Antes de mais, é de saudar o Esquerda.net por ter recordado o 102º aniversário do jornal A Batalha e os nomes de sete das oito pessoas que formaram a respetiva comissão fundadora (faltou dizer um: Joaquim Cardoso, que também foi o primeiro editor).
Porém, logo na primeira frase, surgiu o erro de rotular como “anarco-sindicalista” o homem que propôs a criação desse jornal, Raul Neves Dias. Quando, na verdade, ele era, e continuaria a ser, um assumido militante do velho Partido Socialista Português (fundado em 1875, de cariz operário e marxista).
Trata-se de um erro comum na interpretação do movimento sindical do tempo da 1ª República: uma certa tendência, mesmo no meio académico, para prodigalizar o rótulo de anarco-sindicalista.
É reflexo de um particular fenómeno de perda de memória coletiva da classe trabalhadora, resultante da circunstância histórica de Portugal ter sido submetido à mais longa ditadura fascista do século XX. Depois da dissolução forçada dos antigos sindicatos livres (em 1934), e além dos arquivos que foram destruídos e se perderam, foram 40 anos de repressão e censura.
É muito tempo à escala da vida humana. Na sua maior parte, os antigos dirigentes foram envelhecendo e morrendo sem poderem divulgar o seu testemunho, a sua experiência. Foi uma “longa amnésia corporativista”, como lhe chamou o historiador Carlos da Fonseca.1
Noutros países em que vigoraram regimes de tipo fascista, tais regimes provocaram uma rutura na história do movimento operário, alvo primordial da sua ação repressiva. Mas na Alemanha isso durou apenas uma dúzia de anos. Em Itália um pouco mais. Já em Espanha foram quase 40 anos, mas com uma certa continuidade no exílio de várias estruturas e lideranças.
Subsiste aqui uma lacuna que a historiografia está longe de colmatar.
Operário gráfico
Raul Neves Dias nasceu em Lisboa, a 3 de Outubro de 1891.
Tornou-se operário gráfico. E destacou-se ainda jovem, já no tempo da 1ª República, exercendo (entre 1915 e 1919) a função de secretário-geral da federação sindical do setor, a chamada “Federação do Livro e do Jornal”.
Os gráficos estavam longe de ser o setor mais numeroso da classe trabalhadora em Portugal, bem longe do operariado rural, têxtil e da construção civil, bem longe dos trabalhadores e trabalhadoras domésticas e do comércio. Mas eram, porém, um dos setores com menos analfabetismo e uma maior dimensão de qualificação profissional; um dos melhores organizados e dos mais propensos a produzir uma imprensa de classe.
Alguns deles tornaram-se aliás prestigiados jornalistas profissionais, como por exemplo Norberto de Araújo e Artur Inês (que foi chefe de redação do diário República).
Vários deles tiveram um papel singularmente importante na imprensa operária e sindical, como José Fernandes Alves, que foi responsável pelas redações de A Voz do Operário (entre 1903 e 1931) e do diário A Greve (em 1908); como Carlos José de Sousa, que dirigiu o semanário A Greve (em 1917/19) e o diário Avante (em 1919); ou como Alexandre Vieira, que foi o primeiro diretor (efetivo) do diário A Batalha (em 1919/21).
Pois Raul Neves Dias também deu um importante contributo no campo da imprensa.
Começou por dirigir os jornais sindicais A Tipografia e O Gráfico. No campo cultural, fundou e dirigiu a revista O Mundo Teatral.
Militante socialista desde 1916, ele foi um dos oito membros da comissão fundadora do diário sindicalista A Batalha. É esse o testemunho de Alexandre Vieira, que apontou mesmo Raul Neves Dias como um “valiosíssimo militante” e como “o homem com mais capacidade de organizador que passou pelas fileiras sindicais gráficas”.2
Moçambique
Alguns meses depois da fundação de A Batalha, Raul Neves Dias emigrou para Moçambique. Foi trabalhar para as oficinas da Imprensa Nacional de Moçambique. Tornou-se mesmo o administrador dessa instituição e até terá recebido uma condecoração com o grau de comendador da Ordem de Mérito Industrial, pela sua dedicação e competência profissional.
Na cidade de Lourenço Marques, hoje Maputo, Raul Neves Dias dirigiu o jornal operário e antifascista O Emancipador e chefiou depois a redação de um diário generalista, o Notícias – que ainda hoje é um dos principais jornais moçambicanos.3
Publicou o livro A Imprensa Periódica em Moçambique, 1854-1954: subsídios para a sua história.
Já só regressou a Portugal de visita.
Faleceu em Moçambique, em 1966.
Diversidade
Para a interpretação da história do movimento sindical português no período da 1ª República, Raul Neves Dias é bem um exemplo de que nem tudo nem todos eram anarco-sindicalistas. Há que abrir os olhos para outras importantes correntes: socialista, republicana, de carácter mais indefinido e menos politizado – além da comunista que se desenvolve a partir de 1919 (com a Federação Maximalista Portuguesa, inicialmente designada “Soviet de Propaganda Social” e embrião do PCP).
Aquando da fundação do jornal A Batalha, em fevereiro de 1919, pelo menos duas importantes federações sindicais eram lideradas por socialistas: a dos operários gráficos, com Raul Neves Dias, e a dos empregados do comércio, com Amílcar Costa. E se olharmos para cada sindicato, individualmente, outras lideranças e hegemonias serão visíveis.
A composição e a evolução ideológica do movimento sindical teve a sua complexidade.
Anarquismo
Compreender e sublinhar esta diversidade, não significa de forma alguma desvalorizar o papel fundamental que o anarquismo desempenhou no movimento sindical português da época.
Pelo contrário. Significa que a hegemonia que o anarquismo então exerceu, em organizações como a central sindical CGT e o jornal A Batalha, não se afirmou num vazio. Teve a capacidade de o fazer em interação e debate com outras correntes que também tinham influência significativa e quadros capazes a defendê-las.
Significa ainda que, pelo menos até à rutura de 1925 entre anarquistas e comunistas (que de resto não foi uma rutura total), a corrente anarquista teve uma importante capacidade agregadora do movimento sindical. Os exemplos abundam. Falando de A Batalha, o primeiro editor foi o comunista Joaquim Cardoso; o autor do hino foi o socialista João Black; e entre os seus colaboradores estiveram o democrata republicano Julião Quintinha e o democrata monárquico Francisco Rocha Martins.
O movimento sindical tem essa tendência natural de reunir pessoas diferentes mas com problemas e interesses comuns – de classe.
Luís Carvalho é investigador do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto.
Notas:
1Carlos da Fonseca (1990), O 1º de Maio em Portugal, Lisboa: Edições Antígona, pág. 51
2Alexandre Vieira (1974), Para a história do sindicalismo em Portugal, Lisboa: Seara Nova, pág. 141; ibidem (1977), Subsídios para a história do movimento sindicalista em Portugal (de 1908 a 1919), Lisboa: Edições Base, pág. 68; ibidem (1959), Figuras gradas do Movimento Social Português, Lisboa: edição do autor, pág. 24