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“Não foi só Isabel dos Santos que lavou dinheiro em Portugal”

No debate parlamentar sobre branqueamento de capitais, Mariana Mortágua criticou o atraso do governo em transpor regras europeias e a falta de meios e de vontade política para combater a lavagem de dinheiro.
Mariana Mortágua no Parlamento. Foto de Manuel Resende/Lusa.
Mariana Mortágua no Parlamento. Foto de Manuel Resende/Lusa.

Esta quinta-feira discutiu-se na Assembleia da República uma proposta de lei apresentada pelo governo que transpõe diretivas europeias relativas às medidas de prevenção e combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.

Mariana Mortágua começou por recordar que essas diretivas são de 2018 e “deveriam ter sido transpostas até janeiro de 2020”. Foi “na sequência dos Luanda Leaks que a Comissão Europeia notificou Portugal para corrigir estes atrasos”.

A deputada bloquista criticou este atraso do executivo porque “todo o tempo perdido é importante quando estamos a falar de introdução de medidas de transparência sobre estruturas societárias, criação de instrumentos para combater oportunidades de branqueamento abertas pelas moedas virtuais mas também do alargamento e agravamento do quadro penal relativo aos ilícitos de branqueamento de capitais.”

Nesse sentido, aproveitou a ocasião para anunciar que o seu partido vai, na discussão em especialidade do diploma, propor alterações sobre a transparência pública de alguns dados, uma vez que “há informações que não devem ficar no segredo dos deuses nem no segredo das autoridades como por exemplo as informações sobre beneficiários últimos das estruturas societárias”. Para Mariana Mortágua, não se compreende “que alguém no mercado queira esconder que é dono de uma empresa”. Pelo contrário, “essa informação tem de ser pública porque o escrutínio público é também importante para prevenir o branqueamento de capitais”.

A deputada fez ainda questão de vincar que o combate ao branqueamento de capitais “não depende apenas de leis”, mas também “de meios e recursos” e de “vontade política de afrontar interesses económicos e interesses financeiros e interesses políticos”.

A cleptocracia angolana lavou em Portugal dinheiro sujo roubado ao povo

E foi no campo da falta de vontade política que Mariana Mortágua inscreveu a questão do branqueamento de capitais da elite angolana no nosso país. Para ela, “devemos saber que não foi só Isabel dos Santos que lavou dinheiro em Portugal e não foi só o Eurobic que participou em operações de branqueamento”. Já que “toda a cleptocracia angolana lavou dinheiro sujo roubado ao povo angolano em Portugal debaixo das barbas do regime político, que foi conivente com esta lavagem”.

Exemplo dessa falta de vontade política foi a investigação a Manuel Vicente, “uma das principais figuras do regime angolano” que foi envolvido judicialmente em Portugal num caso de corrupção e “não faltou quem quisesse abafar o caso”. A dirigente bloquista lembrou que Rui Machete “que era ministro do governo do PSD pediu desculpa ao vice-presidente angolano que hoje está envolvido neste caso” e que Paulo Portas “veio criticar a judicialização das relações políticas entre Portugal e Angola”. Mais, “o Parlamento negou-se a condenar o regime da cleptocracia angolana”.

“Toda gente sabia”, denuncia. Incluindo não só os dirigentes dos principais partidos nacionais mas também o Banco de Portugal. “Enquanto a troika cá estava e a população portuguesa passava sacrifícios havia bancos a registarem-se em Portugal, o BAI, o BNI e o BPA, todos com ligações a pessoas politicamente expostas do regime angolano e toda a gente sabia para que é que serviam estes bancos: serviam para lavar o dinheiro da elite angolana”. O BdP, que fez auditorias em 2016, também o sabia, disse antes de trazer à colação a questão dos vistos gold, que também enquadrou neste âmbito.

Os bancos da lavagem de dinheiro da elite angolana

A intervenção parlamentar de Mariana Mortágua aconteceu depois do jornal Expresso ter publicado uma investigação do OCCRP, o Organized Crime and Corruption Reporting Project, um consórcio de jornalistas internacionais que investiga corrupção, que originalmente tinha sido publicada a 13 de abril e de que o Esquerda.net tinha dado então dado conta.

O artigo intitulado “Qual é a melhor forma de tirar dinheiro de Angola? Abrir um banco” detalha os esquemas que permitiram que pelo menos 324 milhões de dólares tivessem sido desviados de Angola através de uma rede de bancos criados para este efeito. Para além disso, mais 257 milhões de dólares ficaram em empresas com ligações próximas a figuras de relevo do sistema político angolano.

Esta investigação cita a mesma auditoria de que Mariana Mortágua falava, realizada em 2016 pelo Banco de Portugal que resultou em dois relatórios “que não tinham ainda sido tornados públicos” dos quais constava a acusação de violação de dezenas de regras de funcionamento dos bancos e em que tinha sido considerados “altamente suspeitos” largos milhões de euros.

Apontam-se como “arquitetos do sistema” o próprio ex-vice-Presidente e ex-dirigente da Sonangol, Manuel Vicente, o General Dino, que foi chefe das comunicações de Eduardo dos Santos e o general Kopelipa, ex-chefe dos serviços de informação do país. Os três contam-se entre as maiores fortunas de Angola.

O dinheiro vinha sobretudo da empresa petrolífera estatal, a Sonangol, mas também de outras instituições públicas e até 150 milhões de dólares vieram de empréstimos do Banco Central de Angola nunca pagos.

Várias outras figuras menores do sistema político angolano atuavam como intermediários e detinham participações em bancos como o Banco Africano de Investimentos, o Banco de Negócios Internacional ou o Banco Privado Atlântico que criaram sucursais em Portugal e Cabo Verde através das quais transferiam para fora do país milhões de euros. A estas sucursais cabia o papel de não ativar controlos básicos de branqueamento de capitais nem procedimentos de investigação de clientes.

O esquema começou em 1996 com o BAI, o primeiro banco privado de Angola. O seu maior acionista foi a Sonangol, mas 40 por cento das ações acabaram por ser oferecidas por várias formas aos membros do grupo. Para além de ir transferindo dinheiro para contas de empresas e de particulares destes, amigos ou familiares, este banco emitia também cartões de crédito que usavam internacionalmente.

Dez anos depois, o esquema entrou em Cabo Verde através do Banco Privado Internacional. Entrou virtualmente porque apenas havia uma caixa postal na Cidade da Praia, não existiam sequer relatórios financeiros anuais. Manuel Vicente era o principal acionista com 35 por cento, segundo a auditoria do Banco de Portugal. Palhares tinha 30 por cento, o general João de Matos era o segundo com 25 por cento. Mas, segundo Khadija Sharife e Mark Anderson, os investigadores do OCCRP, “os acionistas do banco cabo-verdiano trocavam frequentemente ações uns com os outros, numa aparente tentativa de evitar o escrutínio regulatório”.

O terceiro passo foi a chegada à União Europeia através da porta portuguesa em 2014. O Banco de Negócios Internacional criou o BNI Europa, controlado por Mário Palhares, ex-dirigente do Banco de Angola. A organização resumia-se a “uma única secretária num edifício”, estava dependente da sua casa mãe e recebia o dinheiro que esta lhe enviava sem qualquer escrutínio sério. Servia para branquear dinheiro na Europa.

Depois deste, o Banco Privado Atlântico também criou uma sucursal portuguesa, detido maioritariamente por um sócio de Manuel Vicente, Carlos da Silva. Recebia dinheiro vindo do banco central de Angola ou de outros bancos próximos do regime e realiza o mesmo tipo de esquemas dos outros.

Segundo os investigadores, “os bancos montados pelos angolanos continuam a operar em Cabo Verde e em Portugal. Centenas de milhões passaram pelos bancos-pais e pelas suas filiais nos últimos anos, e a origem exata de muito deste dinheiro permanece desconhecida”.

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