Tal como o Bloco de Esquerda vinha denunciando desde que em 2018 questionou todos os agrupamentos de centros de saúde e centros hospitalares do SNS sobre o acesso à interrupção voluntária da gravidez (IVG) a pedido da mulher, o relatório da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) divulgado esta quarta-feira veio confirmar que a lei não está a ser cumprida. A ERS recolheu informação junto de estabelecimentos hospitalares de Portugal Continental, centros de saúde, DGS e Ordem dos Médicos acerca da realização de IVG nos hospitais públicos, na sequência de várias reclamações sobre a restrição ao acesso à IVG no SNS.
As repetidas denúncias de mulheres nos últimos anos sobre a forma como eram tratadas no SNS em situações de IVG tinha levado o Bloco de Esquerda a propor uma auditoria a todas as instituições do SNS, mas o Governo respondeu serem "casos pontuais" que seriam resolvidos em poucas semanas. A proposta de auditoria foi votada em plenário, com o PS e o Chega a votarem contra. Afinal, diz a deputada bloquista Joana Mortágua, este relatório "mostra que a auditoria era necessária, que os casos não são pontuais e que o ministro não resolveu o que quer que fosse em semanas".
Face ao que considera ser uma situação "muito preocupante e inadmissível" e "uma degradação da situação que coloca em causa a lei e o acesso a direitos previstos na lei", o Bloco quer ouvir com urgência o ministro Manuel Pizarro e a ERS no Parlamento para darem explicações sobre os contínuos obstáculos colocados no SNS para o acesso à IVG e que representam "um retrocesso em relação à lei transformadora que foi a da despenalização da IVG".
O que diz o relatório da ERS sobre as barreiras à IVG no SNS
A informação recolhida permitiu à ERS concluir que há 15 hospitais públicos que não realizam IVG e que dois destes hospitais não garantem o encaminhamento para unidades que deem uma resposta a tempo. A maioria dos 31 hospitais que realizam IVG situa-se nas regiões do Norte e Lisboa e Vale do Tejo. A ERS detetou sete situações "em que os procedimentos não se encontravam definidos, existindo apenas orientações internas sob as fases do atendimento às utentes". Há ainda três casos de hospitais que recusam realizar IVG a utentes que não residam na área de influência do hospital, dois casos "em que as utentes são obrigadas iniciarem o seu percurso pelos Cuidados de Saúde Primários, e uma em que não é garantida a referenciação das utentes para a unidade hospitalar protocolada para a realização da IVG".
A ERS conclui ainda que "ficou clara a inexistência de um registo completo e atualizado de todos os profissionais de saúde objetores de consciência, tanto nos cuidados hospitalares como nos cuidados primários". E promete que irá atuar junto dos estabelecimentos de saúde "para salvaguarda do acesso à realização da IVG, promovendo-se a implementação dos procedimentos ínsitos à salvaguarda da tempestividade, integração e regularidade da prestação de cuidados de saúde em causa".
No que diz respeito aos Cuidados de Saúde Primários (CSP), dos 55 Agrupamento de Centros de Saúde existentes, nenhum realiza o procedimento da IVG e apenas cinco realizam consultas prévias. Mas também não é fácil saber quantas consultas houve, pois o sistema informático não foi preparado para identificar esta tipologia de consultas. "Além disso, tornou-se evidente o desconhecimento dos prestadores de CSP sobre o que é uma consulta prévia, e os esclarecimentos a serem prestados às utentes durante a sua realização", acrescenta o relatório da ERS, dando conta de que algumas das "consultas prévias" reportadas foram na verdade consultas de Medicina Geral e Familiar sem observância dos requisitos constantes na portaria que regulamentou o acesso à IVG.
Em 2022 foram realizadas 15.616 IVG por opção da mulher nas primeiras dez semanas - 68% no SNS e 32% no privado. Isso significa um aumento de 15% em relação ao ano anterior, que teve o número mais baixo de IVG dos últimos cinco anos.
Entre 2018 e 2022 houve menos 7.041 IVG do que as consultas prévias, sem que seja possível explicar a razão desta diferença em grande parte dos casos. Sabe-se que em 1.366 casos a razão foi que o prazo legal para realizar a IVG estava ultrapassado, em 795 casos houve uma decisão posterior de viabilizar a gravidez e em 609 casos houve um aborto espontâneo.
O tempo de espera entre a marcação e a realização da consulta prévia, que a lei estipula que deve ser inferior a cinco dias, foi em média inferior a esse tempo, embora a região de Saúde do Centro tenha registado um tempo médio superior ao fixado na lei e a do Algarve ficou perto de o ultrapassar.