Houve uma pequena dose de boas notícias no meio de um mundo caótico esta semana. Podemos finalmente parar de fingir que o "síndrome de Havana" é verdade, porque os serviços de inteligência dos EUA acabaram por admitir mais ou menos que não o é.
Após um ano de revisão dos "incidentes de saúde anómalos" sofridos por espiões e diplomatas em Cuba a partir de 2016, o gabinete do Director da Inteligência Nacional (DNI) revelou esta semana que não, as misteriosas doenças quase de certeza não foram obra de nefastos raios de microondas de alguma potência estrangeira, ao estilo dos supervilões, dirigidos aos norte-americanos que trabalham em embaixadas e outros gabinetes do governo dos EUA em todo o mundo. Embora as agências reconheçam "que o pessoal dos EUA relatou sincera e honestamente as suas experiências, incluindo as que foram dolorosas ou traumáticas", concluíram que a teoria das armas de microondas que prevaleceu no establishment de Washington "não foi confirmada por análises médicas e técnicas subsequentes", e que "identificaram factores médicos, ambientais e sociais que plausivelmente podem explicar" os sintomas.
Por outras palavras, o que os doentes com "síndrome de Havana" experimentaram foi muito real, mas apenas no sentido de que um placebo é também um remédio real. E há uma boa hipótese de que a arma de energia misteriosa que imaginavam como a causa do seu sofrimento fosse realmente apenas o som literal dos grilos.
Para ser mais específico sobre a avaliação da inteligência, cinco das agências envolvidas concluíram que era "muito improvável" que um adversário estrangeiro fosse responsável, com duas delas tendo "confiança moderada a elevada" e três mantendo "confiança moderada" nessa conclusão. Duas agências consideram-na "improvável", embora com "pouca confiança". A investigação propriamente dita, tal como delineada pelo DNI, foi bastante minuciosa, envolvendo centenas de entrevistas com os doentes, análise forense da eletrónica, uma revisão de dezenas de gravações destinadas a captar os fenómenos ofensivos, e centenas de outros inquéritos no local, para citar apenas uma amostra.
Muitos poderão achar tudo isto ridículo. Mas há verdadeiros interesses envolvidos.
A "síndrome de Havana" não era apenas uma paranóia inofensiva de segurança nacional, o que parece ser cada vez mais comum hoje em dia. Desempenhou um papel numa campanha concertada iniciada pela administração Donald Trump para lançar as bases para a mudança de regime em Cuba, cujo derrube do governo há muito que é uma obsessão no seio da direita norte-americana em particular.
Não é uma coincidência que Trump tenha iniciado a sua política de "pressão máxima" sobre Cuba em 2017, apenas dois meses antes de as alegações de "síndrome de Havana" terem começado a aparecer na imprensa norte-americana, que durante anos depois apresentou acriticamente as alegações fantasiosas como factos ("Os diplomatas norte-americanos em Cuba foram feridos por uma "Arma Sónica", lê-se numa manchete da revista Time).
Note-se que o suposto culpado estrangeiro por detrás dos alegados ataques circulava constantemente pela galeria dos vilões de Washington a cada semana, de Cuba, inicialmente, para a Rússia, depois para a China. O mais surpreendente é que o Irão não foi parar, em momento algum, a este rodízio.
No entanto, não se ouve nada sobre o papel da imprensa do establishment na histeria criada em torno deste assunto. Como escrevi há dois anos, quando soubemos pela primeira vez que o Departamento de Estado tinha concluído discretamente que os "ataques" eram muito provavelmente uma combinação de grilos e questões psicológicas, aqui a desinformação veio dos meios de comunicação social mainstream, onde alcançou e mereceu a confiança de muito mais pessoas do que um post no Substack, um vídeo do YouTube, ou um anúncio do Facebook - tudo com o objetivo de alimentar um conflito com um governo estrangeiro.
A imprensa aprenderá alguma coisa com este episódio? Porque este é apenas um exemplo dos meios de comunicação social que conferem autoridade a alegações não substanciadas e, em última análise, contestadas por aqueles que estão no poder e que se destinam a intensificar as hostilidades com outro país, mesmo potencialmente lançando as bases para a guerra.
O fiasco do "Russiagate" - que alegava que Trump estava literalmente a ser chantageado ou controlado de outra forma por Vladimir Putin, resultando numa sobrecorreção agressiva por parte do antigo presidente - foi o mais importante e ignominioso de todos, mas tem havido muitas outras afirmações igualmente absurdas:
- que o Kremlin estava a pagar aos Talibãs recompensas para matar soldados americanos
- que o Irão planeava matar o embaixador dos EUA na África do Sul
- que o Irão tinha recentemente condenado à morte quinze mil manifestantes
- que a Rússia planeava utilizar armas químicas na Ucrânia
- que a Rússia fez explodir os gasodutos Nord Stream
- que a Rússia tinha disparado um míssil contra a Polónia, matando duas pessoas
- que a China tinha pilotado deliberadamente um balão espião sobre os Estados Unidos continental, e que mais três objetos transportados pelo ar abatidos por caças americanos eram também balões espiões chineses (uma semana depois, responsáveis estadunidenses admitiram que o primeiro voo foi provavelmente acidental, e que os objetos posteriores não eram balões espiões ou de origem chinesa)
Esta lista não é minimamente exaustiva.
A utilização dos serviços secretos dos EUA desta forma tem gozado de uma reabilitação desde que as previsões das autoridades americanas e britânicas durante meses sobre a invasão russa acabaram por se concretizar em finais de fevereiro de 2022. Talvez pudéssemos realmente acreditar na palavra dos responsáveis quando eles asseguraram ao público que havia algo a acontecer, mesmo que eles nunca tivessem apresentado as provas para que a população se convencesse por si própria.
Mas este raciocínio estava a esquecer vários pontos-chave. Primeiro, que "antigos altos funcionários dos serviços secretos dos EUA" tinham dito mais tarde ao jornalista James Risen que a opinião pública tinha uma imagem incompleta dessa mesma inteligência, e que a CIA tinha concluído que Putin não tinha decidido invadir ao mesmo tempo que os funcionários diziam que a guerra estava iminente; que a decisão só veio em fevereiro, indicando que a rejeição das negociações por parte da administração Biden tinha sido um fator decisivo nessa decisão; e que os responsáveis dos EUA tinham admitido alguns meses mais tarde que estavam a alimentar regularmente a imprensa com "inteligência de baixa confiança" e simplesmente com "coisas que são possíveis ao invés de prováveis".
Vale a pena ter isto em mente, pois a administração Biden prepara-se para sancionar a China por aquilo que afirma ser informação de que o governo chinês planeia entregar armas à Rússia. Talvez estas informações sejam reais e sólidas; talvez, à semelhança de todos estes outros exemplos, não o sejam. Mas dado que as sanções contra a China, tal como as sanções contra a Rússia, dariam um sério golpe económico aos trabalhadores não só nos Estados Unidos mas em todo o mundo (as tarifas de Trump sobre a China custaram só por si um quarto de milhão de empregos nos EUA), para não mencionar o modo como aumenta desnecessariamente as tensões com outro país e nos aproxima mais da guerra, a imprensa tem o dever de tratar estas e futuras afirmações com o mesmo ceticismo e cautela que se aplicam com toda a razão a governos como o da Rússia ou da China. O que está em jogo é demasiado elevado para não o fazerem.
Branko Marcetic faz parte da redação da Jacobin. Artigo publicado na Jacobin, traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.