Fascismo

Os liberais adoraram Mussolini e a sua austeridade

29 de abril 2024 - 11:15

Apenas uma mão cheia de neofascistas celebraram este domingo Mussolini no aniversário da sua morte. Mas quando foi eleito primeiro-ministro, choveram elogios liberais por causa do seu plano de austeridade e da repressão do movimento dos trabalhadores.

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Clara E. Mattei | Jacobina

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Recortes de jornal celebram Mussolini
Recortes de jornal britânicos celebram Mussolini. Foto de Alisdare Hickson/Flickr.

Quando falamos de conceitos como “totalitarismo” e “corporativismo”, muitas vezes assume-se que o fascismo está muito longe da sociedade liberal que a precedeu e em que ainda hoje vivemos. Mas, se prestarmos mais atenção às políticas económicas do fascismo italiano, especialmente durante a década de 1920, podemos ver como algumas combinações típicas tanto do século passado quanto do nosso foram experimentadas já nos primeiros anos do domínio de Benito Mussolini. Um caso em questão é a associação entre a austeridade e a tecnocracia. Por “tecnocracia”, refiro-me ao fenómeno pelo qual certas políticas que são comuns hoje (tais como cortes nos gastos sociais, impostos regressivos, deflação monetária, privatizações e reduções salariais) são decididas por especialistas económicos que aconselham os governos ou mesmo assumem diretamente as próprias rédeas, como em vários casos recentes na Itália.

Como explico em A Ordem do Capital: Como os economistas inventaram a austeridade e abriram o caminho para o fascismo, Mussolini foi um dos maiores campeões da austeridade na sua forma moderna. Isto deu-se em grande parte porque ele se rodeou dos economistas de referência da época, assim como dos campeões do paradigma emergente da “economia pura” – ainda hoje a base da economia neoclássica dominante.

Pouco mais de um mês após a marcha fascista italiana em Roma, em outubro de 1922, os votos parlamentares do Partido Nacional Fascista, do Partido Liberal e do Partido Popular (os popolari, um partido católico e antecessor da Democracia Cristã) introduziram o chamado “período de plenos poderes”. Ao fazer isso, concederam uma autoridade sem precedentes ao Ministro da Economia de Mussolini, o economista Alberto de Stefani, e aos seus colegas e assessores técnicos, em particular Maffeo Pantaleoni e Umberto Ricci.

Mussolini ofereceu a esses economistas uma grande oportunidade: moldar a sociedade sobre o conceito ideal dos seus modelos. Das páginas da revista The Economist, Luigi Einaudi – celebrado como campeão do antifascismo liberal e, em 1948, o primeiro presidente da república democrática do pós-guerra da Itália – acolheu com entusiasmo a viragem autoritária. “Nunca um poder tão absoluto foi confiado por um Parlamento ao Executivo… A renúncia do Parlamento a todos os seus poderes por um período tão longo foi recebida com alegria pela opinião pública. Os italianos estavam cansados de discursos e de fracos dirigentes”, escreveu em 2 de dezembro de 1922. No dia 28 de outubro, na véspera da marcha de Roma, ele tinha declarado: “A Itália precisa de um homem capaz de dizer não a todos os pedidos de novas verbas”.

As esperanças do Einaudi e dos seus colegas foram cumpridas. O regime de Mussolini implantou reformas ousadas promovendo a austeridade fiscal, monetária e industrial. Estas mudanças funcionaram em uníssono para impor duras dificuldades e sacrifícios à classe trabalhadora e garantir a retomada da ordem capitalista. Esta ordem tinha sido amplamente contestada no biennio rosso (dois anos vermelhos) através numerosas revoltas populares e experiências sofisticadas de organização económica pós-capitalista.

Entre as reformas que conseguiram calar qualquer tentativa de mudança social, podemos mencionar a redução drástica dos gastos com a Segurança Social, os despedimentos de funcionários públicos (mais de 65 mil só em 1923), e o aumento dos impostos sobre o consumo (na época, regressivo porque era pago principalmente pelos pobres). Estes somaram-se à eliminação do imposto sobre as heranças que foi acompanhado por um aumento das taxas de juros (de 3 para 7% a partir de 1925), com uma onda de privatizações que intelectuais como o economista Germà Bel denominaram “a primeira privatização em grande escala numa economia capitalista”.

Além disso, o Estado fascista implementou leis laborais coercivas, que reduziram drasticamente os salários e proibiram os sindicatos. A derrota final das aspirações dos trabalhadores veio com a Carta do Trabalho de 1927, que fechou qualquer caminho para a luta de classes. A Carta codificava o espírito do corporativismo, cujo objetivo, nas palavras de Mussolini, era proteger a propriedade privada e “reunir dentro do Estado soberano o dualismo das forças do capital e do trabalho”, que eram vistas como “não mais necessariamente opostas, mas como elementos que deveriam e poderiam aspirar a um objetivo comum, o maior interesse da produção”.

O Ministro da Economia De Stefani elogiou a Carta como uma “revolução institucional”, enquanto o economista liberal Einaudi justificou a sua definição “corporativista” de salários como a única maneira de mimetizar os resultados ótimos do mercado competitivo no modelo neoclássico. A hipocrisia aqui é dura: os economistas, tão inflexíveis na proteção do mercado livre contra o Estado, tiveram poucos problemas com a intervenção repressiva do Estado no mercado de trabalho. Na Itália, houve uma queda ininterrupta nos salários reais que durou todo o período entre guerras, uma tendência única entre os países industrializados.

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Enquanto isso, a crescente taxa de exploração garantiu um aumento nas taxas de lucro. Em 1924, o jornal London Times comentou o sucesso da austeridade fascista: “o desenvolvimento dos últimos dois anos tem visto a absorção de uma maior proporção dos lucros pelo capital, e isto, ao estimular o empreendimento empresarial, certamente tem sido vantajoso para o país como um todo”. Esta é a narrativa típica capaz de promover e ganhar aceitação nas doutrinas de austeridade atuais: o consentimento das pessoas comuns aos sacrifícios é construído sobre uma retórica do bem comum.

Em suma, num momento em que a maioria dos cidadãos italianos exigia grandes mudanças sociais, a austeridade precisava do fascismo – um governo forte, de cima para baixo, que pudesse impor as uma vontade nacionalista coercitivamente e com impunidade política – para o seu sucesso imediato. E o fascismo, em troca, exigia austeridade para solidificar seu governo. Foi o atrativo da austeridade que levou as instituições liberais internacionais e nacionais a apoiar o governo de Mussolini mesmo depois da Leggi Fascistissime [literalmente: “a leis mais fascistas”] de 1925-6 que instalou Mussolini como o ditador oficial da nação.

O jornal The Economist, por exemplo, em 4 de novembro de 1922, simpatizava com o objetivo de Mussolini de impor uma “redução drástica das despesas públicas” em nome da “necessidade gritante de obter financiamento sadio na Europa”, e comemorava em março de 1924: “O Signor Mussolini restabeleceu a ordem e eliminou os principais fatores de perturbação”. Em particular, quando os salários atingiram os seus limites, as greves multiplicaram-se. Estes foram os fatores de “perturbação”, e de acordo com eles “nenhum governo foi forte o suficiente para tentar uma solução”. Em junho de 1924, o jornal Times, que considerava o fascismo um governo “contrário ao desperdício”, elogiou-o como uma solução para as ambições dos “camponeses bolcheviques” em “Novara, Montara e Alessandria” e “a estupidez brutal destas pessoas”, seduzidas por “experiências da chamada gestão coletiva”.

A embaixada britânica e a imprensa liberal internacional continuaram a alegrar-se com os triunfos de Mussolini. O Duce tinha conseguido unir a ordem política e económica – a própria essência da austeridade. Como mostram os arquivos históricos, no final de 1923, o embaixador britânico em Itália garantiu aos observadores nos seu país que “o capital estrangeiro tinha superado a timidez do passado e estava novamente a vir para a Itália com confiança”. O diplomata enfatizou muitas vezes o contraste entre a incapacidade da democracia parlamentar italiana após a Primeira Guerra Mundial – considerada instável e corrupta – e a gestão económica “eficiente” do Ministro De Stefani:

Há dezoito meses, qualquer observador instruído da vida nacional estava obrigado a concluir que a Itália era um país em decadência… Agora é geralmente admitido que a situação mudou, mesmo para aqueles que não gostam do fascismo e condenam os seus métodos. Um progresso notável em direção à estabilização das finanças do Estado… as greves [diminuíram] em 90% e os dias de trabalho perdidos [diminuíram] em mais de 97% e um aumento da poupança nacional de 4.000 [milhões de liras] em relação ao ano anterior; de facto, excedem pela primeira vez o nível pré-guerra em quase 2.000 milhões de liras.

Os celebrados sucessos da austeridade em Itália – avaliados em termos de paz industrial, altos lucros e mais negócios para a Grã-Bretanha – também tiveram uma face repressiva que foi muito além da institucionalização de um Executivo forte e da evasão do Parlamento. A própria embaixada relatou inúmeras ações brutais: o constante ataque aos opositores políticos; a queima de sedes e câmaras de trabalho socialistas; a demissão de inúmeros presidentes de Câmara socialistas; a prisão de comunistas; e muitos assassinatos políticos amplamente conhecidos, dos quais o mais importante foi o assassinato do parlamentar socialista Giacomo Matteotti.

Mas a mensagem era clara: qualquer preocupação com os abusos políticos do fascismo desapareceu face aos sucessos da sua austeridade. Até mesmo o campeão do liberalismo e governador do Banco da Inglaterra Montagu Norman, após expressar desconfiança de um Estado como o fascista sob o qual “qualquer coisa no caminho da divergência” tinha sido “eliminada” e no qual “a oposição em qualquer forma [desapareceu]”, acrescentou: “este momento é adequado e pode proporcionar, uma administração mais bem adaptada para a Itália”. Da mesma forma, Winston Churchill, na época chefe do Tesouro Britânico, afirmou: “Diferentes nações têm maneiras diferentes de fazer a mesma coisa… Se eu fosse italiano, estou certo de que estaria com vocês do começo até o fim na vossa luta vitoriosa contra o leninismo”.

Tanto Norman como Winston Churchill afirmaram tanto em privado quanto publicamente que soluções liberais inconcebíveis nos seu próprio país poderiam ser aplicadas a um povo “diferente” e menos democrático como Itália, com “dois pesos e duas medidas” que os leitores contemporâneos poderiam muito bem reconhecer.

De facto, mesmo quando os observadores liberais levantaram dúvidas, estas não eram de preocupação com a democracia mas sim com o que aconteceria sem Mussolini. Em junho de 1928, Einaudi escreveu no The Economist que temia um vácuo de representação política mas ainda mais um colapso da ordem capitalista. Ele falava dos “questionamentos sérios” na mente dos ingleses:

Quando, novamente, no curso inevitável da natureza, a mão forte do grande Duce for retirada do leme do barco, a Itália terá outro homem do seu calibre? Pode uma era qualquer produzir dois Mussolinis? Se não, o que acontecerá? Sob um controle mais fraco e menos sábio, não teremos um futuro caótico? E com que consequências, não apenas para a Itália, mas para a Europa?

O mundo político internacional ficou tão apaixonado pela austeridade de Mussolini que recompensou o regime com os recursos financeiros necessários para solidificar ainda mais a liderança política e económica do país, em particular, liquidando a dívida de guerra e estabilizando a lira, como nos mostra o clássico de Gian Giacomo Migone Os Estados Unidos e a Itália fascista.

O apoio ideológico e material que o establishment liberal italiano deu ao regime de Mussolini sem dúvida não foi uma exceção. Na verdade, a mistura de autoritarismo, especialização técnica em economia com austeridade inaugurada pelo fascismo “liberal” (economicamente liberal) teve muitas reproduções: a partir do uso dos “Chicago Boys” pela ditadura de Augusto Pinochet no Chile até ao apoio dos “Berkeley Boys” à ditadura de Suharto na Indonésia (1967-1998), como também a experiência dramática – recentemente de volta aos holofotes – da dissolução da URSS.

Como observa Giulia Albanese, ainda falta uma “história global” da Marcha em Roma. Mas certamente vale a pena redescobrir o seu legado em termos da difusão de uma prática autoritária de austeridade – também à luz do antifascismo daqueles liberais que na década de 1920 tinham preferido a ordem económica em vez da democracia e das necessidades de redistribuição de riqueza.


Clara E. Mattei é professora assistente no departamento de economia da New School for Social Research e autora do livro "The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism".

Texto publicado originalmente na Jacobin. Traduzido por Gercyane Oliveira para a Jacobina. Editado pelo Esquerda.net para português de Portugal.