A marcha fascista sobre Roma faz cem anos

28 de outubro 2022 - 18:56

A tomada do poder pelos fascistas inaugurou um período sombrio. Contudo, foi bem recebida na altura por grande parte da direita nos Estados Unidos e na Europa que acreditava que correspondia a uma derrota do comunismo e à pacificação interna de Itália. Por Emilio Gentile.

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Marcha sobre Roma.
Marcha sobre Roma.

Há um século, Benito Mussolini e as suas forças paramilitares aproveitavam a crise política italiana e tomavam o poder. A imagem do fascismo como um baluarte contra o bolchevismo e salvador da Itália da ruína recebeu amplo crédito nos Estados democráticos europeus. Neste extrato do livro A marcha sobre Roma (2015), detalha-se como o mundo ocidental recebeu o triunfo dessa revolução “incruenta” de outubro de 1922, descrita por um bispo como um «piatto di spaghetti».


Uma revolução bela e alegre

“Aqui estamos a assistir a uma bela revolução de jovens”, escrevia ao seu pai o embaixador dos Estados Unidos, Richard Child, a 31 de outubro: “Nenhum perigo. Abunda a cor e o entusiasmo”. E dias mais tarde escrevia ao seu governo: “Nenhuma revolução foi feita de modo tão rápido e obteve tão facilmente êxito”. Enquanto admirador de Mussolini, Child elogiava o novo chefe de governo, tão diferente dos seus antecessores, dado o seu “carácter magnético, o porte orgulhoso e a oratória eficaz”: um homem político novo, que atuava decididamente e com vigor, e sabia infundir na nação “diligência, esperança e uma calma temporária”. Depois de anos de desordens e conflitos, Mussolini interpretava o desejo dos italianos que aspiravam a um período de paz e de tranquilidade doméstica.

O embaixador conhecia pessoalmente Mussolini, o qual nos dias anteriores à “marcha sobre Roma” tinha querido um encontro pessoal para saber qual seria a atitude do governo norte-americano sobre a ascensão do fascismo ao poder. E é provável que tivesse tido uma resposta afirmativa a isto. De facto, tal como referia o embaixador italiano nos Estados Unidos, o sucesso da “marcha sobre Roma” tinha sido recebido em Washington com “complacência pela veloz solução da crise” e com “simpatia por elementos ideais que caracterizam o movimento fascista. Nota-se no triunfo deste o desaparecimento definitivo do perigo bolchevique na Itália e o saudável exemplo para todos os países”. A avaliação do governo republicano era partilhada pela opinião pública conservadora, que considerava o fascismo uma espécie de versão latina da American Legion, a principal associação patriótica dos Estados Unidos com orientação muito conservadora, e aplaudia para além disso a conclusão dessa “revolução incruente” que, acreditava-se, devolveria a lei e a ordem à Itália, sob o comando de um chefe dinâmico e pragmático.

A imprensa conservadora descrevia Mussolini como um herói que tinha deixado fora de combate o “dragão vermelho”, defendendo os direitos da pequena e média burguesia. A avaliação por parte dos liberais e radicais era contrária, vendo no fascismo nada mais do que um movimento de mercenários a soldo da burguesia agrária e industrial para aumentar o seu domínio.

Os governos e a opinião pública ocidental tinham seguido com apreensão os acontecimentos italianos que abriram caminho para a ascensão do fascismo ao poder, preocupando-se desde logo mais com as consequências que teria para a política externa da Itália do que para as que poderiam incidir sobre a sua política interna. De facto, o nacionalismo fascista, com vagas mas ostensivas declarações imperialistas, suscitava inquietude nos Estados limítrofes que mantinham disputas fronteiriças com Itália depois da Grande Guerra, como a Jugoslávia devido à questão de Fiume.

Muito preocupado com a chegada do fascismo ao poder estava também o governo suíço, segundo o que referia o embaixador da Alemanha em Berna a 31 de outubro, porque os suíços temiam “o eclodir do movimento irredentista no cantão de Ticino”, tanto que o procurador confederal, “não propriamente dotado em desmesura de dotes intelectuais" – especificava o embaixador alemão –, até ao último dia antes da ‘vitória’ fascista tinha renovado “a ordem de proscrição da Suíça contra Mussolini por bolchevismo e anarquismo”, instruindo “as autoridades fronteiriças suíças no cantão Ticino que a qualquer custo mantivesse o indivíduo antes mencionado longo do sagrado solo da Confederação”. A reconfirmada proscrição do duce do fascismo, enquanto era ainda incerta a sua ascensão ao poder, provavelmente tinha como objetivo impedir que Mussolini – no caso de fracassar a insurreição por ele chefiada – pudesse buscar refúgio na Suíça para não acabar preso em Itália. Contudo, mal o governo suíço soube que o duce fascista tinha recebido o convite para formar governo, apressou-se a emitir um comunicado a declarar que a proscrição a ele destinada há muito tempo que estava revogada.

Nas outras democracias europeias, as reações face à “marcha sobre Roma” foram diversas e contrastantes, com avaliações que iam desde o entusiasmo à condenação, segundo as orientações políticas dos governos e da opinião pública. De qualquer modo, sem exceção foram surpreendidos pela rapidez e a facilidade da conquista fascista do poder: segundo observavam, esta era uma revolução que se tinha levado a cabo sem derramamento de sangue e sem encontrar resistência por parte dos adversários do fascismo, para finalmente desembocar numa forma pacífica e constitucional. Poucos observadores internacionais negavam que a “marcha sobre Roma” tivesse sido uma revolução, nem sequer uma de um tipo novo e peculiar. Se, como escrevia o embaixador inglês Richard Graham a 4 de novembro, se tomasse em consideração o itinerário do movimento que tinha levado Mussolini ao poder, era “difícil negar que tinha sido revolucionário”, ainda que –especificava Graham– era “mais exato defini-lo como contra-revolucionário”, e durante um momento tinha ameaçado tornar-se antimonárquico, ainda que depois o sentimento monárquico que prevalecia nos seus melhores expoentes se tivesse demonstrado tão forte que superou este momento e levou o próprio movimento a apoiar a monarquia.

Também para o cônsul norte-americano em Veneza a “marcha sobre Roma” tinha sido uma revolução porque “as forças constitucionais do governo italiano tinham sido derrotadas pelas forças fascistas», mas isso não devia causar alarme – acrescentava o cônsul – porque o fascismo era um “movimento muito popular e patriótico”. Um juízo análogo expressava o correspondente do L’Illustration em Roma, descrevendo a entrada dos esquadrões fascistas na capital: “Isto que se concluiu, de modo pacífico e com o consenso geral, é uma autêntica revolução”. Outro observador francês que assistia aos acontecimentos em Itália, o historiador Paul Hazard, comentava que o fascismo tinha levado a cabo uma “revolução sem revolta”.

O que será de Itália?

A imagem do fascismo como um baluarte contra o bolchevismo e salvador de Itália da ruína recebeu amplo crédito nos Estados democráticos europeus. Segundo observava o embaixador norte-americano em Londres a 31 de outubro, “sob este ponto de vista, o triunfo do fascismo em Itália parece ser um golpe mortal contra o bolchevismo, no caso do novo governo conseguir durar. Os fascistas têm falta de experiência e de juízo; mas o seu ímpeto é são e a responsabilidade do governo pode temperar o seu ardente fanatismo”.

Também a opinião pública inglesa tinha recebido com alívio o resultado pacífico da “marcha sobre Roma”. A primeira impressão geral – escrevia o embaixador italiano – tinha sido “de surpresa, também devido à especial mutabilidade. Mas prontamente se impôs uma avaliação mais serena e otimista dos acontecimentos”.

Os conservadores tinham uma avaliação positiva acerca do governo de Mussolini, ao qual atribuíam o mérito de ter posto fim a uma série de governo inaptos e a um período de decadência e de corrupção, e de ter assumido a tarefa de restaurar a ordem e a legalidade. Ainda assim os jornais trabalhistas expressaram juízos vagamente positivos acerca da “revolução incruenta” do fascismo, que tinha assegurado à Itália um governo forte, prometendo o saneamento financeiro e a recuperação económica.

Atitudes análogas podiam ser encontradas em França, tal como referia o embaixador italiano: a imprensa conservadora era entusiasta, enquanto que a democrata tentava não exibir “uma hostilidade demasiado forte”. A partir de Paris, Gaetano Salvemini escrevia a 11 de novembro: “Todos estão aux anges [em glória] porque acreditam que o fascismo abateu o bolchevismo, quando precisamente o bolchevismo começou a ser perigoso na Itália”. Na Suécia, o governo social-democrata não tinha simpatia alguma pelo novo governo fascista, enquanto que os militares e os conservadores olhavam para ele de modo favorável. Algo semelhante acontecia na Alemanha: os governantes da República de Weimar estavam preocupados pelos reflexos que os acontecimentos podiam ter na política interna alemã. Os seus compatriotas católicos e social-democratas, unidos na coligação governamental, desconfiavam do fascismo como movimento revolucionário de direita. O chefe do governo bávaro temia que o exemplo fascista pudesse ter seguidores nos nacional-socialistas de Adolf Hitler. Pelo contrário, os partidos da direita alemã aplaudiram a vitória fascista. O próprio Hitler tinha seguido com muita atenção os acontecimentos italianos; para conhecer melhor o fascismo, antes da “marcha sobre Roma” tinha tentado estabelecer algum contacto com Mussolini, enviando para Itália um emissário próprio, Karl Lüdke, que se encontrou com Mussolini em Milão mas constatou “que nunca tinha ouvido falar de Hitler”. Nessa altura, os fascistas negavam ter alguma afinidade com o nacional-socialismo.

“A imprensa estrangeira acolhe Mussolini com expetativas benevolentes”, escrevia Anna Kuliscioff a Turati a 13 de novembro. E o principal motivo dessa atitude de expetativa benevolente pode resumir-se no comentário da revista francesa L’Illustration: “Na Itália o fascismo concretizou as suas ambições. Agora só faltar tornar o seu programa realidade. Até há poucos dias, era a oposição disposta para a luta. De agora em diante, é o governo no poder. O seu chefe, Benito Mussolini, mudou a camisa negra pela sobrecasaca e cartola próprias de um “primeiro-ministro”. E esta metamorfose de traje tem um significado simbólico. A revolução, se assim pode ser chamada, foi pacífica porque respondia à necessidade íntima do país, cansado da agitação comunista e dececionado com os politiqueiros. A revolução encontrou o seu apoio mais sólido no próprio rei, que confiou em Mussolini para empreender a regeneração da nação”.

Contudo, ainda que no geral nas democracias ocidentais tenha sido partilhada a avaliação positiva com o resultado constitucional da “marcha sobre Roma”, as previsões acerca das consequências que o fascismo no poder teria eventualmente para Itália, e não só para Itália, eram cautelosas. Despertava muita perplexidade, sobretudo, o caráter do Partido Fascista [oficialmente Partido Nacional Fascista] e o modo violento utilizado para chegar ao poder, que levavam a formular hipóteses contraditórias, que oscilavam entre o otimismo e o pessimismo, como as que o embaixador inglês junto da Santa Sé compilava nos círculos do Vaticano a 31 de outubro. O monsenhor Borgognini Duca declarava-se otimista, observando que, ainda que a revolução fascista tenha efetivamente usurpado a autoridade do Estado, o Partido Fascista era um partido da ordem e provavelmente governaria bem, com ministros escolhidos sensatamente, enquanto que “tinha desaparecido o regime semi-socialista sobre o qual o país tenha pensado em épocas anteriores”. Desde logo, segundo esclarecia o monsenhor, tinha havido uma revolução, mas tinha sido uma revolução “tipicamente italiana, un piatto di spaghetti”, e o modo segundo o qual a mudança tinha sido alcançada não deveria suscitar demasiada apreensão apenas por ter sido completamente inconstitucional. Portanto, para o monsenhor não se vislumbravam prejuízos mas, claro, tudo dependeria da capacidade do novo governo de preservar a disciplina, mantendo os extremistas sob controlo.

As avaliações que o diplomata britânico encontrava noutros círculos do Vaticano eram tudo menos otimistas. Neles, a “via livre” dada pelo rei aos fascistas era considerada uma “rendição completa” da autoridade porque “ao entrar em negociações com a revolução, o rei tinha praticamente aberto o caminho para a sua abdicação, colocando-se nas mãos dos republicanos”. Como sublinhavam os pessimistas do Vaticano, o Partido Fascista era tudo menos homogéneo; e enquanto muitos fascistas permaneciam fiéis à monarquia estavam comprometidos a voltar a erguer o país “eram poucos os que representavam um risco para ambos”. Em definitivo – concluía o diplomata britânico –, a situação criada pela “marcha sobre Roma” continuava a parecer “tão obscura e cheia de possibilidades” que não surpreendia “a ampla divergência de visões segundo o grau de confiança que se atribuía aos chefes fascistas para preservar a ordem e a disciplina”.

Imaturos para a democracia

As maiores perplexidades acerca da chegada de Mussolini ao governo eram suscitadas pela ideologia antidemocrática, os métodos violentos, a organização militar do Partido Fascista: todos estes aspetos eram resolutamente reprovados pela opinião pública liberal e democrática ocidental, ainda que esta não fosse hostil ao novo governo. Até os observadores estrangeiros mais entusiastas com o resultado incruento da revolução fascista, como o embaixador norte-americano, reconheciam que a “marcha sobre Roma” tinha golpeado gravemente o Estado constitucional. Segundo observava Child, para além de “qualquer argumentação técnica para dar uma aparência de constitucionalidade” à ascensão do fascismo ao poder, era inegável que a essência do que tinha sucedido consistia “em que com a rendição das suas prerrogativas constitucionais, o rei, o governo e o Parlamento tinham capitulado face à força. Para restabelecer o prestígio da lei, o fascismo humilhou a lei e a ordem e, para chegar a ser o Estado italiano, usou impunemente a força”; deste modo, “a política anticonstitucional fascista teve um triunfo completo”. De qualquer maneira, o embaixador confiava na capacidade de Mussolini para controlar os extremistas do partido, apoiando os fascistas moderados favoráveis à restauração da ordem constitucional.

Menos otimista estava o encarregado de negócios da embaixada norte-americana em Roma, Franklin Gunther. Este considerava que o “golpe de Estado” levado a cabo por Mussolini podia tornar-se um mau precedente, incitando à organização de outros golpes de Estado em sentido contrário ao fascismo, que novamente iriam precipitar a Itália no caos. Não eram diferentes as preocupações acerca do futuro de Itália que eram expressadas na opinião pública inglesa, quase unânime em deplorar a violência e os métodos anti-constitucionais usados pelo Partido Fascista para chegar ao poder. Estes métodos hipotecavam fortemente a capacidade do fascismo para reconduzir a Itália a uma situação de ordem e legalidade, conduzindo-a à restauração financeira e à reconstrução económica, respeitando simultaneamente o sistema parlamentar e as garantias constitucionais. E, na verdade, havia muitas dúvidas na possibilidade de transformar um partido armado, habituado à violência, num partido da ordem, respeitoso da lei e da liberdade dos partidos adversários.

Grande parte das dúvidas acerca do futuro da Itália depois da chegada do fascismo ao poder eram atenuadas pela admiração face à personalidade de Mussolini e pela constatação de que, uma vez convocado a liderar o governo, tinha demonstrado ter intenções e comportamentos comedidos e pacíficos, na política interna quanto na externa. Para além do mais, em todas as observações dos estrangeiros acerca do carácter peculiar da revolução fascista circulava um motivo comum, relacionado com o carácter dos italianos, ao qual eram atribuídos muitos aspetos da crise do estado liberal e da ascensão do fascismo ao poder, com alusões – tingidas de racismo antropológico – à incapacidade destes darem vida a um verdadeiro sistema parlamentar.

Ainda antes da “marcha sobre Roma”, o embaixador norte-americano tinha antecipado que a ascensão do fascismo ao poder conduziria ao fim da democracia constitucional, porque “um povo como os italianos [...] deseja ansiosamente ser governado de maneira forte”. O verdadeiro alvo visado pela revolução fascista, como observava por seu turno o embaixador britânico, era o parlamentarismo: “O sistema parlamentar, tal como existe na nossa época, não prosperou de forma feliz na Itália. Não é respeitado e quando o senhor Mussolini alude ao Parlamento como um “joguete” do povo, ninguém se mostra comovido”. O motivo deste desprezo, segundo o embaixador britânico, derivava do facto de que o sistema parlamentar “não tinha crescido com o crescimento do povo mas tinha sido imposto a uma população que ainda não estava madura para receber os seus benefícios”. E por este motivo na Itália o sistema parlamentar “degenerou em vez de se desenvolver”. E desta degeneração do Parlamento surgiu a aversão pela democracia, aversão que gerou o fascismo e a sua revolução: “A revolução dos nossos dias é uma revolução contra um sistema que, pelo menos por agora, não conseguiu satisfazer as necessidades do país”.

Apesar de tudo, o embaixador fazia questão de mencionar ao seu governo que já desde o primeiro momento da sua ascensão ao poder, o fascismo tinha tido alguns efeitos positivos nos italianos: depois de assistir ao desfile dos camisas negras na capital, considerava justo reconhecer que “a ordem e disciplina exibidos pelos fascistas tinham sido notáveis se tivermos em consideração que a raça italiana é, por temperamento, indisciplinada”.

Decididamente contrária era a previsão de um correspondente do jornal inglês The Daily Telegraph, que a 30 de outubro, comentando a “marcha sobre Roma”, escrevia com tons muito sombrios e inquietantes: “é demasiado cedo ainda para prever plenamente as consequências deste ato de loucura arriscada. [...] sob o génio perverso de Mussolini o movimento, se conseguir concretizar a sua intenção atual de dominar a situação, é capaz de levar a Itália ao caos completo e à ruína e privá-la de qualquer influência nos conselhos europeus.

Um tipo novo de revolução

Menos catastrófica era a análise que, nesse mesmo dia, o encarregado de negócios da embaixada francesa na cidade, François Charles-Roux, expressava acerca da “marcha sobre Roma”. Descrevendo no seu relatório “esta espécie de revolução, de um tipo peculiar e estritamente italiano” e a “ditadura legalizada” que tinha originado, em vez de se deixar levar por previsões para o futuro, o chargé esforçava-se por compreender o significado daquilo que estava a acontecer ante os seus olhos, nos dias confusos da passagem do estádio insurrecional à formação do novo governo, que não tinha sido “fácil sob nenhum aspeto entre o novo governo e a insurreição de onde tinha surgido, nem entre o chefe do governo e o chefe dos insurgentes”. Assim – segundo o que acrescentava o diplomata –, tinha-se ocorrido um “fenómeno de concomitância, como acontece ao concluírem-se todos os movimentos coroados pelo triunfo e no começo de todos os regimes surgidos desses movimentos”; no caso da “marcha sobre Roma” isto caracterizava-se na mudança do partido fascista “do estádio da guerra ao estádio da paz e desde logo subsistiu como a base do novo regime e como fator instrumental do governo no país”.

Este perspicaz diplomata francês fez uma avaliação realista do significado da “marcha sobre Roma” como ponto de partida do nascimento de um novo regime. A sua foi a análise mais aguda entre as muitas realizadas pelos observadores estrangeiros enquanto ainda se estavam a desenrolar os acontecimentos. Para Charles-Roux, a ascensão do fascismo ao poder era a consumação de uma revolução – “porque tinha sido uma revolução” – anti-comunista, anti-socialista e anti-internacionalista, que tinha apelado a “uma espécie de sentimento religioso da pátria” para preparar e tornar realidade a insurreição, e continuava a usar esse mesmo sentimento para conservar as numerosas simpatias que conseguira suscitar na opinião pública e que o seu sucesso tinha reafirmado: era um patriotismo “que nas massas fascistas assumia um caráter de exaltação intemperante” e que apenas em Mussolini e nos elementos não fascistas que colaboraram como parte de seu governo ele foi temperado por um sentido de responsabilidade.

O ocorrido podia parecer desconcertante para um francês – explicava o diplomata –, porque não se adequava às categorias habituais “nas quais estamos acostumados a classificar factos políticos e sociais”: “o golpe de Estado para nós é consumado pelo poder executivo ou então por parte de um general e, em ambos os casos, através do exército regular. A revolução, segundo os nossos precedentes, faz-se apenas em nome e em apoio das ideias progressistas e não acontece sem derramamento de sangue e vai até ao fundo derrubando um regime. A insurreição, a sublevação é feita pelo operário, pelo camponês em mangas de camisa, o pequeno-burguês em traje civil, às vezes a guarda nacional ou os alunos da École Polytechnique”; mas, segundo observava, no caso da “marcha sobre Roma” estava-se perante uma novidade: “Os fascistas tomaram o poder através de um ‘pronunciamento’ feito por um exército irregular e declararam que atuavam em nome da pátria e do interesse do Estado contra os quais atentavam”. Para Charles-Roux, era um tipo de insurreição que contudo respondia a tradições italianas, que a Italia moderna tinha herdado da Itália desunida dos tempos da Renascença e do Risorgimento, até 1870.

Durante os dias posteriores o diplomata francês continuava a sua análise centrando a sua atenção na índole do novo governo presidido por Mussolini, denominado de formas diversas na imprensa italiana como “grande governo nacional” ou “o governo da Vitória”, e sem vacilações definia-o como “governo ditatorial”, destinado a operar como tal porque – tal como explicava num relatório de 15 de novembro – Mussolini, “chefe e alma do fascismo, se tinha apropriado do poder com um golpe de mão face ao qual a autoridade legal tinha capitulado muito rapidamente”; e, assim, a sua vitória tinha levado a uma “ditadura legalizada”.

Creio que é precisamente dessa forma que se pode definir com exatidão a façanha de que a Itália foi cenário e o seu resultado foi que um partido que se tinha tornado um Estado dentro do Estado e que para as suas necessidades tinha criado uma autêntica milícia irregular, acabou por absorver o Estado. E nem se preocupou com escondê-lo, vangloriando-se de ter instaurado o “Estado fascista”. De facto governou de modo ditatorial; mas como lhe colou rapidamente o selo da legalidade e que teoricamente o andaime constitucional do país permaneceu intacto, a ditadura fascista – ou, melhor, mussoliniana – viu-se legalizada. E com as coisas a avançar no sentido desejado pelo senhor Mussolini legalizar-se-á com a aprovação na Câmara dos Deputados do que ocorreu, com o cheque em branco para as reformas programadas e, uma vez aprovada a nova lei eleitoral, com a eleição de uma Câmara em harmonia com o novo governo.

Em toda a extensão do empreendimento fascista, desde o começo até ao final, o diplomata francês via a marca forte de Mussolini e das suas qualidades, úteis para exercer o poder: “audácia, decisão, vontade, autoridade”. Apesar de tudo, Charles-Roux não se deixava deslumbrar com o triunfo fascista, nem acreditava que isso se devia unicamente à força do partido e às capacidades de Mussolini. Os motivos da vitória do fascismo deviam ser procurados na debilidade das pessoas e das coisas com as quais se viu confrontado. A força do fascismo, o partido, o exército não seriam sequer concebíveis se não se tivesse em conta esse segundo fator [...] houve um golpe de Estado porque esse Estado se tinha tornado uma presa”. E por muito má que fosse a opinião que se tivesse das condições do Estado italiano – “e a minha era péssima”, esclarece o diplomata –, “a fraqueza que mostrou enquanto esteve sob ataque foi muito além do que se pensava sobre ele”.

Segundo revelam as suas lúcidas considerações sobre os motivos do sucesso fascista, o diplomata dispunha-se a formular a sua própria interpretação da revolução fascista: “Foi uma contra-revolução nacional, ao invés de ser nacionalista, porque havia uma revolução comunista latente no biénio 1920-1921, seguida por um período de desarticulação política. Foi uma insurreição contra os titulares do poder porque quem o possuía não o exercia e não o defendia. Foi uma reação contra os velhos partidos políticos porque estavam decrépitos e as suas rivalidades tornavam impotentes as coligações ministeriais dos seus representantes no governo. Nestas coligações não participava o Partido Socialista oficial, desorganizado e dividido. Para além disso, as massas operárias partilhavam a desconfiança que os métodos de governo dos velhos partidos tinha suscitado em todas as camadas da população. Por isso, todos permaneceram impassíveis, e não se opôs nenhuma resistência popular – nem popular, nem proletária, nem burguesa –, não foi feita nenhuma tentativa de oposição contra o assalto e a escalada de Mussolini ao poder”. Ao seu próprio relatório Charles-Roux juntava o do comissário especial em Mentone, datado de 20 de novembro, que concluia deste modo: “a Itália atualmente passa por uma experiência decisiva da qual depende o seu porvir. Certamente está na alvorada de novos tempos. Bons ou maus? Isso é precisamente o que de momento é impossível dizer”.

 

Nota: este texto corresponde ao capítulo 10 do livro, “Uma revolução à italiana” sem as notas bibliográficas.


Emilio Gentile é professor emérito da Universidade La Sapienza de Roma e um dos maiores historiadores e especialistas no fascismo italiano. Em 2003 recebeu o prémio Sigrist Hans da Universidade de Berna por causa dos seus estudos sobre a religião política. É autor, entre outros livros de “Fascismo: historia e interpretación” (2004), La vía italiana al totalitarismo (2005) e El culto de Vittorio (2007).

Texto publicado originalmente no Nueva Sociedad. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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