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João Bau: "Cem milhões de pessoas têm água de sistemas remunicipalizados"

Entrevista a João Bau, investigador, ex-Presidente da EPAL e ex-Administrador das Águas de Portugal sobre o direito à água e as suas implicações da remunicipalização da água em locais onde foi privatizada. Por Joana Louçã.
João Bau
João Bau: "Quando alguém vê cortado o seu abastecimento por não ter dinheiro para pagar a fatura, isso constitui uma violação do direito à água"

Esta entrevista está incluída parcialmente no programa Mais Esquerda, que pode ser visto aqui e inclui uma reportagem sobre o processo de remunicipalização da água em Mafra (aqui), uma entrevista ao realizador Miguel Gonçalves Mendes (aqui) e um comentário de Ricardo Robles sobre o filme "Terramotourism", acerca do processo de turistificação da cidade de Lisboa (aqui).

O direito à água foi reconhecido pela ONU em 2010 e foi aprovado por Portugal. O que assegura?

Para os Estados subscritores do pacto internacional dos direitos económicos sociais e culturais, o reconhecimento do direito à água pelas Nações Unidas implica a obrigação cumprir e de fazer cumprir esse direito. Aliás, nós há dias tivémos aqui o perito das Nações Unidas, do Comité de Direitos Humanos relativo à água, exatamente para verificar se a presença da troika tinha implicado violações deste direito. Para as pessoas, para os cidadãos, o direito à água implica o direito de, em caso de incumprimento por parte dos Estados desse direito, de recorrerem ao sistema das Nações Unidas, pedindo às Nações Unidas para intervirem e reporem a legalidade.

Como é que pode ser garantido? 

O direito à água implica duas dimensões, primeiro uma dimensão física, as pessoas têm que ter a água acessível a uma distância razoável. No nosso país, nos países da Europa, isto significa ter uma torneira em casa. Noutros países, muitas vezes é ter uma origem de água, um chafariz a uma distância razoável que não obrigue a andar quilómetros com um vasilhame carregado com água. O segundo aspeto é a acessibilidade económica. Isto é, quando alguém vê cortado o seu abastecimento por não ter dinheiro para pagar a fatura, isso constitui uma violação do direito à água. 

O perito da ONU de que falaste constatou que, em Portugal, 5% da população não tem acesso a água canalizada, que 20% não tem acesso à rede de esgotos e que a água é mais cara nos municípios mais pobres, no interior do país. Como se justifica esta situação?

A competência para operar sistemas de abastecimento de água e de saneamento é municipal, é o que dispõe a nossa lei e é o que dispõe a generalidade dos países. Em todo o mundo, esta é uma competência municipal e a operação tem custos diferentes, portanto, os preços praticados necessariamente também são diferentes. É evidente que os municípios que têm maior dimensão, por exemplo, Lisboa, se os compararmos com Serpa, ou com Penacova, ou com outro município pequeno, têm uma massa crítica que lhes permite praticar preços mais baixos. Se compararmos o município da Amadora com o de Sintra, com uma altímetria muito marcada, uma parte do seu território está para lá da Serra de Sintra, é óbvio que Sintra vai ter custos acentuados.

A água em todo o território deveria ter o mesmo preço?

A minha opinião é que não, isso não é desejável, não é um objetivo. Até porque, genericamente falando, em termos de gestão de recursos hídricos, isso é um fator de ordenamento das atividades económicas. Isto é, uma grande indústria amanhã que exija uma grande quantidade de água para a sua laboração é lógico que se instale num sítio onde a água seja mais barata, e não num sítio onde a água seja mais cara. 

Em relação a isto, há que destrinçar os diferentes tipos de consumos. A Declaração Europeia para a nova cultura da água diferencia três tipos de funções que a água desempenha: a água-vida (que garante a vida das pessoas e a sua saúde), a água-cidadania (quando a água desempenha funções de serviço público ou de interesse geral) e a água-negócio (usada em funções de negócios). No caso da água-negócio, não faz sentido aplicar tarifas que se diferenciem das regras que são adotadas pelos outros fornecedores de bens ou de serviços de que a indústria careça. Até porque nas atividades económicas, nas estruturas de custos das empresas, a água é um custo genericamente sem significado, exceto em indústrias que sejam grandes consumidoras de água, como os refrigerantes, e indústrias deste tipo. Por isso nesse caso, não se justifica fazer qualquer tipo de subsídio, ou de subsidiação cruzada, a água-negócio deve ser paga de acordo com o seu custo e de acordo com a margem de lucro que os outros fornecedores de bens e de serviços às empresas também têm.

Mas para o consumo humano, não deveria haver uma tarifa igual em todo o país? 

Sim, a água-vida é diferente. Nos termos de um documento das Nações Unidas, a água-vida é o fornecimento suficiente, física e economicamente acessível para as necessidades diárias de consumo próprio e de higiene das pessoas. Essa água tem de estar acessível às pessoas, essa é que se justifica que em todo o país tenha uma tarifa uniforme. A essa água é que se refere o direito à água e há que garantir que todas as pessoas tenham acesso a essa água. 

Disseste que o direito água garante a sua acessibilidade económica, e quem não consegue pagar a tarifa? 

Para consumidores com uma situação económica mais baixa, a tarificação social que foi recomendada aos operadores pela Entidade Reguladora é uma aproximação a esse objetivo. Nesses casos e em princípio, a quota de serviço, ou a parcela fixa, não é paga, o que torna mais fácil o acesso das pessoas. Mas há depois situações de pessoas que num determinado período, mais ou menos longo, não têm dinheiro nem para pagar essa água. Então aí há que garantir que existe um mecanismo de solidariedade para financiar essa prestação de serviço. Há que garantir que as pessoas que não têm dinheiro nenhum, que não têm hipótese de pagar a sua conta da água, não vêm a sua água cortada e têm direito a um fornecimento mínimo indispensável à sua vida e à garantia da sua saúde.

Como poderíamos financiar esse fundo solidário?

De várias formas distintas, uma seria via Orçamento do Estado, isto é, via contribuintes. Os contribuintes na sua globalidade, através dos seus impostos, financiam um fundo que vai pagar a água dessas pessoas que não têm dinheiro para a pagar.

Um segunda via possível seria através da subsidiação cruzada, isto é, os consumidores que não estão nessa situação pagam um sobrecusto na sua tarifa, que permite financiar um fundo para pagar a água a pessoas com dificuldades. Evidentemente que isto é muito mais simples em cidades grandes, como Lisboa, Porto, Coimbra ou Setúbal, do que em pequenos municípios do interior. Até porque nestas grandes cidades temos consumos que não são domésticos, consumos industriais e comerciais, que têm uma maior dimensão nos concelhos grandes, mas que são insignificantes nesses concelhos pequenos, onde a subsidiação de água vinda dos consumidores não domésticos não funciona. Há que pensar num mecanismo nacional que permita redistribuir esse fundo de solidariedade pelos municípios, até porque os municípios do interior depois são aqueles que têm mais dificuldade.

A terceira via seria arranjar uma fonte alternativa de financiamento. Tenho vindo a propor como uma via alternativa taxar a água engarrafada. Hoje em dia temos no país água de excelente qualidade de Norte a Sul, não estamos na situação em que estávamos há 15 ou 20 anos, quando havia zonas do país em que a água não tinha a qualidade indispensável ao consumo humano. A água, hoje em dia, é boa e é controlada, a generalidade das pessoas pode consumir água da torneira com toda a tranquilidade e toda a confiança, não se justifica o consumo da água engarrafada como uma necessidade vital. Quem quiser consumir água engarrafada, que a consuma, mas pague-a. 

Por outro lado, o consumo da água engarrafada implica uma pegada ambiental muito grande. A água é transportada em viaturas, que carecem de gasóleo para se deslocar, que é importado. Por outro lado, as viaturas emitem gases com efeito de estufa, outra coisa que não é desejável. O vasilhame das garrafas implica ainda que vão aparecer resíduos aos quais há que dar um destino final adequado. Do ponto de vista ambiental, deveríamos fazer uma campanha para que as pessoas consumissem não água engarrafada, mas água da torneira. Isto não tem nada de revolucionário: não há muitos anos atrás, os Mayors quer de Londres, quer de Nova York, patrocinaram campanhas dessas. Por todo o país, a cada ano, compramos mais de 900 milhões de garrafas ou garrafões de água. Se as taxássemos com um cêntimo cada vasilha, já teríamos 9 milhões de euros.

Seria o suficiente…

Não sei se era o suficiente, mas pelo menos já era uma ajuda para as pessoas que não conseguem pagar a tarifa social não vissem a sua água cortada e tivessem acesso a uma água segura para o seu consumo diário.

Mafra anunciou recentemente a remunicipalização da água, esta é uma tendência que se começa a verificar noutras cidades?

Mafra anunciou que resgata a concessão, o que em Portugal tem um efeito simbólico, porque Mafra foi a primeira concessão privatizada. Os primeiros a privatizar são os primeiros a resgatar, e admitimos que outros municípios sigam essas pegadas. Internacionalmente, esta tendência de remunicipalização está a notar-se essencialmente desde o ano 2000 e de forma cada vez mais acelerada, nomeadamente nos países mais desenvolvidos.

A partir de 1989, com o governo da Srª Thatcher e a privatização das Water Authorities, o setor privado teve um grande ascenso, muito embora no mundo fosse sempre minoritário. A partir de 2000, os grandes grupos privados começaram a redefinir os seus mercados alvo, a vender participações, a abandonar operação num conjunto de locais, municípios e países e, simultaneamente, as entidades públicas passaram a assumir o controlo desses sistemas. Nuns casos porque o compraram, ou o recompraram porque os privados estavam desejosos de sair. Noutros casos, porque a pressão popular obrigou a isso, como foi o caso de Costa Bamba, na Bolívia, um caso exemplar da primeira guerra da água que se fez com Estado de Sítio, feridos, mortos, até que a empresa concessionária fosse afastada.

A remunicipalização também se deu porque os concessionários não estavam a cumprir os standards a que estavam obrigados contratualmente, as suas obrigações quer em matéria de investimento, quer em matéria de serviço. Um caso típico disto foi o da companhia francesa Atlanta, no Estado da Georgia, nos Estados Unidos da América, que ao fim de cinco anos foi afastada pelas autoridades norte americanas, por considerarem que não cumpriam o contrato. Por todas estas razões, começou a crescer a operação de sistemas públicos. 

Estima-se que desde 2000 mais de cem milhões de pessoas estão a ser consumidores de água de sistemas que antes eram privados e neste momento estão estatizados (na generalidade dos casos, remunicipalizados). Há alguns casos de capitais europeias que são muito significativos, Paris, Berlim e Budapeste. E ocorreu o mesmo na Rússia, Ucrânia, Cazaquistão, Indonésia, Argentina, Estados Unidos, Canadá, enfim, há países por todo o mundo, dos cinco continentes, que procederam à remunicipalização dos serviços, que é um processo em curso e com velocidade crescente.

Quando a água é remunicipalizada, que diferença há entre uma gestão pública ou privada?

Para o cidadão comum, o serviço público não é bom por ser público, é bom pela forma como desempenha as suas funções, como serve os cidadãos. Por exemplo, em Mafra a Câmara diz que, em vez de aumentar as tarifas até 30% como pediam os operadores, vai baixar as tarifas em 5%. Com isto, a Câmara está a dar razão a todos aqueles que, como eu, sempre disseram que a privatização iria implicar um aumento de custos para os consumidores. Se for só isso, é bom, mas não deve ser só isso.

A municipalização abre uma janela de oportunidades. Para já, na forma como a água é considerada: a água é um bem comum que deve ser garantida a todos, ou é uma mercadoria? É como o ar, um bem ao que todos temos de ter acesso para vivermos, ou é uma mercadoria como a Coca Cola, que compra quem quer e quem pode? Isto tem consequências, há um conjunto de valores que estão ligados a isto.

Por um lado, ao contrário de uma gestão pública, uma empresa privada geralmente gere uma operação, gere o seu sistema com uma perspetiva de curto prazo, no sentido de obter o maior lucro possível e de valorizar os seus ativos. Muitas vezes valoriza-os e vende logo a seguir. Neste momento, na água, os fundos de private equity, os fundos de investimento fechados estão a popular. No Reino Unido, das 10 grandes empresas de água, só 3 é que estão cotadas em bolsa, todas as outras já são fundos fechados que não prestam contas à bolsa, nem aos cidadãos das suas contas. Uma empresa pública tem de ser transparente, tem de prestar contas aos cidadãos, deve fornecer os elementos suficientes para que as pessoas conheçam o funcionamento da empresa, possam participar, dar sugestões, possam fazer o controlo social do município, do funcionamento da instituição municipal.

Uma gestão pública tem a obrigação de ter preocupações ambientais que uma privada não tem. A privada quer vender, quanto mais vender, melhor, porque é disso que ela vive. Uma gestão pública deve fazer gestão da procura, deve procurar controlar os consumos, deve procurar uma sustentabilidade ambiental das operações, além de que uma gestão pública tem de ter grandes preocupações com por a água ao serviço do desenvolvimento local e regional. Por exemplo, no concelho de Mafra, a Ericeira está a crescer com a reserva mundial de surf, e é preciso servir as pessoas com qualidade no domínio da água e do saneamento. Isso é muito mais fácil de fazer com uma empresa pública, que tem a obrigação de se articular com os responsáveis locais e prosseguir uma política que seja consistente com as políticas do município. E ainda uma empresa pública tem a obrigação de fomentar trabalho com direitos, de apostar na formação dos seus trabalhadores, o que não acontece nas privadas.

Por último, Mafra foi operada por um dos maiores operadores mundiais, a Veolia. Estas grandes empresas têm os seus lucros não apenas da operação, mas de todas as atividades necessárias à operação e praticam a verticalização da atividade. Isto é, as empresas de um grande grupo compram os seus equipamentos às empresas do grupo, compram os produtos necessários ao seu funcionamento às empresas do grupo, os projetos são feitos pelas empresas do grupo, as obras são feitas pelas construtoras do grupo, o software é feito pelas empresas do grupo, a consultoria, tudo. É nestas atividades que está a principal chave para o lucro dos grupos, não é na operação, porque a operação é regulada, os custos não podem subir senão na medida em que o acordo o autorize, mas tudo o resto está fora dessa regulação. O que isto provoca é que as empresas nacionais que tenham know how nessa área deixam de poder vender os seus serviços, produtos e equipamentos a essas empresas. 

Não estou preconizar que, em áreas em que nós não tenhamos know how, não devamos recorrer ao estrangeiro. Temos a obrigação de recorrer aos melhores, mas, na área da água, temos excelentes técnicos, empresas, projetistas e consultores, não precisamos de ir para o estrangeiro. Com a remunicipalização, essa lógica também deve ser revertida

 

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Sobre o/a autor(a)

Doutorada em sociologia da infância
Termos relacionados Sociedade
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