direita
Tanto nos Estados Unidos como na Argentina, o avanço das correntes reacionárias consumou-se em contextos críticos, mas não catastróficos. O seu sucesso não derivou da existência de situações limite, conjunturas incontroláveis ou cenários avassaladores.
Trump alcançou um resultado eleitoral significativo em todos os sectores sociais e alargou a base de apoio do seu primeiro mandato, mas com baixa participação eleitoral. O mal-estar com a inflação e o forte endividamento das famílias foram determinantes para o seu sucesso, num cenário de habitual crescimento escasso e emprego de baixa qualidade. Conseguiu fazer dos imigrantes, mais uma vez, o grande bode expiatório, num contexto de menor afluxo de imigrantes sem documentos.
O magnata não ganhou o troféu da presidência por se ter apoiado nalguma questão candente ou como grande salvador perante uma crise para além do habitual. Ganhou novamente devido à penetração prévia do discurso de direita numa grande parte da sociedade americana. Esta influência permitiu-lhe reforçar os preconceitos já existentes e repetir a demagogia protecionista que promete restaurar os rendimentos populares através do aumento das tarifas. Culpou os imigrantes pela degradação dos salários, branqueando os capitalistas, e ocultou o facto dos trabalhadores de outras nacionalidades contribuírem para o crescimento e gerarem importantes receitas fiscais.
O padrão discursivo de Trump é o mesmo utilizado por outros líderes de extrema-direita para lançar promessas vazias. Milei obteve uma vitória surpreendente com a mesma fórmula. O seu slogan económico não era o protecionismo, mas a dolarização, que ele exaltava como um remédio mágico para a inflação.
O anarco-capitalista argentino aproveitou o descontentamento com a economia, numa situação de crise limitada, longe das catástrofes de 1989 ou 2001. Tal como o seu homólogo americano, aproveitou a aceitação do discurso de direita e pôde assim culpar uma casta política indefinível por todas as desgraças do país. Captou o voto transversal de múltiplos sectores e a simpatia dos jovens empobrecidos.
Após um ano de mandato, causou uma tremenda deterioração do nível de vida popular. Destruiu meio milhão de postos de trabalho, aumentou a pobreza e degradou a classe média com aumentos incomportáveis das tarifas e das despesas médicas pré-pagas. Aumentou também a precariedade laboral, com os crescentes despedimentos na administração pública e dinamitou o património cultural, com um corte orçamental que sufoca a universidade pública e recria a fuga de cérebros.
Para justificar esta devastação, Milei utiliza argumentos absurdos, números inventados e raciocínios contrafactuais. Afirma que os salários estão a aumentar, que as pensões estão a recuperar e que o crescimento está a ganhar força, depois de controlar uma inflação fantasmagórica de 17.000%. Só a penetração da ideologia de direita em camadas importantes da população explica a sua audiência para tais delírios, depois do duro sofrimento que gerou no grosso da sociedade.
Frustrações e desenganos
A principal razão para o avanço da extrema-direita é a desilusão generalizada com as experiências anteriores. Nos EUA, Trump canalizou a insatisfação com o neoliberalismo progressista, que endossava todas as modas do multiculturalismo, do ambientalismo e dos direitos LGBTQ, ao mesmo tempo que validava modelos económicos regressivos de privatização e desigualdade. O discurso cosmopolita de respeito pelas minorias coexistia com a sustentação de um fosso social, que empobrecia as maiorias e enriquecia os donos do poder (Fraser, 2019). A demagogia do magnata alcançou enorme recetividade entre os trabalhadores afetados (ou indignados) por esta duplicidade.
Esse contexto coincidiu com a impotência da rival democrata de Trump. Harris adotou a agenda do seu oponente, imitou o seu concorrente e fez uma campanha republicana light, subscrevendo o clima anti-imigração, contornando a batalha do aborto e ignorando as reivindicações do movimento afro-americano. A sua validação total do genocídio em Gaza contribuiu para a desilusão dos sectores progressistas que optaram por faltar às urnas (Selfa; Smith, 2024).
Kamala limitou-se a repetir apelos vazios à "defesa da democracia" que não tiveram qualquer eco, porque foram corretamente interpretados como mensagens hipócritas. Trabalhou para Wall Street e abandonou a classe trabalhadora, com discursos formatados para os ricos. Perante tal acomodação ao status quo, Trump conseguiu facilmente aperfeiçoar a sua imagem de rebelde.
O caso argentino oferece um exemplo mais elucidativo da desilusão com o progressismo. A presidência de Milei explica-se pelo fracasso monumental de Alberto Fernández, que liderou a administração mais falhada da história do peronismo. Não só validou todas as exigências económicas dos poderosos, como desistiu de travar qualquer batalha política contra o desconhecido charlatão de direita, que despontava com uma pequena formação. Milei abriu o seu caminho para a presidência com a resignação dos seus opositores.
A enorme audiência da sua campanha anti-estatista foi alimentada por esta impotência. Fernández demoliu a imagem positiva da atividade pública, abandonou os trabalhadores informais, submeteu-se ao agro-negócio e capitulou perante o FMI.
Da cadeira da presidência, Milei acumula maiores lucros com essa impotência do justicialismo. Impõe o seu programa reacionário com o apoio de uma pequena minoria de legisladores, perante a passividade do grosso do peronismo e a cumplicidade dos seus sectores mais conservadores. Não só absorveu a direita amiga, como também neutralizou o segmento que proclama a sua rejeição do rumo atual.
Esta inação permite-lhe manter a narrativa inconsistente que justifica os seus atropelos. Atribui todos os ajustes a um fardo herdado, escondendo o facto de a sua política económica ter imposto um sofrimento auto-infligido ao grosso da população.
A passividade do progressismo perante a audácia provocadora da extrema-direita não é exclusiva da Argentina. Foi prenunciada no Brasil com a quietude de Dilma perante a ascensão de Bolsonaro. A mesma dinâmica repetiu-se no Peru durante a experiência frustrada de Castillo, que não conseguiu cumprir as suas promessas numa gestão caótica.
Este é um aviso sério para o Chile. Boric validou a gestão tirânica do poder militar e o controlo da economia por uma pequena elite de milionários. A deceção já gerada pelo seu governo acende uma luz vermelha sobre os processos que conservam a confiança popular.
A prioridade da paz e as reformas tíbias que Petro está a promover na Colômbia não impedirão o regresso da direita, se ele não corresponder às expectativas de mudança que o levaram ao poder. Nem o limitado alívio económico introduzido por Lula no Brasil será suficiente para contrariar o visível ressurgimento do bolsonarismo. O extraordinário apoio eleitoral de Scheiman no México será rapidamente posto à prova se Trump confirmar o ataque virulento que anunciou contra o seu vizinho.
Reverter conquistas democráticas
Trump e Milei convergem na sua reação contra as conquistas democráticas das últimas décadas. Encarnam a típica reação conservadora contra os direitos conquistados por diferentes movimentos e repetem o que aconteceu em situações semelhantes no passado. Com essa operação reacionária, diabolizam os chamados "temas woke", termo pejorativo usado para estigmatizar qualquer conquista progressista (Vergara; Davis, 2024).
O feminismo é atacado frontalmente para reverter as conquistas do movimento de mulheres. As versões mais exóticas desta campanha retratam os homens como vítimas da "ideologia de género". Utilizam este rótulo para ridicularizar o respeito pelas mulheres que foi conquistado em muitos países após uma luta intensa. Lutam também contra o direito ao aborto, reavivando velhos e desgastados argumentos confessionais.
O contra-ataque da direita à diversidade sexual é mais furibundo. Inclui uma homofobia brutal, que combina chavões com invocações bíblicas, para aterrorizar as famílias com perigos fantasmagóricos ("as crianças voltarão da escola com o género invertido").
A extrema-direita ataca com a mesma brutalidade as minorias tradicionalmente hostis em todos os países. Nos EUA, recria o velho padrão racista e tenta perturbar o movimento Black Lives Matters, que os afro-americanos criaram para travar a violência policial.
Trump combina esta investida com o nacionalismo chauvinista. Apela a "tornar a América grande de novo", reavivando a imaginária essência branca, patriarcal e protestante dessa nação. Os seus pares na Europa usam a mesma fórmula para denegrir os imigrantes de África e do mundo árabe, exaltando a identidade cristã-ocidental do Velho Continente.
Com estas campanhas, a ultradireita actualiza a velha receita de dividir os povos em antagonismos artificiais para consolidar o seu domínio. Reforça as diferenças étnicas e acentua as tensões religiosas para transformar o medo em ódio dos próprios despossuídos contra os seus irmãos de classe.
Os preconceitos racistas contra os povos vizinhos (paraguaios, bolivianos) também fazem parte do livro de receitas da extrema-direita na Argentina. Mas Milei centrou a sua ofensiva antidemocrática em dois outros objectivos. O primeiro é reverter a grande conquista que levou os genocidas da ditadura à prisão. Promoveu uma campanha de esquecimento do passado que elogia Videla e questiona o emblema dos 30 mil desaparecidos, para forçar o perdão dos militares que cumprem pena. O grupo que propaga as suas ideias (Laje, Márquez) foi forjado numa cruzada contra esta extraordinária conquista democrática (Saferstein, 2024).
O segundo objetivo de Milei é modificar as relações sociais de forças dominantes no país, a fim de destruir os sindicatos, arrasar as cooperativas e quebrar as organizações democráticas (Katz, 2024: 305-322). Conta com o apoio das classes dominantes, que toleram todas as suas explosões e aceitam a sua gestão caótica do Estado às mãos de personagens impresentáveis. Os meios de comunicação social e os juízes perdoam-lhe todos os embaraços possíveis, porque esperam alcançar com o atual governo o objetivo desejado de pulverizar as organizações populares.
Remodelação beligerante
Tanto Trump como Milei chegaram ao governo como resultado da própria transformação interna da extrema-direita. Substituiu o seu antigo perfil elitista, conformista e conservador por uma atitude disruptiva, com disfarces e poses contestatárias. Copiou as posições da esquerda com objetivos opostos (Urbán, 2024). Utiliza a maquilhagem desobediente para sustentar a exploração capitalista, fomentar a perseguição das minorias e impor a desmobilização dos trabalhadores.
Com esta rutura cosmética de gestos contra-culturais, alargou a sua gravitação nas classes médias e conseguiu um impacto inédito entre os assalariados e os empobrecidos. Aproveitou a crise de credibilidade da comunicação tradicional para alargar a sua influência nas redes com o apoio de multimilionários de renome. Num quadro de grande insatisfação com o jornalismo convencional, impôs o uso descarado do universo digital. Aperfeiçoou essa manipulação, com as mentiras instaladas pelos seus trolls para marcar a agenda política quotidiana.
A mudança de clima nesta esfera pode ser vista na substituição de personalidades de renome. A filantropia neoliberal de Bill Gates – que se apresentava como conselheiro para resolver todos os problemas da humanidade – perdeu peso. Agora prevalece a brutalidade de Elon Musk, que não disfarça o seu narcisismo e desprezo por qualquer causa nobre. Transformou o twitter numa fossa de discursos de ódio, ataques anti-feministas e insultos racistas. Prepara-se agora para reforçar o seu negócio de privatização do espaço cósmico, a partir do alto cargo público que lhe foi atribuído por Trump.
Milei não só partilha estes hábitos da nova direita, como está determinado a conceptualizá-los, a fazer deles os temas dominantes da política internacional. É por isso que investe tanta energia na batalha cultural contra o progressismo. Considera que o neoliberalismo já derrotou o progressismo na esfera económica, universalizando os princípios da concorrência, do mercado e do lucro. Mas não obteve o mesmo sucesso no domínio do pensamento, dos valores e das atitudes. Para alcançar esta segunda vitória, enfrenta uma "luta pela hegemonia", para usar os termos do vilipendiado marxista Gramsci.
Mas esta disputa de ideias não tem muito a ver com a ultradireita, que se sente mais à vontade na luta pelo poder através do uso da força. Embora mencione a noção gramsciana de hegemonia sem a compreender, o seu comportamento continua a ser orientado pelos princípios schmittianos da autoridade, da decisão e da definição de um inimigo a enfrentar. Com esta bagagem, aproveita-se da impotência dos seus oponentes e da passividade dos seus adversários para impor os seus códigos em todos os confrontos (Sztulwark, 2024).
Trump utilizou os mesmos critérios para construir o poder com fanfarronice e prepotência. Proclamou a sua intenção de contestar qualquer resultado eleitoral que não fosse o seu próprio triunfo e preparou um exército de apoiantes para essa revolta. Com esta atitude, apresenta-se como o líder celestial destinado a ressuscitar a liderança global da América.
O mesmo estilo de intimidação é utilizado pela extrema-direita noutros países para neutralizar a gravidade dos seus antigos parceiros do conservadorismo tradicional. Define a agenda e permeia todos os debates, estabelecendo as prioridades do sistema político. Esta evolução coincide com a influência renovada dos teóricos do liberalismo extremo (Hayek), em detrimento dos seus colegas convencionais (Aron). Coincide também com o esgotamento do consenso neoliberal, que nas últimas décadas assegurou a alternância das forças tradicionais na gestão da mesma ordem capitalista (Merino, 2023).
Trump sustenta esta viragem reacionária na tradição forjada pela "revolução conservadora" inaugurada por Reagan e consolidada pelo Tea Party. Recriou a vasta rede de milionários, media e igrejas que tomou conta do Partido Republicano e traz pessoal e base militante para a sua próxima administração.
Milei não tem o partido, as congregações e o entrelaçamento financeiro do seu padrinho ianque. Chegou ao governo de improviso, sem a tropa de adoradores forjada pelo seu chefe da Casa Branca. É por isso que investiu grande parte do seu primeiro ano de mandato na criação desse apoio. Governa radicalizando as ações e subindo a parada para criar um movimento identificado com a sua figura.
Até à data, os resultados desta operação têm sido escassos. Embandeira uma versão anarco-capitalista alheia à tradição liberal crioula e professa um credo muito distante do velho nacionalismo reacionário. Os seus gurus tentaram uma fusão do seu dogma ultra-liberal austríaco minoritário com o catolicismo conservador dos seus colaboradores mais próximos (Johannes, 2022). Mas este cocktail de libertários e tradicionalistas não atraiu, até agora, grande apoio. De facto, o seu primeiro ano de mandato foi conseguido mais com o apoio da oposição do que com a consolidação de uma força própria.
Uma matriz neoliberal radicalizada
Um cimento importante de Trump e Milei é a regressão ideológica gerada por quatro décadas de neoliberalismo. Este período viu a introdução de todos os mitos atualmente exacerbados pela extrema-direita. A inserção destas falácias permite aos líderes reacionários capitalizarem o descontentamento suscitado pelo modelo que os precedeu. São simultaneamente um produto desse modelo e uma reação às suas consequências.
Durante o período prolongado de preeminência neoliberal – que inaugurou o Thatcherismo e consolidou a implosão da União Soviética – a ideologia da concorrência, do mercado e do individualismo penetrou em vastos sectores da população. Este impacto ultrapassou a sua tradicional gravitação entre as elites e a sua conhecida influência sobre os sectores médios, para captar camadas populares significativas. Esta influência criou as condições para a emergência, na última década, de convicções de ultra-direita que radicalizam a matriz neoliberal.
Esta viragem para formas extremas do mesmo cimento explica a erosão da solidariedade entre os próprios trabalhadores. O neoliberalismo generalizou o pressuposto individualista de que o trabalhador assalariado é o culpado das suas dificuldades. Postula que essa responsabilidade deriva da sua ineficácia quando está empregado e das suas fracas competências quando está desempregado.
Este mito foi desmentido pela desigualdade, pelos baixos rendimentos e pela precarização do trabalho, que os capitalistas expandiram para aumentar a sua rentabilidade sob o neoliberalismo. Mas esta evidência não resultou num ressurgimento da consciência socialista, mas sim num processo inverso de captura do mal-estar popular pela ultra-direita.
Estas vertentes transformaram o princípio neoliberal da responsabilidade dos povos pelas suas desgraças num critério beligerante de culpabilização dos sectores mais submergidos. A culpa individual foi substituída pela difamação dos mais oprimidos, mas sem nunca alterar a absolvição dos capitalistas. A campanha contra os imigrantes, os pobres e os informais enraíza-se em décadas de crenças neoliberais, exonerando os milionários e culpando os desfavorecidos pelas desgraças da sociedade.
Trump baseia-se nesta inversão da realidade para denegrir os imigrantes e Milei recorre à mesma falácia para atacar os piqueteiros precários. Em ambos os países, aproveitam a interiorização das fábulas competitivas do neoliberalismo para contrastar os pobres com os mais pobres.
A mesma radicalização da matriz ideológica neoliberal pode ser observada a outros níveis. A exaltação da desregulamentação, o elogio das privatizações e a adulação do mercado conduziram a apologias do capitalismo que glorificam a desigualdade social. O elogio aos empreendedores conduziu, por sua vez, a uma maior glorificação dos patrões.
O neoliberalismo utilizou durante décadas o elogio do capitalista para denegrir o socialismo, proclamar "o fim da história" e decretar o enterro de qualquer projeto de igualdade. Apoiando-se nessa base, a extrema-direita utiliza um anticomunismo delirante. Trump coloca Biden na proximidade dessa perdição e Milei denuncia irradiações do mesmo mal em Petro, Lula e López Obrador.
Certamente, o universo e redes regidas pela mentira contribuiu para o desenvolvimento desses delírios. Desde a pandemia, instalou-se um espetro de visões paranóicas e de conspirações maléficas, com fortes sabores terraplanistas e anti-vacinais. Estes delírios desenvolvem-se no terreno fértil das crenças introduzidas pelo neoliberalismo e reformuladas pela extrema-direita.
Adversidades sociais e políticas
A extrema-direita canaliza o descontentamento com o neoliberalismo em todo o mundo devido à fraqueza da esquerda. Todas as vertentes anticapitalistas continuam a ser afetadas pela crise de credibilidade do projeto comunista, inaugurada pelo colapso da União Soviética. Este golpe na consciência socialista não é um facto invariável ou eterno, mas foi recriado pelas experiências desencorajadoras do progressismo.
A onda castanha tem também as suas raízes na transformação social regressiva introduzida pelo neoliberalismo com a segmentação da classe trabalhadora, a expansão da precarização do trabalho, o aumento do desemprego e a crescente informalidade do trabalho. Esta quebra da coesão social do proletariado facilita a erosão das tradições cooperativas e enfraquece a organização sindical. Criou um terreno fértil para a contestação da ação coletiva pela direita.
Mas o principal apoio da direita vem dos resultados da luta de classes. Várias adversidades recriaram cenários negativos de grande impacto global. A trágica derrota da primavera Árabe - com as ditaduras, a destruição de países e a preponderância da brutalidade jihadista – teve esse impacto.
Noutra escala, o refluxo dos movimentos que suscitaram esperanças na Europa, como os indignados em Espanha, os militantes na Grécia e os coletes amarelos em França, também foi relevante. Dois sectores-chave, como o feminismo e o ambientalismo, também enfrentaram sérias obstruções.
O sucesso eleitoral de Trump foi influenciado pelo recuo cumulativo das lutas populares. Este recuo não foi invertido pelas mais recentes mobilizações de mulheres, afro-americanos, sindicatos e jovens pela Palestina. A ascensão de Bernie Sanders (e da corrente Democratas pelo Socialismo) estagnou antes de atingir o impacto necessário para disputar faixas significativas do eleitorado.
Na Argentina, Milei chegou ao governo num momento de refluxo das lutas sociais e enfrentou inicialmente uma grande resistência popular, com duas greves gerais e uma extraordinária marcha pela educação. Mas, posteriormente, conseguiu forçar o declínio da mobilização, através da intimidação repressiva, da pressão do desemprego e do aumento da pobreza.
O anarco-capitalista usa esses recursos para atacar os sindicatos e conter a luta dos aposentados. Contou com a cumplicidade da burocracia sindical e o apoio do Congresso para aprovar as leis de ajuste. Esse apoio a encorajou a multiplicar suas agressões.
Mas esta ofensiva pode ser travada se a ação dos educadores recuperar energia e se transformar num movimento duradouro, como o dos estudantes chilenos. A luta educativa goza de um grande apoio social devido ao prestígio da universidade pública, que tradicionalmente concentra as maiores expectativas de promoção social. Esta instituição continua a suscitar esperanças entre as famílias empobrecidas, como um espaço de educação gratuita que lhes permitiria inverter o colapso dos seus rendimentos.
Milei coroa o seu primeiro ano de mandato com triunfalismo e num clima de certa estabilidade. A principal explicação para este resultado reside no refluxo que impôs ao movimento popular. Como o objetivo central do seu mandato é quebrar os trabalhadores, este indicador é o principal barómetro da sua gestão.
Se a resistência social ressurgir nos próximos meses, Milei pode enfrentar a mesma derrota nas ruas que marcou o destino de Macri em 2018. Se, por outro lado, conseguir consolidar a retirada desta luta (e conseguir projectá-la num bom resultado eleitoral), poderá aproximar-se do sucesso contra as greves que Menem alcançou para iniciar a convertibilidade.
Outro cenário económico
Trump e Milei surgem no mesmo contexto da crise da globalização neoliberal, inaugurada em 2008 com o grande colapso e o resgate dos bancos. Esse impacto definiu dois períodos muito diferentes do atual modelo capitalista. A grande expansão inicial da globalização financeira, produtiva e comercial foi substituída pelo protecionismo e pela atual reorganização das cadeias de valor. Esta reorganização favorece o nearshoring e a deslocalização das fábricas para locais próximos das sedes (friendshoring) para reduzir o risco de corte nos abastecimentos (derisking) no cenário tenso dos blocos comerciais em conflito.
Atualmente, discute-se se esta reestruturação abranda a globalização (slowbalisation) ou a inverte (deglobalisation). Mas a internacionalização ascendente abrandou, e esta mudança facilita a substituição do globalismo neoliberal pelo nacionalismo de direita.
Esta mudança inclui uma intervenção crescente do Estado, já não para salvar os bancos em situações de emergência, mas para sustentar a economia com as regulamentações que o neoliberalismo tentou eliminar. O modelo atual continua o esquema anterior, mas sob formas diferentes da sua matriz inicial e em coexistência com políticas neo-keynesianas.
A ultra-direita está a navegar nesta ambiguidade, nalguns temas apoiando o intervencionismo e noutros extrema o neoliberalismo. A forte presença do Estado para lidar com o recrudescimento da inflação e a falta de controlo da dívida pública é um exemplo do primeiro guião.
Estas ações destinam-se a evitar uma repetição do colapso financeiro de 2008, que ameaçou a subsistência dos sete maiores bancos ocidentais e a conseguinte continuação do capitalismo. Essa crise deixou uma sensação de pavor duradoura, que se verifica nas derrapagens de pânico que acompanham cada tremor de Wall Street. Não se sabe se estes tremores fazem parte da rotina do mercado bolsista ou se são um recomeço da convulsão do sistema financeiro.
Grande parte do programa económico de Trump é coerente com este novo cenário de intervenção estatal. Mas a sua interferência é também motivada pela perda de competitividade da economia americana face à sua rival chinesa, e este declínio não é corrigido por simples regulamentos ou aumentos de tarifas. Tais medidas apenas ilustram a improvisação defensiva de uma potência incapaz de conter o declínio da sua produtividade (Roberts, 2024).
Noutras áreas, Trump recria as desregulamentações mais extremas do neoliberalismo. Esta inclinação é visível no negacionismo climático. Promove um extrativismo petrolífero que potencia a destruição do ambiente e o consequente aumento de secas, inundações e ondas de frio polar ou de calor tropical. Este patrocínio deve-se à sua estreita associação com as companhias petrolíferas e o complexo militar-industrial. É por isso que ele encoraja a fantasia anti-verde de resolver o desastre climático com alguma resposta espontânea do mercado. Entre os seus próximos, há mesmo personagens que relacionam a crise ambiental com castigos divinos para os pecadores que se afastaram da religião (Seymour, 2024).
Outra conexão com o neoliberalismo puro é vista no entrelaçamento do trumpismo com a economia digital de Elon Musk. Este favoritismo tende a acentuar a preeminência de um sector que navega na fronteira do sobre-investimento. Se a expetativa desenfreada do negócio que a Inteligência Artificial abriria continuar a atrair capitais superiores à rendibilidade que este ramo gera, o perigo de uma bolha tecnológica ganhará forma.
Uma tal explosão (a crise das dot.com) abalou todos os mercados no início do novo século. O trumpismo não pode escapar a esta repetição, porque reforça vários desequilíbrios introduzidos pelo neoliberalismo sem corrigir os outros. Em última análise, ele está a gerir o mesmo sistema capitalista que deu origem a estas tensões.
Neste domínio económico, Milei contrasta fortemente com o seu mandante. Ele utiliza uma retórica ultra-liberal e anti-estatista que contrasta fortemente com o intervencionismo declarado de Trump. Não é apenas a abertura comercial da Argentina que se choca com o protecionismo dos EUA. As privatizações e o desmantelamento de obras públicas no Cone Sul também são diametralmente opostos aos subsídios apoiados pelo magnata do Norte.
Devido a este contraponto radical, a economia argentina ficou muito desprotegida face à viragem americanista em curso. O país será um local de despejo para os excedentes mundiais se a guerra tarifária de Trump começar. É muito improvável que o protecionista da Casa Branca isente a Argentina das muralhas comerciais.
Muito mais perigosas são as consequências potenciais de uma subida das taxas de juro, que seria imposta pelos reguladores financeiros norte-americanos (FED) para moderar a inflação desencadeada pelo conflito tarifário. Se esta medida repetir a habitual saída de capitais para o Norte, o atual verão financeiro da Argentina poderá ser abruptamente destruído.
Os especuladores que trazem fundos do estrangeiro para lucrar com os rendimentos muito elevados das obrigações e ações locais seriam tentados a pôr fim ao ciclo para proteger os seus lucros, regressando ao porto seguro dos Estados Unidos. Esta sequência precipitou os colapsos financeiros que, nas últimas décadas, provocaram o colapso da economia argentina.
É verdade que este eventual colapso é atenuado pela lavagem de dinheiro, que recompensa pela enésima vez os grandes evasores. A médio prazo, o novo excedente comercial gerado pelas exportações petrolíferas e mineiras poderia também compensar a falta de dólares. Milei espera estabilizar o seu modelo através do relançamento do endividamento e supõe que Trump facilitará esta hipoteca, apoiando um novo empréstimo do FMI.
Mas nenhum destes cenários dilui o perigo de uma convulsão financeira, precipitada por um acontecimento imprevisto a nível local ou internacional. Esses cisnes negros desencadearam os colapsos de 1982, 1989, 2001 e 2018. Milei tornou a economia argentina mais frágil do que nunca face a estes perigos, recriando o modelo de prata doce e dólares baratos que encoraja o endividamento, desencoraja o investimento, desperdiça divisas e destrói o aparelho produtivo. Enquanto os parceiros do país se desvalorizam para enfrentar a tempestade que Trump está a preparar, a Argentina está a ficar mais cara em dólares e prepara-se para repetir uma variante da Convertibilidade, muito mais prejudicial do que a sofrida na década de 1990.
O país é uma grande montra para as experiências internacionais da extrema-direita. Mas entender o significado dessa prova exige avaliações conceituais, que abordaremos num próximo texto.
Resumo
A extrema-direita está a expandir-se por múltiplas razões que tanto se assemelham como diferenciam Trump de Milei. Capta a desilusão com os seus rivais convencionais e a desilusão com as experiências progressistas. Impulsiona um retrocesso conservador contra as conquistas democráticas, substitui a linguagem elitista pela demagogia e enraizou-se no universo digital. Também radicaliza as falsas crenças implantadas pela ideologia neoliberal e explora tanto os resultados adversos da luta social quanto as dificuldades da esquerda em construir alternativas. Os Estados Unidos e a Argentina estão nos antípodas do cenário de maior regulação económica que se seguiu à crise financeira de 2008.
Texto publicado originalmente na página do autor.
Referências
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Sztulwark, Diego (2024) ¿Un presidente gramsciano?
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Johannes, Javier Molina (2022). La batalla cultural Usos de Gramsci por las derechas
Roberts, Michael (2024) EEUU: Unas elecciones sobre la economía, la inmigración y las políticas de identidad
Seymour, Richard (2024). Entrevista al pensador marxista sobre cómo la extrema derecha explota la crisis medioambiental.