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A pandemia e os direitos humanos à água e ao saneamento

Nesta Declaração conjunta dos relatores especiais do Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas no Dia Mundial do Saneamento Básico, apela-se de novo aos “governos de todo o mundo a que apliquem ou restabeleçam a política de proibição de cortes de água”, a quem não consegue pagar a fatura.
A falta de saneamento afeta a higiene de meninos e meninas, como ocorre com esse esgoto a céu aberto em Madagáscar - Foto: Lova Rabary-Rakontondravony/IPS
A falta de saneamento afeta a higiene de meninos e meninas, como ocorre com esse esgoto a céu aberto em Madagáscar - Foto: Lova Rabary-Rakontondravony/IPS

Esta declaração, que traduzimos e publicamos no esquerda.net, foi subscrita por 22 relatores especiais do Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas, a 19 de novembro de 2020, Dia Mundial do Saneamento Básico

Este ano, celebramos o Dia Mundial do Saneamento Básico (19 de novembro de 2020) no meio da pandemia COVID-19, o que põe em relevo a necessidade vital de garantir o acesso à água e ao saneamento, em particular para as pessoas que se encontram em situações de maior vulnerabilidade. Há quem diga que estamos a viver uma “nova normalidade”, com a pandemia COVID-19 a mudar certas formas de vida. No entanto, para muitas pessoas, estamos a viver um momento de crise devido às graves consequências da pandemia COVID-19, que põe em risco a nossa subsistência. Para muitas mulheres que vivem na pobreza, a falta de acesso à água e ao saneamento expõe-nas ao risco de violência de género e põe em perigo a sua saúde sexual e reprodutiva.

Lembram-nos que uma forma de prevenir a propagação do vírus é praticar a higiene pessoal adequada, lavando as mãos com água e sabão. “Lavar as mãos com frequência” é uma rotina diária simples para muitas pessoas, mas é um privilégio e um luxo para quem não dispõe de água e saneamento adequados e para quem se depara com o irónico dilema de beber água ou usá-la para lavar as mãos.

Como especialistas em direitos humanos do sistema das Nações Unidas, aproveitamos esta ocasião para apelar mais uma vez aos governos de todo o mundo para que apliquem ou restabeleçam a política de proibição dos cortes de água e de outros serviços básicos e para que garantam um nível mínimo vital de água e de abastecimentos básicos essenciais a quem tem dificuldade a pagar esses serviços e abastecimentos.

Recordamos que a Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu o acesso à água potável e ao saneamento como direitos humanos na sua resolução 64/292 de 2010 e em resoluções posteriores na última década. Em 2020, o ano que em que se cumpre o décimo aniversário deste reconhecimento internacional, recordamos a todos os governos, incluindo governos locais e subnacionais, o seu compromisso e a sua obrigação em matéria de direitos humanos de respeitar, proteger e tornar efetivos os direitos humanos à água e ao saneamento, com atenção especial às pessoas, famílias e comunidades nas situações mais vulneráveis, incluindo os grupos que sofrem discriminação racial e étnica.

Lavar as mãos com frequência” é uma rotina diária simples para muitas pessoas, mas é um privilégio e um luxo para quem não dispõe de água e saneamento adequados

Sublinhamos que as pessoas mais afetadas pela pandemia COVID-19 são as comunidades mais pobres, em particular alguns povos indígenas, minorias e comunidades rurais empobrecidas, assim como as pessoas que vivem em condições de sobrelotação e com dificuldades de acesso a serviços de adequados de água, saneamento e higiene em campos de refugiados e deslocados internos, assentamentos informais ou alojamento temporário para trabalhadores e trabalhadoras migrantes, entre outros. Por outro lado, estas pessoas veem-se obrigadas a sair todos os dias para ganhar a vida, muitas vezes viajando em transportes públicos lotados, o que multiplica os riscos de contágio. As necessidades específicas das pessoas de idade, que são as mais vulneráveis em caso de infeção, foram especialmente agravadas pela pandemia, sobretudo no caso das pessoas que vivem sozinhas, em lares de idosos ou com necessidade de assistência. Neste contexto, em que a pobreza e a desigualdade crescem cada vez mais, é necessário e urgente garantir o acesso universal à água e ao saneamento, sobretudo porque são direitos humanos, e também porque são essenciais para conseguir uma higiene adequada que permita travar as infeções e combater a pandemia.

A 23 de março de 2020, o ex-Relator Especial sobre os direitos humanos à água potável e ao saneamento, Sr. Léo Heller, juntamente com outros Relatores Especiais das Nações Unidas, fez um apelo conjunto a todos os governos para que se proíba imediatamente os cortes no fornecimento de água a quem não consegue pagar a fatura da água. Observamos com satisfação que, após o apelo conjunto, muitos governos estabeleceram medidas de proteção social que proíbem o corte de água como parte das medidas políticas para lutar contra a pandemia, em particular durante o confinamento. No entanto, com o tempo, em muitos países esta medida de proteção que protegia as pessoas em situações vulneráveis foi-se levantando ou suspendendo, apesar de a pandemia continuar mais ativa do que nunca, sem que se disponha ainda de uma vacina eficaz. Mesmo quando houver uma vacina disponível, que dificilmente será de acesso universal, o acesso garantido à água potável e ao saneamento para todos continuará a ser essencial para o combate ao vírus.

Desejamos sublinhar que a pandemia COVID-19 continua presente e que o seu impacto não só continua a ser devastador para a saúde e o bem-estar das pessoas em todo o mundo, mas também continua a aumentar a pobreza e a vulnerabilidade de milhões de pessoas. Muitos países continuam a permitir que a água seja cortada quando as famílias não conseguem pagar a fatura. Outros países ainda não consideraram a possibilidade de voltar a ligar os serviços de água às famílias cuja água foi cortada antes da pandemia. Em muitos casos, a falta de instalações de higiene, resultante de serviços de água e saneamento inadequados e insuficientes em prisões, centros de detenção,escolas e outras instalações educativas continua a ser trágica. A situação das pessoas sem abrigo é ainda mais devastadora. Além disso, vemos com preocupação que esta emergência sanitária mundial exacerbou as disparidades existentes causadas pela discriminação sistémica e estrutural, as políticas e práticas que têm afetado regularmente o acesso da população marginalizada à água, ao saneamento e à segurança alimentar.

As repercussões são particularmente graves para as mulheres e meninas, no que respeita às suas necessidades específicas de higiene durante a menstruação e ao maior risco de sofrer violência sexual, apesar de muitas vezes serem as mulheres quem cuida das famílias e as meninas quem recolhe a água para a sua família. Na verdade, as mulheres e as meninas correm o maior risco de serem vítimas de violência de género, incluindo violação, dentro e ao redor de instalações de saneamento, água e higiene, especialmente em espaços públicos e compartilhados. Além disso, a falta de instalações de higiene e serviços de saneamento acessíveis afeta desproporcionalmente as pessoas com deficiência em todo o mundo. A obrigação legal de fazer "acomodação razoável" e oferecer serviços personalizados inclui o direito de assistência às "atividades da vida diária", incluindo o uso de casas de banho e acesso a água potável para pessoas com deficiência. Os idosos também continuam a ser afetados desproporcionalmente neste contexto, incluindo as pessoas de idade com deficiência e as mulheres idosas.

Através deste apelo conjunto lançado no Dia Mundial do Saneamento Básico, instamos os governos, assim como os governos locais e subnacionais, a que proíbam o corte do serviço de água a pessoas em situações vulneráveis, dando prioridade ao acesso universal à água e ao saneamento, como direitos humanos.1 Apelamos a que a vida das pessoas e os seus meios de subsistência tenham precedência sobre os benefícios e lucros almejados pelos agentes privados que gerem estes serviços, sejam públicos ou privados. Finalmente, destacamos que independentemente da prevalência da pandemia COVID-19 ou de outras emergências de saúde pública, a proibição de cortar a água e os serviços básicos a pessoas em situações vulneráveis deve ampliar-se de maneira geral. Reiteramos que deve ser garantido o núcleo mínimo dos direitos humanos à água e ao saneamento em todos os momentos e em todas as circunstâncias. Também lembramos os compromissos mundiais assumidos no quadro da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, em particular o Objetivo 3, relativo a garantir uma vida sã e promover o bem-estar de todas as pessoas em todas as idades, e o Objetivo 6, relativo à garantia da disponibilidade e gestão sustentável da água e do saneamento para todas as pessoas, sem discriminação por qualquer motivo. É necessário promover e implementar com urgência mudanças normativas e políticas que transformem a urgente necessidade da crise de saúde pública em garantias e salvaguardas para tornar efetivos os direitos humanos à água e ao saneamento para superar a pandemia.

Declaração conjunta dos relatores especiais do Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas no Dia Mundial do Saneamento Básico (19 de novembro de 2020), original em inglês, traduzida de espanhol para português, por Carlos Santos para esquerda.net Declaração assinada por 22 relatores especiais (ver aqui)

Nota:

1 Aceda-se também às recomendações do Relator Especial sobre o direito a uma habitação adequada no seu relatório sobre a COVID-19, A/75/148, e as Notas de orientação da COVID-19 sobre proteção das pessoas residentes nos acampamentos informais e a proteção de arrendatários e pagadores de hipotecas.

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