Os meus "Confinamentos

20 de maio 2020 - 10:34

No Tarrafal foi possível conceber um conjunto de mecanismos para nos articularmos com os restantes presos, entre nós angolanos, mas, igualmente, com os presos cabo-verdianos. Por Justino Pinto de Andrade.

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Justino Pinto de Andrade
Justino Pinto de Andrade quando saiu do seu último confinamento, no Moxico (desterro) e regressou à Universidade, no 2º ano de Economia. Abandonou forçosamente Medicina, fruto do seu primeiro confinamento, o "ajuste de contas" com a PIDE. Nesta foto, tinha 32 anos, 10 dos quais confinado.

 

O esquerda.net tem publicado um testemunho por dia de resistentes antifascistas sobre o seu quotidiano na prisão e/ou na clandestinidade e as estratégias que encontraram para combater o isolamento.

Todos os testemunhos publicados até ao momento estão reunidos aqui:

Confinamento(s) em tempo de ditadura

Projeto organizado por Mariana Carneiro.


Os meus "Confinamentos"

Sou daqueles que pode fazer referência a vários “confinamentos”. No meu “curriculum político”, tive 4 “confinamentos”, cada um com a sua história e característica. Nenhum se assemelha ao outro. A única coisa que os interliga é o facto de eu ser sempre o “confinado”.

O meu “1º confinamento“ começou no dia 21 de Novembro de 1969, dia em que a PIDE, a polícia política portuguesa, me prendeu em casa, em Luanda, um mês depois de ter dado início ao desmantelamento formal da estrutura clandestina a que estava ligado e de que era um dos dirigentes, o CRL (Comité Regional de Luanda), tentáculo do MPLA.

O “2º confinamento” ocorreu em princípio de 1975 - já depois do “25 de Abril de 1974”. Fui preso no município de Lândana (província de Cabinda) quando, pela segunda vez, me dirigia para o Congo, integrando um grupo multinacional constituído por três militantes dissidentes do MPLA (tal como eu), a que se juntou um Centro-africano e um Gabonês, eles também residentes no Congo.

Numa lógica meramente contabilística, o MPLA deve-me 5 anos de liberdade, tal como a PIDE…

Levados de volta para a cidade de Cabinda, ficamos detidos num quartel militar já controlado pelos soldados do MPLA, com a cumplicidade das forças portuguesas instaladas em Cabinda. Um “confinamento” de poucos dias, mas de grande dramaticidade, ameaçados constantemente de sermos fuzilados. Felizmente, tudo terminou sem derramamento de sangue. Não entro em mais pormenores sobre esse episódio, porque extravasa os limites da ideia inicial.

O “3º confinamento” acontece com a minha prisão pela FNLA, em Luanda, também em 1975. Preso, espancado e “confinado” durante vários dias, numa das estruturas desse Movimento, quando se dizia que eles “comiam corações”, “esventravam as pessoas”, praticando igualmente outras barbaridades… Saí vivo desse “confinamento”. Hoje corre a notícia de que tais “práticas” atribuídas à FNLA não passaram de uma invencione do MPLA, para desgastar a imagem do seu principal adversário (inimigo) na época. Ainda tenho o coração no peito e as vísceras no seu devido lugar…

Finalmente, o “4º confinamento”, cerca de quatro meses depois da data da Independência, num verdadeiro “ajuste de contas” do MPLA consigo próprio e com a sua história. Um “confinamento” também de longa duração: cerca 3 anos de prisão (com transferências de prisões) seguido de 2 anos de desterro para o Leste de Angola. Um desterro sem prazo limite, interrompido 9 meses depois da morte do Presidente Neto. Numa lógica meramente contabilística, o MPLA deve-me 5 anos de liberdade, tal como a PIDE…

Fui precisamente desterrado para a província em que se verificou o massacre de muitos militantes do MPLA conotados com “O 27 de Maio de 1977”, tanto de militares como civis. Foi aí que se instalou um verdadeiro “matadouro” de seres humanos: a tristemente célebre “Base da Kalunda”.

Depois da morte de Neto, em 1979, apareceram, no Luena, os sobreviventes dos massacres na “Base da Kalunda”, vivendo em escombros de edifícios inacabados, como mendigos, deambulando pelas ruas do Luena em busca de algo para comerem, inclusive, nos contentores. Lembro-me, por exemplo, do Bany Albano, jovem FAPLA meu conhecido de Luanda, esgaravatando num contentor de lixo.

O nosso reencontro deu-se do modo mais inesperado: o Bany Albano de cabeça enfiada num contentor de lixo, procurando comida. Quando levantou a cabeça, deparou-se com o meu olhar curioso… Reconhecemo-nos. Éramos, afinal, mais duas das inúmeras vítimas das repressões dentro do MPLA: eu, Revolta Activa, e o Bany Albano, preso no quadro do “27 de Maio de 1977” - um dos sobreviventes do “Inferno da Kalunda”. Levou-me a conhecer a circunstância em que vivia com os seus companheiros de infortúnio: andrajosos, esfomeados, vivendo do que podiam obter em qualquer sítio. Na sua maioria, ex-soldados da famosa 9ª Brigada das FAPLA, uma das grandes vítimas da repressão, no rescaldo do “27 de Maio”. Muitos deles reconheceram-me, sabendo, inclusive, do meu historial de prisões. Mas, estavam vivos, tal como eu…

Propriamente no contexto da minha participação directa na luta anticolonialista e antifascista, resumo o meu “confinamento” a 2 períodos distintos, o primeiro dos quais na Cadeia de São Paulo, com duração de 6 meses, boa parte passada em cela solitária (Cela 21), e o segundo, de 4 anos, no Tarrafal.

A Cela 21 estava num longo corredor de celas individuais, a que a PIDE chamava de “Celas Especiais”, alegadamente reservadas a presos com Estatuto Diferenciado: Uma “deferência” da PIDE… Estudante de Medicina e um dos dirigentes do CRL mereci tal “deferência”.

A vida passada na Cela 21 foi preenchida com interrogatórios e a formalização do Processo. Nesta primeira fase do meu “4º confinamento”, foi-me possível estabelecer contacto com outros presos do meu Processo, em especial, com o meu irmão Vicente (Cela 17), Juca Valentim (Cela 20), Gilberto Saraiva de Carvalho (Cela 22), e o Alcino Borges.

É aqui que emerge um elo de contacto que se tornou essencialmente para ludibriarmos a vigilância da PIDE: o Zacarias, guerrilheiro do MPLA aprisionado há já algum tempo, numa operação próximo de Kifangondo. Já com uma relativa longevidade como prisioneiro, o Zacarias passou à condição de prestador de serviço aos “presos especiais”. Era uma forma de gozar de alguma “liberdade”… Limpava-nos as celas, levava-nos a comida. Paralelamente, funcionava como nosso “pombo-correio”, transportando mensagens e dando-nos informações sobre o movimento na Cadeia. Combatente convicto, disciplinado, deu-nos muita coragem.

Recordo-me de, no dia em apareceu na minha Cela para a limpar, o Zacarias ter-me dito os números das Celas em que se encontravam o Juca Valentim, o Gilberto Saraiva de Carvalho e o meu irmão Vicente. Que estavam bem de saúde. E que eu devia comer a comida que a PIDE fornecia, porque precisava de me manter com força para melhor resistir aos interrogatórios.

Nessa primeira parte do meu “1º confinamento” conheci uma senhora muito singular: Violeta Jonatão Chingunji, mulher do senhor Eduardo Jonatão Chingunji, presos como nós na Cadeia de São Paulo.

A Tia Violeta, como era tratada por nós, “apanhava sol” ao mesmo tempo que eu, num pequeno espaço com 2 ou 3 bancos perfeitamente controlados pelos olhares dos PIDES.

Os Chingunji eram uma família profundamente engajada na UNITA. Eduardo Jonatão viveu comigo os 4 anos posteriores no Tarrafal. A Tia Violeta foi deportada para o Campo de São Nicolau, em Angola, onde partilhou a vida com os filhos mais novos. Os filhos mais velhos do senhor Jonatão, o David e o Samuel estavam na Luta.

Da minha experiência na Cadeia Central de Bissau recordo episódios dignos de serem referidos com pormenores num Livro de Memórias

Na parte final do primeiro período do meu “1º confinamento” fui transferido para uma Caserna onde juntaram alguns dos restantes presos do meu Processo, tidos como Cabecilhas.

De caminho para o Tarrafal, uma passagem de cinco dias pela Cadeia Central de Bissau, enquanto o navio que nos transportava, o “cargueiro Manuel Alfredo” descarregava mercadorias no porto de Bissau.

Da minha experiência na Cadeia Central de Bissau recordo episódios dignos de serem referidos com pormenores num Livro de Memórias. Aí mantivemos contactos clandestinos com o então Presidente do PAIGC, Rafael Barbosa (entretanto, libertado) e com o Capitão Peralta, piloto cubano feito prisioneiro pela tropa portuguesa, durante a luta de libertação da Guiné-Bissau, bem como com um oficial do Exército da Guiné-Conacry, também ele prisioneiro.

Antigo Campo de Concentração do Tarrafal, o "Campo da Morte Lenta", situado no lugar de Chão Bom do concelho do Tarrafal, na ilha de Santiago (Cabo Verde). Foto de Mariana Carneiro.

Passei 4 anos seguidos no Tarrafal, até que o “25 de Abril” nos abriu as portas para a liberdade, no dia 1 de Maio de 1974.

O Tarrafal foi uma verdadeira escola de vida. Lá encontrei uma parte do espelho da nossa Luta de Libertação, não só representando as diversas gerações que enfileiraram nessa corrente como, também, o mosaico sociocultural do nosso país.

Os presos do Tarrafal expressavam o curso da geografia da nossa luta. Também o papel dos meios urbanos na contestação ao colonialismo, a incorporação dos meios rurais no movimento guerrilheiro, e a minha geração de jovens que recusaram as “benesses” que o sistema colonial parecia oferecer.

O Tarrafal foi, para mim, uma verdadeira Escola Superior de Vida. Sou dos poucos sobreviventes e ainda guardo uma imensa saudade dos meus companheiros de luta, de todos

O Tarrafal foi, para mim, uma verdadeira Escola Superior de Vida. Sou dos poucos sobreviventes e ainda guardo uma imensa saudade dos meus companheiros de luta, de todos. Porque a nossa era uma luta comum, independentemente dos Movimentos a que pertencíamos. Nesse “confinamento” convivi com angolanos da UPA/FNLA, da UNITA, do MPLA. E até com presos de antes do MPLA se ter formalmente constituído em 1960. Comungámos na Dor, mas, também, na Esperança…

No Tarrafal foi possível conceber um conjunto de mecanismos para nos articularmos com os restantes presos, entre nós angolanos, mas, igualmente, com os presos cabo-verdianos. Estabelecemos pontos de colocação de bilhetes que trocávamos entre nós. Utilizámos uma espécie de morse para trocar mensagens.

O Juca Valentim criou um sistema sofisticado de troca de mensagens, utilizando as cartas enviadas e as recebidas. Pelo sistema do Juca conseguimos manter contacto com os restantes presos do nosso Processo que estavam nas cadeias de Portugal. Isabel Valentim, irmão do Juca, foi o elo de ligação com Angola. Vitória Almeida e Sousa, mulher de Joaquim Pinto de Andrade, o elo de Portugal.

As mensagens passavam de modo codificado ou no interior de cigarros e tubos de pasta de dentes, envolvidas em fina folha de prata.

Enfim, todos os meus “confinamentos” têm a sua história. Mas o último, o “confinamento”, pós-independência, ficou severamente manchado com o enorme tapete de sangue vertido pela repressão que se seguiu ao “27 de Maio”.

Justino Pinto de Andrade
19/05/2020