Entrevista

“O antifascismo é uma virtude ética e cívica que deve ser praticada também por quem é de direita”

13 de julho 2025 - 16:59

Antonio Scurati, autor da pentalogia “M”, a biografia romanceada de Mussolini, falou recentemente sobre a sua obra e a atualidade numa conversa com correspondentes estrangeiros em Roma.

por

Barbara Celis

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Antonio Scurati na Associação da Imprensa Estrangeira em Roma.
Antonio Scurati na Associação da Imprensa Estrangeira em Roma. Foto de Barbara Celis

Se Antonio Scurati não existisse, teria de ser inventado. Este escritor italiano de 56 anos fez provavelmente mais com a sua biografia romanceada de Mussolini, em cinco volumes, do que décadas de professores de História nas escolas italianas e europeias ou anos de festas do PCE. O autor de M. O Filho do Século, um livro traduzido em mais de quarenta línguas e aplaudido pela sua capacidade de analisar, descrever e mostrar a proximidade entre o fascismo de há cem anos e as muitas faces do fascismo de hoje, acaba de publicar no seu país natal M. O Fim e o Princípio (que chega a Espanha em setembro), o quinto e último livro de uma saga que inclui também M. O Homem da Providência, M. Os Últimos Dias da Europa e M. A Hora do Destino [todos editados em Portugal pela ASA]. Cada um dos livros aborda os diferentes momentos da ascensão ao poder e da queda de Benito Mussolini, com um relato romanceado baseado em documentos históricos reais. E como nos melhores livros de intriga e aventura, o leitor acompanha o ditador nesta intensa viagem como se de ficção se tratasse, mas sabendo que está a percorrer a história real da Itália que escolheu abraçar o fascismo entre os anos 1920 e 1945.

Mussolini inaugurou uma corrente política extremamente perigosa que ajudou a conduzir a Europa para a Segunda Guerra Mundial e cujos alunos posteriores - Donald Trump, Javier Milei ou Santiago Abascal - ameaçam a essência das democracias do planeta com palavras e ações das quais o italiano foi pioneiro. A saga M foi também transformada numa série televisiva de sucesso, dirigida por Joe Wright, que Scurati descreve como “fabulosa” e que aproximou a história do fascismo dos jovens. “Temos de adaptar as narrativas aos tempos modernos”, sublinha.

Apesar da recente publicação de M. O Fim e o Princípio, que se debruça sobre os últimos 600 dias de vida do ditador italiano e sobre a dureza da ocupação nazi-fascista de Milão, pouco mencionada nos livros de História, Scurati decidiu não dar entrevistas em Itália. Não se trata de uma decisão aleatória: desde que M. O Homem do Século ganhou o prestigiado prémio literário Strega, em 2019, a imprensa conservadora e de direita do seu país tornou-o alvo de críticas e de violentas campanhas por apresentar Mussolini como o ditador impiedoso e narcisista que foi e não como essa figura descafeinada de que uma parte da Itália ainda continuava a falar como alguém “que também fez coisas boas”, uma visão semelhante à dos que dizem em Espanha que também se deve agradecer a Franco a inauguração de represas e da Segurança Social.

Os seus desentendimentos com a imprensa e com o governo de extrema-direita de Giorgia Meloni, cujo partido Fratelli d'Italia nunca renegou explicitamente Mussolini, esgotaram a paciência deste homem pacato, que também já sofreu ameaças de morte e cuja voz se tornou, nos últimos cinco anos, um farol de referência internacional quando se fala dos perigos do fascismo do século XXI. Chegou mesmo a ser censurado pela RAI, a estação pública de televisão italiana, num episódio polémico em 2024, após o qual a sua figura começou também a desaparecer dos eventos literários porque, como explica, "agora sou visto como alguém que acentua a divisão social simplesmente por defender o que sempre defendi: os valores da democracia e do antifascismo italiano. Antes, falar disso em fóruns públicos era normal, ser antifascista era uma coisa positiva, e agora - depois da chegada de Meloni ao governo em 2022 e da polarização política que se seguiu - já não é. Agora, defender os valores democráticos é considerado ‘polarizador’".

Scurati explicou-o recentemente num fórum que considera amigo, o dos jornalistas estrangeiros que escrevem a partir de Itália. Paradoxalmente, a atual sede da Associação da Imprensa Estrangeira, em Roma, situa-se no Palazzo Grazioli, antiga residência de Silvio Berlusconi - outro expoente do populismo - e localizado precisamente em frente ao Palazzo Venezia, de onde Mussolini se dirigia aos italianos. “Não sabia que estávamos mesmo em frente, que ironia, não é?”, comentou o milanês durante um encontro em que não só deu uma lição de história exemplar, como também alertou inequivocamente para os perigos que assolam atualmente as democracias de todo o mundo. Este é um resumo da sua conversa com uma dezena de meios de comunicação social internacionais.

Há anos que se dedica a Mussolini. Agora que está a encerrar a sua pentalogia sobre a personagem, sente algum tipo de vazio?

Os meus detratores, os meus inimigos, ou melhor, aqueles que me consideram um inimigo da extrema-direita dizem que sou obcecado por Mussolini, mas não é assim. Nunca tive uma paixão ou uma obsessão por ele. Fui educado com o mito da resistência italiana e sempre sonhei em escrever um livro sobre os antifascistas e os partigianos, mas decidi centrar-me em Mussolini porque penso que era uma história necessária e uma exploração literária nova, mas não, não tenho um busto dele no meu escritório. [risos]

Pode comentar o seguinte excerto da introdução do seu último livro: "Hoje, muito mais do que quando comecei a escrever este relato, um número consistente e crescente de italianos, europeus e americanos tende a ignorar, a negar e até a desejar esta história terrível. Estão a preparar-se para a repetir de diferentes formas. É por isso que hoje, mais do que nunca, é necessário continuar a contá-la, assumir as nossas responsabilidades para com o passado, o presente e, sobretudo, o futuro".

Ler o presente com uma perspetiva histórica ajuda-nos a compreendê-lo. No entanto, muitas vezes somos vítimas daquilo a que chamo cronicismo, ou seja, a doença que nos leva a concentrar o nosso olhar na crónica dos acontecimentos da atualidade sem contexto. A capacidade de antecipação destes livros reside em olhar para trás com uma perspetiva histórica. Quando comecei a escrevê-los, lembro-me até que amigos escritores me olhavam com ceticismo, achavam estranho que eu me interessasse por Mussolini e, no entanto, à medida que os livros foram sendo publicados, pareciam contar uma história de absoluta atualidade, porque a figura de Mussolini e o legado do fascismo do século XX pareciam fagocitar o presente. Quando vi Steve Bannon fazer a saudação fascista na Assembleia MAGA nos Estados Unidos, ele, que não tem qualquer ligação familiar ou histórica a um passado fascista mas escolhe livremente essa saudação, está a falar eloquentemente do futuro, não do passado. Penso que a equação é hoje clara: aqueles que, na Europa ou nos Estados Unidos, denigrem ou atacam diretamente a democracia manifestam uma ligação aos fascismos do século XX.

Numa entrevista, disse que, ao ler documentos históricos da época, ficou surpreendido com a cegueira da sociedade em relação ao que estava prestes a acontecer.

Penso que as coisas são bastante claras para aqueles que têm um olhar analítico e refletido, mas a maior parte das pessoas está cega para o que vê no dia a dia. E há também uma cegueira em relação ao futuro. Nunca disse que o fascismo do século XXI regressaria sob a mesma forma que no século XX. De facto, a dificuldade está precisamente em descobrir as novas fórmulas, as mutações e as mudanças que o passado assume sob uma nova máscara. Se estão à espera de ver os camisas negras a desfilar de mãos levantadas, estão a olhar na direção errada. É preciso olhar para outras coisas, por exemplo, este sacerdócio impossível entre Donald Trump e Elon Musk, que nunca aconteceu na história. São esses os sinais a que devemos estar atentos.

Considera que as formas atuais de fascismo podem conduzir a um desfecho dramático como o que a Europa viveu nos anos 1940?

A democracia não está ameaçada pelo regresso do fascismo na sua forma histórica. A ameaça já existe, não temos de esperar por ela. Vem dos populismos soberanos que herdaram algumas das caraterísticas do fascismo, mas não todas. Mussolini é o primeiro líder populista da história, é o arquétipo. E é por isso que os meus livros despertaram interesse, mas acredito que a democracia está ameaçada pelos movimentos, líderes e partidos de hoje que operam dentro das regras eleitorais da democracia liberal e que depois as corroem e corrompem a partir do seu interior. Isto já está a acontecer, tanto na Europa como nos Estados Unidos. Meloni, por exemplo, dá uma imagem de moderação no exterior que não corresponde ao que faz no interior. A reforma da justiça, o decreto sicurezza [a lei italiana da mordaça que criminaliza praticamente qualquer forma de protesto social], são expressões legislativas de uma conceção iliberal da democracia.

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Quando falamos de líderes como Milei ou Bolsonaro, devemos também chamar-lhes fascistas?

Penso que é errado chamar-lhes fascistas, ou a Trump. O que têm em comum é o facto de serem líderes populistas [Scurati escreveu um ensaio em que sublinha estas diferenças, intitulado precisamente Fascismo e populismo (Debate)], mas até agora diferiam do fascismo histórico no uso da violência. O fascismo usou a violência de forma sistemática e metódica para atingir os seus objetivos políticos. O populismo soberanista atual ainda não fez nada disso, exceto em casos isolados, como a tomada do Capitólio dos Estados Unidos. No entanto, até agora não considerava um regresso à violência física e homicida que caracterizou a época de Mussolini ou à violência bélica tão típica do fascismo histórico, mas devo dizer que depois de ver tudo o que Trump fez nos seus primeiros meses de mandato começo a ter dúvidas e talvez num futuro próximo possamos também assistir a uma violência bélica e militar. Trump preocupa-me muito, especialmente porque tem muito mais poder do que, por exemplo, os membros da Vox ou da Fratelli d'Italia. [Scurati, sempre profético, proferiu estas palavras apenas algumas semanas antes de Trump ter levado as forças armadas para as ruas para travar os protestos anti-imigração e bombardear o Irão, contornando todas as regras democráticas do seu país que exigem que se peça autorização ao Congresso dos EUA antes de se empreender qualquer ação militar].

Em que outros domínios foi Mussolini um pioneiro?

Mussolini exercia a violência contra os italianos ao mesmo tempo que os seduzia. A sua capacidade de sedução não tem precedentes históricos. Foi o primeiro a trazer para a cena política a figura do líder encarnado no seu corpo físico, a personalização absoluta da política, que se repete em todos os líderes populistas. Não se fala de programas ou de instituições, fala-se simplesmente do líder, e aqui o seu corpo físico é essencial. Não precisa de ser bonito ou viril, também pode ser uma mulher, o que é importante é aquela postura autoritária, aquela voz que grita e afirma encarnar a vontade do povo. De facto, a pessoa física do líder é tão importante que, após a sua morte, o corpo de Mussolini foi massacrado pelas massas e pendurado em público de uma forma completamente obscena.

O populismo combate-se com o antifascismo?

A esquerda comete sempre o erro de olhar para o populismo com uma certa superioridade moral e intelectual, observando sem compreender, olhando para pormenores secundários, “vejam como são vulgares, como são estúpidos”... mas o populismo é um ruído de fundo na história da humanidade em que a política do medo prevalece sobre a política da esperança. É algo que tem raízes muito profundas relacionadas com a nossa vida neste planeta. As pessoas sentem-se desiludidas, traídas, cultivam rancores e os líderes aproveitam-se desses momentos de fraqueza, é uma faceta do ser humano e não pode ser desprezada. Mas eu não sou um líder político e as tácticas eleitorais não fazem parte das minhas preocupações, não proponho o antifascismo como uma tática política para derrubar o populismo. Penso que o antifascismo é uma virtude democrática e cívica que deve ser herdada de geração em geração e praticada por todos os que acreditam na democracia, incluindo as pessoas de direita. Para mim, o antifascismo é uma virtude ética e cívica que nos ajuda a estar no mundo.

E como escritor, estes livros são a sua resposta ao populismo?

Escrevi estes romances porque fui educado nos valores do antifascismo, mas olhei à minha volta e vi que esses valores se estavam a desmoronar e perguntei-me o que poderia fazer para renovar essa tradição que nos ensinou que a democracia e o antifascismo andam de mãos dadas. Considerei uma narrativa, o romance, que, pela sua natureza aberta e inclusiva, convida todos a conhecê-la sem qualquer conhecimento prévio e decidi que, em vez de colocar o mito partigiano no centro, contaria a história do fascismo a partir do interior e essa história talvez me ajudasse a perpetuar a herança antifascista. O facto de terem sido vendidos milhões de livros mostra que muitos leitores procuraram nos meus livros uma compreensão dos acontecimentos históricos, para além da militância. Os livros não são uma forma de militância político-ideológica, são uma forma de militância a favor da civilização literária e da literatura como forma de conhecimento.

Por que razão se recusou a dar entrevistas aos meios de comunicação social italianos?

O debate público italiano tornou-se muito degradado, muito polarizado por extremos que exprimem um rancor sectário e uma agressividade facciosa que torna muito difícil explicarmo-nos. Se não quisermos limitar-nos a gritar e aspirarmos a dar explicações estruturadas, é quase impossível fazermo-nos entender. Além disso, não falo com a imprensa italiana porque não quero assumir a posição simbólica da vítima, as vítimas são outras. Mas tenho sido alvo de campanhas muito violentas, vulgares e perigosas por parte da imprensa pró-governamental desde as últimas eleições [2022]. O jornal Libero publicou uma primeira página com a minha fotografia sob o título Homem de M, que em italiano seria um homem de merda. Nos dias que se seguiram, vieram a minha casa, picharam a minha porta e deixaram sacos de cocó, estive perto de ser colocado sob escolta policial, espiaram-me, recebi críticas diretas da presidente Meloni e do presidente do Senado, para não falar da censura na RAI ou dos muitos artigos com que tentaram mostrar que eu era um homem corrupto, embora não tenham conseguido. Portanto, não é que eu suspeite que estou numa lista negra, tenho a certeza de que estou.


Barbara Celis é correspondente freelancer em Roma, onde escreve para CTXT, El País, La Marea e outros. Escreveu anteriormente a partir de Nova Iorque, Londres, Taipé e Madrid. Foi consultora de comunicação para várias agências da ONU e para o Instituto Cervantes. É realizadora do documentário Surviving Amina. Recebeu quatro prémios de jornalismo. Entrevistou Tom Waits num bar de estrada abandonado e Lou Reed de pijama. Atualmente, interessa-se mais pelas alterações climáticas, mas a cultura continua a ser o seu ponto fraco. Artigo publicado em CTXT

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