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Água, energia, telecomunicações: como garantir acesso universal a bens essenciais?

Durante o período de pandemia, são proibidos os cortes de abastecimento de água, eletricidade e comunicações. E a seguir, será que será aceitável que se não aplique o mesmo princípio a quem não pode pagar esses serviços? Texto de apoio à intervenção de João Bau na Conferência online "Vencer a Crise".
João Bau

1- A CRISE COVID19 E O ACESSO AOS SERVIÇOS PÚBLICOS

A crise pandémica que atravessamos tornou ainda mais evidente a importância de determinados serviços públicos (falo do abastecimento de água e saneamento, da energia eléctrica e das telecomunicações) para a vida dos cidadãos em Portugal neste século XXI. De tal maneira que a Assembleia da República aprovou legislação que proíbe aos operadores o corte do fornecimento de qualquer desses serviços por falta de pagamento, durante o período de estado de emergência acrescido de um mês.

Parece-me claro que haverá necessidade de prolongar esse período de tempo (ou adoptar outras medidas), pois chegado o fim desse prazo teremos muitos desempregados, parte dos quais como por exemplo no turismo não sairão dessa situação a curto ou médio prazo, e ainda muitos trabalhadores em regime de lay-off que não terão capacidade financeira para satisfazer os seus compromissos habituais acrescidos do pagamento (ainda que faseado) das importâncias correspondentes às facturas não pagas. O corte do serviço de telecomunicações ou do fornecimento de energia eléctrica impediria até que os estudantes que beneficiam do ensino à distância assegurado pelas suas escolas via internet vissem coartada essa possibilidade. Bem como, no momento em que cerca de 85% dos doentes com COVID19 são tratados em sua casa com o apoio de profissionais de saúde via telefone ou videochamada, impossibilitaria tais contactos.

Ora durante este período de pandemia considera-se, e bem, que o fornecimento de serviços de abastecimento de água e saneamento, de energia eléctrica e de telecomunicações não deve deixar de ser prestado a quem, por razões económicas, não tem disponibilidade financeira para pagar os seus custos. E,  após este período de tempo, será que será aceitável que se não aplique o mesmo princípio a quem não pode pagar esses serviços? Dever-se-á considerar que existe “um direito” ao fornecimento desses serviços? Se existe tal direito, qual o seu conteúdo, quais os seus limites?

Irei abordar exactamente esta temática centrando o essencial da minha atenção no abastecimento de água, pois é um tema em que desenvolvi mais trabalho de estudo e reflexão, e ainda porque o “direito à água” está já reconhecido pelas Nações Unidas como um direito humano. Relativamente aos outros serviços (energia eléctrica e telecomunicações) será feita no final uma breve abordagem específica, atendendo às suas características e particularidades.

2- A GARANTIA DO DIREITO À ÁGUA

2.1- Sabe-se que a água é essencial à vida e à saúde dos seres humanos. E foi  exactamente por isso que a temática do “direito à água” esteve vários anos em debate no âmbito das Nações Unidas, debate esse que culminou com a aprovação pela Assembleia Geral, em 26/07/2010, de uma Resolução que “declara o direito à água potável e ao saneamento como um direito fundamental para o pleno disfrute da vida e de todos os direitos humanos”. Posteriormente o Conselho dos Direitos do Homem, em 30/09/2010, aprovou por consenso a sua própria Resolução sobre a mesma temática, o que significou que “para a ONU o direito à água e ao saneamento está contido nos tratados relativos aos direitos do homem e por consequência é legalmente obrigatório”.

Recordemos que há no essencial, do ponto de vista político, duas grandes vias de encarar as questões relativas aos serviços de água, com orientações e estratégias distintas. Do lado dos neoliberais considera-se que a água deve ser considerada como uma mercadoria como qualquer outra, e que o mercado será o mecanismo que melhor poderá garantir a repartição óptima dos recursos. No outro lado é reconhecida expressamente a existência dos direitos económicos, sociais e culturais (e portanto do “direito à água”) e considera-se a garantia da efectividade de tais direitos uma responsabilidade de todos. Esta decisão da ONU constitui pois uma vitória desta segunda via.

Mas em que é que consiste o direito à água? Em documento das Nações Unidas de 2002  ("Questions de fond concernant la mise en oeuvre du Pacte International relatif aux droits économiques, sociaux et culturels" - Observation générale nº15 (2002) - "Le droit à l'eau") o “direito à água”, era definido como consistindo “no fornecimento suficiente, fisicamente acessível e a um custo acessível, de uma água salubre e de qualidade aceitável para as utilizações pessoais e domésticas de cada um”.

O problema que agora enfrentamos é pois o de garantir o tal “direito à água”. No que respeita ao nosso País, e uma vez que (graças ao enorme esforço de investimento público que nos últimos 30 anos foi feito no sector do saneamento básico) a acessibilidade física às redes de água e saneamento e a qualidade da água estão garantidas na quase totalidade do território, a questão central nos nossos dias é assegurar que o “fornecimento suficiente” de água seja “economicamente acessível” a todos, mesmo àqueles que, durante um período de tempo mais ou menos dilatado, não disponham dos recursos financeiros necessários ao pagamento da respectiva factura.

Convém esclarecer, desde já, que a garantia da efectividade do direito à água não implica necessariamente que seja disponibilizada água gratuita (embora essa seja uma alternativa praticada por exemplo na Flandres), mas sim que esta tenha um custo acessível (por exemplo por recurso à subsidiação cruzada e/ou com a criação de tarifas sociais) e que exista um mecanismo que assegure o pagamento da água potável, durante o período de tempo necessário, àqueles que comprovadamente não possuam capacidade de suportar o seu pagamento.

2.2- Mas passemos a analisar uma questão que alguns colocam, e que poderemos considerar como uma questão prévia: será que a adopção de uma  tal política, que poderá implicar até que durante um certo período de tempo possa haver pessoas que tenham acesso à água sem ter que efectuar o respectivo pagamento, não irá contribuir para situações em que haja desperdícios de água, em prejuízo da adopção de uma política de conservação da água, cada vez mais urgente face à crescente escassez do recurso no nosso País? Examinemos o problema.

E para isso será útil começar por clarificar que a água tem diferentes funções. Conforme refere a Declaração Europeia para uma Nova Cultura da Água há que discernir com clareza as funções da água, distinguindo os seguintes níveis:

  • a água-vida, em funções de vida, que dizem respeito a direitos humanos individuais (o acesso à água potável, condição de vida e saúde) e colectivos (o direito das comunidades ao território e seus ecossistemas);
  • a água-cidadania, em funções de serviço público ou de interesse geral, que dizem respeito a direitos sociais, tais como os relacionados com a saúde pública, a coesão social e a equidade;
  • a água-negócio, em funções de negócios legítimos, que dizem respeito a direitos privados e individuais a melhorar o nível de riqueza e bem estar;
  • a água-negócio, em funções de negócios ilegítimos, que devem ser combatidos por lei.

Cada uma destas funções respeita a direitos que se encontram em níveis qualitativos diferentes, que implicam prioridades diferenciadas, assim como critérios de gestão claramente distintos.

Quando da concepção de um sistema tarifário para os serviços de abastecimento de água e saneamento é não só perfeitamente legítimo mas indispensável ter em conta a diferente natureza das diversas utilizações da água. A água em “funções de negócios legítimos”, onde na grande maioria das situações tem aliás uma expressão diminuta na estrutura de custos do negócio, deve ser tarifada pelos operadores dos serviços de acordo com critérios que não há razão para se afastarem dos adoptados pelos fornecedores de outros bens ou serviços. Já a tarifação da água utilizada em “funções de vida” (e também, embora noutro grau, em “funções de serviço público e de interesse geral”) não pode deixar de ter em conta a finalidade com que é utilizada e que diz até respeito ao direito à vida dos seres humanos, direito esse que tem de ser garantido independentemente da situação económica das pessoas.

Quando se refere o “direito à água” está-se, pois, a falar de garantir as utilizações domésticas da água em funções de vida, que são apenas uma parcela das utilizações domésticas totais da água. E portanto o receio de que a construção de mecanismos que garantam efectivamente o direito à água prejudique a promoção de uma política de conservação e uso eficiente da água não tem cabimento. Tal política, como é óbvio, não contempla a negação da garantia desses consumos mínimos vitais, que são condição de vida dos seres humanos.

2.3- Voltemos ao tema da construção de um mecanismo de garantia do direito à água que exige, aqui e agora, a resposta a três questões.

A primeira será a seguinte: “mas o que é o “fornecimento suficiente” da água para funções de vida? Tenho defendido que para países desenvolvidos como Portugal ele deve ser, no mínimo, de 50 litros per capita e por dia, o valor que a OMS considera garantir as necessidades básicas de higiene e consumo. E que, portanto, um 1º escalão do sistema tarifário que contemple este consumo vital deverá ser de 1,5 m3 por pessoa e por mês.

E a segunda questão será: E o que é o “custo acessível”? Há evidentemente diferentes perspectivas na resposta a tal questão. Deverá entender-se que é um “fornecimento suficiente” a custo zero, como acontece, por exemplo, na região da Flandres, na Bélgica, onde todos os cidadãos têm direito a 15 m3 anuais de água (o tal “consumo vital” anual) fornecida gratuitamente? Solução esta que, do ponto de vista conceptual, tem a vantagem de retirar os consumos vitais da esfera mercantil, remetendo-os para o domínio dos direitos do homem. Ou será um “fornecimento suficiente” com um preço suficientemente baixo mas não nulo, com o estabelecimento concomitante de mecanismos que permitam a resolução de casos em que não seja possível, comprovadamente, o pagamento por parte do cidadão/consumidor (como ocorre, também na Bélgica, mas na região da Valónia e em Bruxelas)?

E como se podem financiar os mecanismos de solidariedade que permitam garantir o direito à água? Referirei apenas que existem na Europa mecanismos diversos para apoiar os cidadãos impossibilitados de fazer face ao pagamento das facturas de serviços básicos por razões económicas e que visam, por conseguinte, evitar a interrupção da prestação de tais serviços. Uns, como em França, funcionam a nível departamental e com base em transferências do orçamento social, ou seja, são financiados pelos contribuintes. Outros como na Valónia ou em Bruxelas são baseados na introdução, no sistema tarifário dos serviços de água, de uma parcela destinada a um Fundo de Solidariedade, e são portanto suportados pelos consumidores. Outros mecanismos poderiam ser ainda criados, tais como por exemplo o estabelecimento de uma taxa sobre a água mineral engarrafada.

Dos três tipos de mecanismos de financiamento referidos parece-me que o primeiro (verbas do OE ou dos orçamentos das autarquias locais) poderá não ser neste momento a melhor opção em muitos municípios face aos problemas e restrições orçamentais que bem conhecemos. Afigura-se que o recurso aos dois outros mecanismos referidos, se necessário até a um mix deles (ou a um mix que inclua também verbas públicas), poderá ser uma solução. Refiro que se, por exemplo, incluirmos nas tarifas da água facturada pelos operadores uma componente solidária de 0.01 €/m3 obteríamos uma receita anual superior a 5,6 M€ para um Fundo de Solidariedade. E acrescento que se, por exemplo, taxarmos com 0,01€ cada vasilha de água engarrafada (seja qual for a sua capacidade) obteríamos uma receita para o referido Fundo superior a 5,5 M€ anuais. As alternativas referidas não foram apresentadas como propostas mas apenas como simulações, para termos ordens de grandeza de receitas susceptíveis de serem mobilizadas.

3- CONSIDERAÇÕES FINAIS

3.1- Passados 10 anos do reconhecimento pelas Nações Unidas do “direito à água” como estando incluído nos tratados internacionais relativos aos direitos do homem de que Portugal é signatário, é altura de introduzirmos no nosso ordenamento jurídico o reconhecimento de tal direito e de criarmos um mecanismo de financiamento que garanta a sua efectividade. É por isso que tenho vindo a defender que o BE encare de frente tal desafio, que prepare e apresente em momento adequado uma proposta legislativa e que negoceie a sua aprovação na Assembleia da República.

3.2- Acrescento ainda que, como já apontei, seria útil que para os outros serviços públicos que referi, o de fornecimento de energia eléctrica e o de telecomunicações, muito embora sejam de natureza bem diferente do serviço de abastecimento de água (a água é um bem diferente de todos os outros, essencial para a vida e saúde dos homens), fosse feita uma análise específica para cada um deles, que permitisse definir nomeadamente o que seria o “fornecimento suficiente” que, em Portugal e em 2020, se consideraria que seria necessário e razoável assegurar.

Acresce que o Primeiro Ministro já apontou como objectivo garantir que no próximo ano lectivo todos os estudantes tenham ligação por via informática às suas escolas, o que exige que cada um deles disponha de um computador ou de um tablet, mas também que todos eles disponham em suas casas de energia eléctrica e de ligação à internet. Neste momento e durante um período de tempo que não é possível estimar o acesso à escola pública passa de facto pela disponibilidade de acesso à internet. E, no futuro, é bem possível que, sem prescindir da insubstituível ligação presencial professor/aluno, o recurso às tecnologias da informação seja cada vez mais utilizado pelas escolas, o que será até potenciado pela experiência que estamos a viver.

Também no que respeita à saúde sabemos que actualmente cerca de 85% dos doentes com COVID19 permanecem no seu domicílio apoiados via chamadas telefónicas ou via videochamadas por pessoal especializado dos serviços de saúde. Até para doentes não-COVID o recurso à telemedicina tem vindo a ser utilizado pelo SNS (Serviço Nacional de Saúde) e pelo sector privado. Dizem os especialistas que a telemedicina veio para ficar, não para dispensar a insubstituível ligação presencial médico/doente mas para ocupar um espaço que provavelmente vai crescer com o tempo. Também aqui o acesso à internet e à energia eléctrica são indispensáveis.

Ou seja, já neste momento o pleno acesso a dois pilares no nosso Estado Social, a escola pública e o SNS, exigem não só a disponibilidade de dispositivos como os telefones e os computadores como também o acesso aos serviços de fornecimento de electricidade e de telecomunicações. Duvido que se possam considerar como direitos humanos tais acessos, mas considero que eles são no nosso País nestes tempos de hoje (e no futuro próximo) condições cada vez mais necessárias ao usufruto de serviços, a escola pública e o SNS, que eles sim são garantia de direitos humanos (os direitos à saúde e à educação). Pelo que defendo que sejam estudados com urgência mecanismos de garantia  do acesso universal a um “fornecimento suficiente” dos serviços de electricidade e dos serviços de telecomunicações.

Quanto à electricidade a existência de tarifas sociais de aplicação automática (com custos suportados pelos operadores) a cidadãos que beneficiem de determinadas prestações sociais com condição de recurso foi um importante passo em frente. Que faltaria completar com a criação de um mecanismo de financiamento do “fornecimento suficiente” daqueles que durante um determinado período de tempo não têm condições financeiras para suportar total ou parcialmente os custos dos serviços, mesmo com a aplicação das tarifas sociais.

Quanto aos serviços de telecomunicações seria interessante definir um “Pacote mínimo” de serviços de TV+internet+voz e criar uma tarifa social para o seu pagamento pelos utentes, em condições idênticas às vigentes para a electricidade. Esta medida deveria ser de aplicação universal. Em seguida complementar esta medida pela criação de um mecanismo de financiamento para aqueles que não têm condições financeiras para suportar (total ou parcialmente) os custos do serviço, mesmo com a aplicação da tarifa social. Seria oportuno discutir o âmbito de aplicação desta última medida: deveria ser de aplicação universal ou contemplar apenas (o que talvez fosse mais viável e razoável neste momento) aqueles em que o acesso aos serviços referidos fossem cruciais para assegurar o acesso pleno à escola pública e ao SNS (famílias com crianças em idade escolar que interessasse manter a beneficiar do ensino à distância, cidadãos doentes ou em quarentena seguidos pelos serviços de saúde com recurso à telemedicina, idosos vivendo isolados, etc.)?

A proposta que faço não é nada de radicalmente novo na Europa. Pois, por exemplo, o mecanismo de financiamento (através do orçamento social ao nível dos departamentos) que de há muito existia em França, e que referi a propósito do financiamento do direito à água, já abrangia (e para além da água) o pagamento, a cidadãos comprovadamente sem recursos para suportar os respectivos custos, de uma parcela dos consumos de electricidade e de telefone para pessoas idosas.


João Bau é Investigador-Coordenador do LNEC (aposentado), Presidente da EPAL (Empresa Portuguesa das Águas Livres) nos períodos 1975-1980 e 1996-2000, Administrador da AdP-Águas de Portugal no período 1996-2002, Presidente da APRH (Associação Portuguesa dos Recursos Hídricos) no período 1990-1992, Presidente da APDA (Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas) no período 2000-2003, Membro do “Board” da IWRA no período 1986-1988, Membro do “Board” da EUREAU no período 2000-2003, Deputado Municipal em Lisboa nos mandatos 2005-2009 e 2009-2013, Deputado Metropolitano na Área Metropolitana de Lisboa no mandato 2005-2009.

Sobre o/a autor(a)

Investigador-Coordenador do LNEC (aposentado) e membro do Conselho Fiscal da OTC (Organização dos Trabalhadores Científicos). Foi Presidente da EPAL, administrador da AdP-Águas de Portugal e membro de vários organismos nacionais e internacionais ligados ao setor das águas.
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