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Que diziam os partidos sobre a cleptocracia instalada em Angola?

No final da guerra civil, Angola tornou-se uma terra de grandes oportunidades para alguns. Nessa altura, as críticas da direita e do PS ao regime do MPLA foram substituídas pelos convites ao investimento da elite económica angolana. O PCP manteve-se fiel ao MPLA e só o Bloco apontou sempre o dedo aos cleptocratas do regime.
Miguel Relvas, Paulo Portas, Carlos César e Jerónimo de Sousa. Em fundo: José Eduardo dos Santos
Miguel Relvas, Paulo Portas, Carlos César e Jerónimo de Sousa. Em fundo: José Eduardo dos Santos

“Há momentos em que a responsabilidade do Estado nos impõe contenção”, dizia o deputado Barros Moura, já falecido, para explicar as reticências do PS em aprovar o voto do Bloco sobre a liberdade de expressão em Angola. Estávamos em novembro de 1999 e a votação ocorreu no dia seguinte à libertação do jornalista Rafael Marques, que se destacou na denúncia de vários esquemas de corrupção no círculo próximo de Eduardo dos Santos. No mesmo debate, o social-democrata Matos Correia pedia para votar em separado o ponto que protestava contra o agravamento das condições de trabalho dos jornalistas angolanos, porque isso seria “partir desta situação concreta para a generalização de uma conclusão que não temos razões ou motivos que nos levem a consubstanciar”. Também o PCP se iria abster, sugerindo que o voto teria perdido atualidade com a libertação do jornalista.

No mês seguinte, um relatório da ONG Global Witness sobre corrupção na guerra em Angola, envolvendo concessões de petróleo e diamantes em troca de comissões para pagar armamento, trouxe de novo a situação angolana ao debate parlamentar. Pelo Bloco, Francisco Louçã dizia que “não existe, hoje em dia, pior inimigo do governo de Angola do que ele próprio”, ao promover “a generalização do nepotismo, de políticas desprestigiantes, da repressão, de atentados aos direitos humanos”. À direita, Paulo Portas aproveitava para atacar PS, PSD e PCP: “é o mais amplo bloco central da política portuguesa, é o silêncio de chumbo a favor do MPLA, em todas as circunstâncias — até daquelas que vos deviam envergonhar”. Os comunistas defendiam-se e contra-atacavam : “É talvez a altura de saber se esta multiplicação de votos sobre a situação interna de Angola não será um resquício de algumas pretensões neocolonialistas, que vêm agora para cima da mesa”, dizia João Amaral, histórico parlamentar do PCP, já falecido, por entre aplausos da sua bancada.

Ao longo da década seguinte, as questões dos direitos humanos em Angola e a perseguição a jornalistas como Rafael Marques continuaram a ser debatidas e condenadas, sempre por iniciativa do Bloco e contando porvezes com o apoio do PS e do PSD. Mas a entrada em força do capital angolano na economia portuguesa, a partir da crise financeira de 2008, provocou mudanças neste xadrez político. 

Como os governos abriram portas ao capital roubado ao povo angolano

Os investimentos de Isabel dos Santos e outras figuras do entorno presidencial angolano em empresas portuguesas foram acompanhadas pela cooptação de decisores políticos portugueses, que passaram a estar ao serviço dos novos milionários que sugavam os recursos públicos de Angola. 

Quando José Eduardo dos Santos visitou Portugal em 2006 e conheceu pessoalmente o primeiro-ministro José Sócrates, afirmou-se "bastante impressionado” com essa “pessoa de convicções fortes, clarividente e empenhado na busca de soluções”. Dois anos depois, José Sócrates viajou no Dia de Portugal a uma feira de empresários em Luanda para “dar uma palavra de confiança a Angola no trabalho que o Governo angolano tem feito que é, a todos os títulos, notável”. A diplomacia económica ditava então o discurso político e para Sócrates era "um prazer poder assistir a um país com dinamismo, vibração, com entusiasmo e com consciência do seu futuro”. No ano seguinte, o ministro das Obras Públicas, António Mendonça, dava as boas vindas à entrada de Isabel dos Santos no capital da Zon. ”Temos que ver estes negócios com naturalidade e é sinal que está a haver uma revitalização na nossa economia”, congratulava-se o ministro com esta “boa notícia” para a economia portuguesa.

O governo mudou, a troika entrou em Portugal e os negócios envolvendo capital angolano não pararam de aumentar. A venda do BPN ao BIC pelo governo de Passos Coelho e Paulo Portas levantou suspeitas ao Bloco de Esquerda, que viu chumbada a proposta para uma comissão de inquérito ao negócio. “O BIC recebe um banco acabado de refinanciar com 600 milhões de euros e mais um financiamento de 167 milhões para crédito malparado. Para sermos completamente claros, o Governo entrega 767 milhões ao BIC, para o BIC comprar o BPN por 40 milhões de euros”, denunciava João Semedo em 2012 no parlamento.

Nessa altura, Isabel dos Santos reforçava o poder na NOS com a compra das ações da Caixa Geral de Depósitos. “É uma excelentíssima empresária, a nível nacional e internacional”, elogiava o banqueiro Ricardo Salgado, comentando o negócio.

“Angola tem hoje uma classe empresarial que prestigia o país e que em conjunto com empresários portugueses estão a construir uma nova realidade, com empresas mistas de capital misto. Portugal e Angola estão numa fase que só vai permitir o crescimento”, garantia o ministro Miguel Relvas, também ele envolvido em vários negócios com a elite angolana.

Quando o ministro pediu desculpas pela investigação de crimes da elite angolana em Portugal

Nessa altura já havia investigações a crimes financeiros em Portugal por parte de figuras de relevo do regime de Eduardo dos Santos. E, no início de outubro de 2013, uma entrevista do ministro dos Negócios Estrangeiros do governo PSD/CDS, Rui Machete, à Rádio Nacional de Angola provocou um escândalo político em Portugal. “Tanto quanto sei, não há nada de substancialmente digno de relevo e que permita entender que alguma coisa estaria mal, para além do preenchimento de formulários e coisas burocráticas. E [quero] naturalmente informar as autoridades de Angola, pedindo diplomaticamente desculpa por uma coisa que não está na nossa mão evitar”, afirmou Machete, que até à entrada no governo era consultor da sociedade de advogados PLMJ, representante legal de alguns dos visados pela investigação.

Em seguida, Catarina Martins confrontou Passos Coelho no parlamento sobre a matéria. “Não podemos aceitar que um ministro se ajoelhe e que perante um regime em que as liberdades mais básicas não são respeitadas peça desculpa por Portugal ser um Estado de direito democrático”, afirmou a coordenadora do Bloco, desafiando Passos Coelho a desmentir as palavras do ministro. Mas o primeiro-ministro optou pelo silêncio. Foi a Procuradora Geral da República, Joana Marques Vidal, a emitir um comunicado negando que tivesse informado o ministro acerca do andamento das investigações. 

Enquanto Eduardo dos Santos anunciava o fim da parceria estratégica com Portugal e cancelava a cimeira prevista para daí a poucos meses, o presidente Cavaco Silva tentava apaziguar o homólogo angolano com uma carta de felicitação no Dia Nacional de Angola, destacando que “temos sabido construir uma relação reciprocamente benéfica e profícua, estruturada tanto ao nível dos nossos cidadãos e empresas, como ao nível político e diplomático”.

A viragem de 180º de Paulo Portas sobre Angola

A alteração mais radical da posição política face a Angola foi sem dúvida a do CDS. Os ataques de Paulo Portas contra “o silêncio de chumbo a favor do MPLA” deram lugar a palavras elogiosas para o regime angolano. “Angola é uma potência africana e o Presidente José Eduardo dos Santos é um dos líderes africanos mais respeitados e mais experimentados”, dizia Portas enquanto ministro na visita a Angola em 2014. Dois anos depois, explicou aos jovens quadros do partido que “não têm razão os que acham que é uma atribuição de Portugal explicar aos angolanos como é que eles devem ser angolanos”. Seis meses antes, o CDS tinha chumbado ao lado do PSD e do PCP o voto do Bloco a criticar a condenação de Luaty Beirão e de outros 16 ativistas. 

No Congresso do CDS de 2016, Paulo Portas despede-se da liderança do partido com um aceno para Luanda, apelando aos órgãos de soberania portugueses para “evitarem a tendência para a judicialização da relação entre Portugal e Angola – esse seria um caminho sem retorno -, e procurarem em todas as frentes o compromisso”. Palavras que lhe valeram elogios do Jornal de Angola, com o editorialista a garantir que “nem sempre há a lucidez e inteligência que Paulo Portas verteu na sua mensagem" aos congressistas.

A aproximação do CDS ao MPLA de Eduardo dos Santos não foi pacífica dentro do partido, como ficou evidente nas reações às palavras do deputado Hélder Amaral, representante do CDS no congresso do partido no poder em Angola. “É um caminho natural que se foi fazendo”, explicou Hélder Amaral aos jornalistas, defendendo que é preciso "saber ler os tempos, os sinais, adaptar-se e atualizar-se”, pelo que na atualidade o CDS tem “muitos mais pontos em comum” com o MPLA. “Os dois países, os dois partidos, têm tudo para que essa relação seja cada vez mais forte”, concluiu Amaral, desencadeando uma onda de críticas e demarcações de outros dirigentes do partido. Paulo Portas, que estava também no Congresso “a convite pessoal” do MPLA, não interveio na polémica.

Da gaffe de César aos elogios do ministro do PS a Isabel dos Santos

Nesse mesmo Congresso, para além do habitual convite ao PCP, estava também representado o PSD, por Teresa Leal Coelho e Marco António Costa e também o PS, parceiro do MPLA na Internacional Socialista. Os socialistas portugueses enviaram a Luanda uma delegação de alto nível: a secretária-geral adjunta Ana Catarina Mendes e o presidente do partido, Carlos César. Coube a César fazer a intervenção de saudação para “aqui testemunhar a garantia desse caminho novo de proximidade, de afetividade, de colaboração e de luta comum” entre os dois partidos. Sem esquecer o contributo dos empresários angolanos “que investem no nosso país, que fomentam o emprego, o crescimento da economia e o desenvolvimento de Portugal” nem o cumprimento dirigido “de forma especialmente fraterna” a José Eduardo dos Santos. César concluiu o discurso com uma gaffe, dando vivas à República Popular de Angola, a designação do país até 1992, quando a mudou para República de Angola. 

O facto de o PS governar com o apoio parlamentar do PCP e do Bloco de Esquerda, partidos com posições antagónicas sobre a natureza do regime de Eduardo dos Santos, causou apreensão no MPLA, que o PS se apressou a desfazer mal o governo tomou posse. 

No mandato do primeiro governo socialista, ficou evidente que as portas continuavam abertas à sangria de capitais angolanos com destino a Portugal. Em 2016, ao tentar dirimir o conflito entre Isabel dos Santos e os catalães do La Caixa no BPI, o primeiro-ministro António Costa recebeu a empresária na residência oficial para uma reunião privada em que terá dado luz verde à entrada de Isabel dos Santos no capital do BCP em troca da sua saída do BPI. Isabel dos Santos acabou mesmo por vender a participação no BPI e garantir em troca o controlo do BFA, abdicando de entrar no BCP, onde a Sonangol deixou de ser o principal acionista com a entrada da chinesa Fosun nesse mesmo ano.

Dois anos depois, o governo ainda elogiava Isabel dos Santos, desta vez a propósito das promessas de criar mais empregos na nova unidade da Efacec na Maia. A cerimónia juntou a bilionária e o seu marido, Sindika Dokolo, ao ministro da Economia, Caldeira Cabral, que elogiou Isabel dos Santos por investir na Efacec.

A fidelidade constante do PCP ao MPLA

Passada uma semana da divulgação dos Luanda Leaks, os apoiantes do PCP ainda não encontram notícias sobre o tema nos órgãos de comunicação afetos ao partido, como o “Avante!” ou o “Abril Abril”. Jerónimo de Sousa só falou quando foi questionado pelos jornalistas numa visita à Autoeuropa e respondeu que “o PCP não comenta alegações vindas a público, considerando antes que existem entidades, designadamente a regulação e supervisão, que têm um trabalho a cumprir e a concretizar”. O secretário-geral do PCP nada disse sobre os esquemas agora sob investigação que permitiram a Isabel dos Santos tirar de Angola centenas de milhões de euros de recursos públicos para formar o seu império empresarial.  

Quando o Bloco elegeu os primeiros deputados à Assembleia da República e começou a levantar o tema dos direitos humanos em Angola, os deputados comunistas colocaram-se sempre do outro lado da barricada, rejeitando supostas ingerências nos assuntos internos angolanos. Mesmo mais de década e meia depois das primeiras iniciativas apresentadas no parlamento, por exemplo no voto contra a condenação de Luaty Beirão e outros 16 ativistas pró-democracia em 2016, a argumentação mantinha-se a mesma de 1999: “o PCP não acompanha campanhas que, procurando envolver cidadãos angolanos em nome de uma legítima intervenção cívica e política, visam efetivamente pôr em causa o normal funcionamento das instituições angolanas e desestabilizar de novo a República de Angola”.

Sobre o/a autor(a)

Jornalista
política: 
Luanda Leaks
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Neste dossier:

Luanda Leaks: a queda de Isabel dos Santos

Os “Luanda Leaks” vieram expor a forma como Isabel dos Santos e Sindika Dokolo construíram o seu império financeiro, em boa parte graças ao financiamento público resultante da influência política de José Eduardo dos Santos. Os negócios, ruinosos para o Estado angolano, serviram para criar a primeira bilionária africana. Dossier organizado por Luís Branco.

Perfil: José Eduardo dos Santos, o déspota discreto

Falecido esta sexta-feira, Eduardo dos Santos chegou ao poder porque era, dos presidenciáveis, o mais fraco. Nos primeiros anos, não “mexeu uma palha”. Mas demonstrou a capacidade de adaptação suficiente para sobreviver à queda do Muro de Berlim, abraçar o capitalismo mais selvagem e ainda enriquecer-se e à sua família. Artigo de Luís Leiria, publicado em dezembro de 2015 no dossier Angola: a ditadura que o mundo não quer ver.

Miguel Relvas, Paulo Portas, Carlos César e Jerónimo de Sousa. Em fundo: José Eduardo dos Santos

Que diziam os partidos sobre a cleptocracia instalada em Angola?

No final da guerra civil, Angola tornou-se uma terra de grandes oportunidades para alguns. Nessa altura, as críticas da direita e do PS ao regime do MPLA foram substituídas pelos convites ao investimento da elite económica angolana. O PCP manteve-se fiel ao MPLA e só o Bloco apontou sempre o dedo aos cleptocratas do regime. Artigo de Luís Branco.

Sede da PwC em Toronto

Empresas de auditoria de novo no centro da fraude

PwC, Delloite, Ernst & Young, KPMG e Boston Consulting são algumas das grandes consultoras que ajudaram Isabel dos Santos e Sindika Dokolo a montarem o seu império de mais de 400 empresas em 41 países, incluindo vários paraísos fiscais.

Quem são os ex-governantes portugueses nos negócios angolanos?

Além de mobilizar redes de influência, a contratação de ex-governantes portugueses permitiu ao regime de Luanda exibir as credenciais de responsáveis democráticos de Portugal. Não foram só advogados e consultores a apoiar e beneficiar do roubo sistemático do povo de Angola. Artigo de Jorge Costa.

Afinal, de onde vêm os Luanda Leaks?

Os mais de 715 mil documentos sobre os negócios de Isabel dos Santos publicados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação foram entregues por uma plataforma fundada por William Bourdon, advogado que defendeu Assange e defende agora Rui Pinto.

Atuais sociedades de Isabel dos Santos com grandes grupos económicos portugueses.

Os laços de Isabel dos Santos com a elite económica portuguesa

Só explicável pelas características e dificuldades dos próprios processos de formação e acumulação da burguesia portuguesa, este caso é único. Para compreender o Portugal de hoje, é necessário conhecê-lo. (Trechos do livro Os Donos Angolanos de Portugal, de Jorge Costa, Francisco Louçã e João Teixeira Lopes, 2014).

Que é feito da "empresária" Isabel dos Santos?

Uma "grande empresária", assim foi tratada Isabel dos Santos desde que aqui começou a investir a fortuna do petróleo angolano. Artigo de Mariana Mortágua.