Este testemunho foi recolhido no âmbito do projeto Mulheres de Abril, iniciado em 2018, e que compila relatos, na primeira pessoa, de mulheres antifascistas sobre a sua história de resistência e de luta contra a ditadura. Coordenação de Mariana Carneiro.
Uma vida de luta contra o fascismo, pela Paz e pela Liberdade
Sou de Portimão. O meu pai era gerente do Banco de Portugal e membro proeminente da burguesia da cidade.
Lembro-me de assistir a uma manifestação em frente a minha casa, quando tinha cerca de cinco anos. O hoje chamado Largo Teixeira Gomes, naquela altura Largo do Coreto, estava apinhado de gente. Conhecia algumas das pessoas presentes, porque brincava no largo com os filhos dos pescadores e os filhos das operárias conserveiras e dos operários agrícolas. Ali, perto do rio, juntava-se sempre a miudagem.
Essa manifestação impressionou-me. Entrou por aquele largo adentro o capitão da Guarda Nacional Republicana montado a cavalo, com os guardas republicanos atrás, brandindo chicotes contra as pessoas. A sensação, a partir da minha janela, era a de que os cavalos estavam a esmagar as pessoas. É a primeira memória que tenho do que era a repressão.
Fiquei sempre com a curiosidade de saber qual a origem daquela acção. Mais tarde, tive conhecimento de que, a 18 de Janeiro de 1934, se deu uma revolta contra a fascização dos sindicatos, ou seja, a extinção dos sindicatos livres que existiam. Em Portimão, estava em causa o sindicato dos conserveiros, o sindicato dos metalúrgicos e associações de operários agrícolas. [Claro que a revolta na Marinha Grande é mais conhecida, até pela sua dimensão].
A manifestação do dia do armistício
Tinha acabado de fazer 17 anos quando participei na primeira manifestação política, estava no sétimo ano no liceu Pedro Nunes, em Lisboa. Foi no dia 8 de Maio de 1945, o dia do armistício. Já existia entre nós a noção do que foi a guerra, do que foi o nazifascismo, da aliança do Salazar com o Mussolini e o Hitler. Para mim isso era muito claro. Que não existia, de maneira nenhuma, isenção da parte do Salazar. Não é por acaso, aliás, que Salazar tinha um retrato do Mussolini na secretária, autografado.
Tínhamos a noção clara de que a manifestação era de alegria pela vitória contra o nazifascismo, pela vitória dos aliados, e também pela vitória contra o próprio fascismo português, que era seu aliado
Em Portimão, passavam pelo rio Arado as barcaças que iam na altura fornecer os barcos alemães com conservas de peixe para as frentes da batalha, com outros produtos agrícolas e também com cortiça que vinha de Silves, utilizada como isolante nos carros de combate que iam para a frente de Leste, ou seja, para a União Soviética. Sabíamos que aquilo tudo ia para a Alemanha de Hitler. Sabíamos também que Salazar não era uma pessoa isenta ou, como dizia, neutral. Não havia neutralidade. Portanto, quando houve a manifestação do fim da guerra, tínhamos a noção clara de que a manifestação era de alegria pela vitória contra o nazifascismo, pela vitória dos aliados, e também pela vitória contra o próprio fascismo português, que era seu aliado.
A manifestação foi a maior de sempre em Lisboa até àquela data, e teve réplicas em todo o país. Gritávamos slogans contra a guerra, pela Paz. À frente da manifestação seguiam três bandeiras: uma bandeira francesa, uma bandeira dos Estados Unidos e uma bandeira inglesa. E também um pau de bandeira sem nada, que significava a União Soviética. Todos percebíamos o que era, tanto mais que tínhamos consciência da importância que teve o exército vermelho na luta contra o nazifascismo, dos milhões de mortos na União Soviética e do avanço das tropas do exército vermelho, que chegou a Berlim primeiro. Por isso é que Churchil e seus aliados (que tinham esperado que a União Soviética fosse vencida por Hitler) abriram rapidamente a chamada segunda frente, pois entenderam que Hitler estava vencido. Para nós, jovens, isto já foi uma clarificação muito grande do posicionamento político que já se começava a verificar naquela altura.
As bombas atómicas de Hiroshima e Nagasaki
Depois, houve outro facto muito importante para a consciencialização política: a bomba atómica sobre Hiroshima, a 6 de Agosto de 1945, e, poucos dias depois, sobre Nagasaki. Eufóricos com o fim da guerra, com a perspectiva de um futuro de Paz e alegria, fomos confrontados com o lançamento destas duas bombas atómicas que mataram milhões de pessoas, já não contando com toda a degenerescência decorrente. E isto aconteceu quando o Japão, que fazia parte do grupo nazifascista, já se queria render, estava vencido. Por um lado, a indústria de guerra americana simplesmente queria testar as suas bombas atómicas. Por outro, estava a realizar-se, em Berlim, a Conferência de Potsdam, pelo que os Estados Unidos utilizaram as bombas atómicas como poder dissuasor e como demonstração de força perante as outras potências, particularmente a União Soviética. Este foi um choque brutal para quem queria a Paz e para quem percebeu, como nós, que, de facto, os Estados Unidos eram mesmo os polícias do mundo.
Em Belas Artes, a luta pela Paz e contra a NATO era muito intensa
Já com uma noção mais clara do fascismo e da repressão em Portugal, entro nas Belas Artes, onde a luta pela Paz e contra a NATO foi interessantíssima. Por esta altura, começa o Movimento Mundial da Paz, ao qual aderiram importantes personalidades mundiais, entre elas Picasso, autor da "Pomba da Paz". Eu pertencia ao Movimento de Unidade Democrática Juvenil (MUD Juvenil), que tinha sido criado em 1946, no pós guerra, e que contava com pessoas como o Agostinho Neto e o Vasco Cabral, que mais tarde se evidenciaram como líderes dos movimentos de libertação nacional. As Comissões de Paz ainda eram mais amplas, excediam muito o MUD Juvenil. Houve, de facto, nas várias escolas, particularmente nas Belas Artes, no Técnico e em Medicina, uma mobilização enorme.
Neste período, iniciado com as bombas atómicas e que desembocou na guerra fria, tomámos consciência do objectivo e do papel ofensivo que tinha a NATO
Lembro-me que vibrámos e sofremos imenso com o processo terrível contra o casal Rosenberg - Ethel e Julius Rosenberg -, que foram mortos na cadeira eléctrica nos Estados Unidos, considerados como traidores, mas que, na verdade, pertenciam ao movimento da Paz. Este foi mais um episódio que nos sensibilizou bastante e que fez criar uma certa revolta, abrindo-nos ainda mais os olhos sobre o papel dos Estados Unidos. Neste período, iniciado com as bombas atómicas e que desembocou na guerra fria, com a criação da NATO, tomámos consciência do objectivo e do papel ofensivo que tinha a NATO.
Em 1952, quando se deu a primeira conferência interministerial da NATO, no Técnico, desenvolvemos nas Belas Artes uma actividade muito intensa. Fazíamos pichagens nas paredes com grande à vontade. Andávamos em brigadas de três ou quatro, uns ficavam em cada ponta da rua. Escondíamos os baldes de tinta e os pincéis nos casacos [Uns casacos muito largos e muito bonitos que existiam na altura]. Juntávamos nitrato de prata às tintas porque quando caiassem, a tinta voltava outra vez a sobressair. Éramos técnicos da coisa. Entretanto, desenhávamos "Pombas da Paz" e escrevíamos "Fora a Nato! Queremos Paz!". Com os membros da direcção universitária das outras faculdades [eu na altura pertencia à direcção universitária de Belas Artes], promovemos a exposição Os desastres da Guerra do Goya nas salas da Associação Académica de Económicas. Nesta altura, o José Dias Coelho era o responsável político em Belas Artes, integrava o MUD Juvenil e era já membro do Partido.
A ação no elevador de Santa Justa
Fizemos dois grandes cartazes em papel de cenário, longos, com um pau em cada extremidade. Enrolámos os cartazes e deixámos-los cair do topo do elevador de Santa Justa para a Rua Nova do Carmo. Foi formidável. Era uma brigada formada pelo Raul Hestnes Ferreira, que é hoje um conhecidíssimo arquitecto, filho do José Gomes Ferreira, outro arquitecto Medeiros, dos Açores, e eu. Um cartaz dizia, ao alto, “Fora a Nato!” e o outro “Luta pela Paz!”. Nestes cartazes estavam enroladas gravuras feitas pelo Júlio Pomar, pelo Lima de Freitas e pelo José Dias Coelho. Passámos a véspera a copiar centenas e centenas de gravuras referentes à NATO e à luta pela Paz. Tínhamos regras a cumprir, após feito o lançamento, devíamos sair dali o mais depressa possível. Fomos encontrar-nos os três cá em baixo, a olhar para os cartazes, na Rua Nova do Carmo. Não resistimos a ver o efeito do nosso trabalho. As pessoas apanhavam as gravuras. [Tenho pena de não termos guardado nenhuma. Naquela altura nós, jovens, não tínhamos a ideia do que era arquivar, do que era fazer história. Tínhamos ideia da luta directa]
Em 1952, sou expulsa de Belas Artes
Em 1952, 82 alunos foram expulsos de Belas Artes por encherem a escola de pichagens e de cartazes contra a NATO e pela Paz. Eu, o José Dias Coelho e o António Alfredo Paiva Nunes fomos os mais penalizados, já que, além de sermos expulsos de Belas Artes, fomos expulsos de todas as escolas do país. Eu já tinha feito bacharelato, já estava a acabar o curso, e já era professora de Educação Visual. O ministério da Educação não ligou imediatamente a aluna que foi expulsa de Belas Artes à professora que dava aulas na Escola Paula Vicente. Um dia, o José Dias Coelho, que era professor na Marquês de Pombal, ligou-me a avisar que a PIDE ia à escola para me expulsar, e deu-me indicações de que não devia aceitar a expulsão sem me darem um documento que justificasse a decisão. Isto deu-me tempo para falar às alunas, para explicar o que estava a acontecer. Em Educação Visual, praticávamos desenho livre. Éramos muito amigos do José Cardoso Pires que, nessa altura, era director da Eva. Ele pediu-nos alguns desenhos, dos alunos do Zé e das minhas alunas, sobre o que é a guerra e a Paz. Expliquei-lhes que era por causa da minha luta pela Paz que estava a ser expulsa. Elas choravam abraçadas a mim e os pides tiveram de aguardar à porta da aula, porque não lhes dei autorização para entrarem enquanto não me mostrassem o documento, que não tinham. Eram tão autoritários que achavam que teriam a vida facilitada e seria só chegar e ir embora. Deu tempo para ouvirem o discurso todo. Foi mais um momento de propaganda!
A luta tinha de desembocar nalguma coisa concreta, eficiente e eficaz: o Partido Comunista Português
A consciência política é dinâmica. Vai sofrendo transformações ao longo da vida e da nossa actuação. É claro que, para um jovem, a consciência política tem muito de romantismo revolucionário. Aos poucos, à medida que observamos a realidade, o romantismo revolucionário vai-se transformando num espírito revolucionário consequente e com objectivos mais claros. E, para muitos de nós, toda esta luta tinha de desembocar nalguma coisa concreta, eficiente e eficaz: o Partido Comunista Português. Os partidos tinham sido dissolvidos ainda aquando do princípio do 28 de maio de 1926, quando houve a ditadura militar em si, que só depois deu lugar à ditadura fascista. Já na ditadura militar se tinham criado condições de repressão, se tinha criado a censura, se tinha criado a PIDE. E depois avançou-se para uma ditadura fascista clara. Uma vez que os partidos políticos, nessa linha de acção, foram dissolvidos, o Parlamento foi dissolvido, bem como os sindicatos livres, o único que se manteve a lutar foi o Partido Comunista, quarenta e oito anos debaixo do fascismo. Posteriormente, nasceram outros pequenos partidos, mas, consequentemente, foi o Partido Comunista Português que travou a luta contra a ditadura desde o princípio. Nesta nossa consciência política mais afinada, desembocámos facilmente nas fileiras do Partido Comunista. Eu entrei em 1952, logo a seguir à minha expulsão. Já antes tinha demonstrado vontade em entrar, mas o Partido dizia que tínhamos um bom trabalho unitário em Belas Artes e no MUD Juvenil que valia a pena alimentar.
Aprendi imenso com a Maria Lamas
Sem fonte de rendimentos, acabei por ir trabalhei com a Maria Lamas. Ela tinha deixado de ser, há pouco tempo, directora do Modas e Bordados, uma revista do jornal O Século. Falou com a Etelvina Lopes de Almeida, que tinha sido sua adjunta, mas que passou a ser a nova directora, e entrei para a revista. Fazia de tudo um pouco. Escrevia artigos [com um pseudónimo qualquer], fazia desenhos de moda, de bordados, ajudava a paginar... Era polivalente. Estive lá três anos, entre 1952 e 1955, quando entrei na clandestinidade.
Aparte o Modas e Bordados, trabalhava com a Maria Lamas nas questões de mulheres, numa comissão que contava também com a participação da Antónia Palla. [Lembro-me que tínhamos tão pouco dinheiro nesta comissão que um dia a Antónia Palla pôs no prego uma manta lindíssima de bordado de Castelo Branco, que era da sua família, para podermos enviar uma delegação de três mulheres].
Em 1953, houve um Congresso Mundial de Mulheres em Copenhaga. Foi decido que enviaríamos uma delegação, chefiada pela Maria Lamas, que faria a intervenção principal. Iria a Maria Cecília de Belas Artes e a Manuela, de Alcântara. Entre as três, teriam direito a algumas intervenções. A Maria Lamas pediu-me para escrever um texto sobre a situação da mulher e da criança em Portugal. Eu redigia com facilidade, mas não fazia ideia de como pegar na temática. Ela deu-me dicas fenomenais. Disse-me para pegar nas estatísticas e ver o número de partos sem assistência e a sua divisão por distritos e concelhos, indicando-me que iria comprovar que, quanto mais atrasado fosse o concelho, maior seria o número de partos sem assistência. Depois disse-me que deveria ver os dados referentes à mortalidade infantil, e que assim iria chegar a uma conclusão perfeitamente lógica: quanto maior o número de partos sem assistência, mais elevada é a mortalidade infantil. Deveria também ver o número de creches e escolas. Este foi o primeiro relatório político que fiz, conduzida pela Maria Lamas. Tive muito bons professores e professoras ao longo da vida. A Maria Lamas foi uma delas.
A entrada para a clandestinidade e a Oficina de Falsificações do Partido
Tivemos uma reunião com o Joaquim Pires Jorge, na Ericeira, em que ele nos propôs, a mim e ao José Dias Coelho, entrarmos para a clandestinidade. Nessa altura, já tinha nascido a nossa filha mais velha, a Teresa.
Primeiro tivemos uma casa semi-clandestina. Estava ainda no Modas e Bordados e dava a morada da nossa anterior casa, junto da família Dias Coelho, mas já não vivíamos lá. Tínhamos uma casa perto do Alto de São João, onde começámos desde logo a fazer alguns trabalhos.
A razão pela qual fomos chamados para a clandestinidade não foi por estarmos a ser perseguidos. Há uma ideia de que é quando se é perseguido que se entra para a clandestinidade. Isso não é verdade. Entrávamos quando éramos necessários, ou quando éramos úteis, e não porque estávamos a ser perseguidos.
Dada a nossa capacidade artística, eu e o José Dias Coelho entrámos para a clandestinidade para fazer falsificações. Fomos nós que criámos a Oficina de Falsificações. Ainda fizemos trabalhos em 54 na casa semi-clandestina, como preparar um passaporte falso para o Sérgio Vilarigues. O Partido Comunista começava a ter algumas relações internacionais mais intensas e, nesse sentido, a falsificação de passaportes era necessária para permitir a circulação de pessoas como o Vilarigues, que já tinha estado no Tarrafal. Tínhamos outro papel importante: existiam intensas rusgas da polícia nas ruas, que pedia a identificação a quem abordava, portanto, também fazíamos bilhetes de identidade falsos para os camaradas que estavam na clandestinidade poderem movimentar-se. O mesmo acontecia com as licenças de bicicletas e, mais tarde, quando o Partido começou a ter mais posses e maiores facilidades, cartas de condução. Tínhamos uma oficina preparadíssima. Era um trabalho cheio de desafios, um trabalho técnico muito intenso.
A Voz das Camaradas das casas clandestinas
Nessa altura, existia um boletim interno na clandestinidade que se chamava Três Páginas. Gostei imenso da publicação, porque achei que era bastante interessante ter mulheres a escrever sobre os problemas da clandestinidade do ponto de vista feminino, nomeadamente, no que respeita à defesa das casas, que era o papel principal que as mulheres tinham. No entanto, pensei imediatamente que aquele título não era o mais indicado. Eram três folhas, e não três páginas, e o título não dizia nada. Perante a minha crítica, o Pires Jorge disse que iriam discutir essa questão. Dias mais tarde, voltou lá a casa e informou-me que iam mudar o título do boletim e que eu ficaria responsável pela publicação. Achei fantástico. Criámos então um boletim que se chamava A Voz das Camaradas. Eu escrevia o editorial, mas também alguns artigos, sob o pseudónimo Leonor. As motivações que trouxeram as mulheres à clandestinidade eram muito diversificadas. Umas entraram, pura e simplesmente, para acompanhar os maridos. Outras tinham vindo por modo próprio. Outras, como eu, acompanhadas mas conscientes politicamente. Portanto, as realidades das mulheres na clandestinidade eram muito diversas. No entanto, era necessário ter uma ideia geral e, principalmente, quanto menos politizadas eram as mulheres que estavam na clandestinidade, mais necessário era fazer um trabalho a fundo para a compreensão da necessidade da existência das casas clandestinas.
As casas clandestinas não existiam para ficarmos mergulhados nelas. As casas clandestinas existiam para dali os quadros saírem para a organização. Para organizarem as células, para organizarem as manifestações, para organizarem as lutas. Sem uma casa clandestina, sem esse ponto de apoio, não era possível fazer este trabalho face à perseguição e repressão de que éramos alvo. E era imperativo fazer compreender isto, que aquela mulher que tinha vindo com o marido e que estava na cozinha a fazer as refeições, e que lavava a roupa, estava ali com um objectivo muito para além de fazer esse tipo de tarefas. Ou seja, explicar a necessidade da existência das casas clandestinas e o papel fundamental das mulheres na defesa das casas. As mulheres criavam a razão de ser da existência daquela casa, justificavam legalmente a casa, digamos assim. A defesa da casa clandestina tinha várias particularidades: a gestão das dificuldades que existiam nas relações com a vizinhança e sua resolução com consciência política, a vigilância da polícia... Tudo isso era papel das mulheres, e eram funções muito importantes e nada fáceis.
A Voz das Camaradas contribuía também para uma politização mais intensa das mulheres. Para que a consciência aumentasse, era necessária também uma maior politização. Alguns dos textos tinham já uma base política: a razão da existência de um partido comunista, por exemplo, ou os princípios Leninistas de um partido da classe operária.
Por outro lado, A Voz das Camaradas tinha também um papel cultural importante, já que obrigava as mulheres a ler, estimulava-as a escrever artigos sobre pequenas experiências, como um livro que tinham lido. Tudo isto ajudava aquelas que tinham maiores dificuldades a superá-las. Cada mulher tinha o seu pseudónimo e sentia muito orgulho no seu contributo. Acho que o meu papel aí foi muito bom, porque, para cada artigo, fazia um título com letras desenhadas, tinha gravuras específicas para determinados artigos. Com o stencil conseguia fazer tons, meios tons... Todo o aspecto geral era muito mais bonito, e isto estimulava as camaradas que tinham escrito artigos e mobilizava as restantes para colaborarem. Foi uma das tarefas que cumpri durante anos de que gostei muito.
O livro A Resistência em Portugal
Nas casas onde funcionava a Oficina das Falsificações a defesa era muito grande, sendo que a sua localização só era conhecida de alguns membros do Secretariado do Comité Central. Nessa altura, o arquivo do Partido estava muito disperso por várias casas de pessoas conhecidas. Essa dispersão, e facto de não haver um arquivo centralizado, fez com que os camaradas decidissem levar os documentos para nossa casa para os fotografarmos e arquivarmos, o que permitiria salvaguardar o arquivo do Partido.
Utilizámos uma Minox, que é uma máquina fotográfica da RDA [o José Dias Coelho tinha estado lá e aprendeu a funcionar com o equipamento], para fotografar tudo em triplicado. Isto coincidiu com a fuga do Álvaro Cunhal, e de vários outros camaradas, de Peniche. Quando passou pela nossa casa para ir fazer documentos falsos, deu-nos a ideia de escrevermos um livro sobre a luta do Partido. Ficámos totalmente atrapalhados, porque era imenso material e nem sabíamos por onde começar. Pedimos-lhe que sugerisse os capítulos. Assim foi. Ele deu a ideia geral dos capítulos, o que facilitou imenso a tarefa de arrumar o material de que dispúnhamos.
O livro foi editado primeiro no Brasil. O autor chamava-se "Amílcar Gomes Duarte". Eram os três dirigentes mais conhecidos: Amílcar era o pseudónimo do Sérgio Vilarigues, Gomes era o do Pires Jorge e Duarte era o do Álvaro Cunhal. Mais tarde, o livro foi editado em Moscovo. Foram feitos milhões de exemplares. O Álvaro sugeriu que atribuíssemos o livro ao Zé [nessa altura já falecido], que era, aquando da sua elaboração, o responsável político. Apesar de termos feitos dois capítulos cada um, e de ter sido um trabalho conjunto, o Zé tinha nessa altura maior capacidade política que eu, pelo que achei justo que assim fosse.
Em 1962 rumo a Moscovo
Entretanto, tinha integrado a redacção do Avante!, pelo que, no início de 1961, deixei a Oficina das Falsificações para me dedicar a tempo inteiro a esta tarefa.
A 19 de Dezembro de 1961, o Zé, que era então responsável do sector intelectual de Lisboa, é assassinado pela PIDE em Alcântara. Quando me disseram que tinha sido assassinado, eu julgava que ele estava preso. Tive uma amnésia brusca no momento. Andei pelo bairro do Restelo sem saber onde é que morava. Ainda na redacção do Avante!", redigi e paginei o artigo sobre a morte dele. Não queria que mais ninguém o fizesse. A minha filha mais nova, a Guida, tinha, na altura, cerca de dois anos.
Por essa altura, todo o arquivo do Partido foi capturado, nas mãos dos camaradas que estavam encarregues de fazer esse trabalho. Nos primeiros seis meses de 1962, fui incumbida de ensinar outro camarada a fazer as falsificações.
Posteriormente, fui trabalhar com o Álvaro Cunhal para Moscovo, durante mais de dois anos, quando estávamos a fazer o Rumo à Vitória. Era responsável pelo trabalho de picareta, de pesquisa. Gostei muito de trabalhar com ele e aprendi imenso. Era exigente, e isso obrigou-me a ser muito mais organizada do que já era. Foi uma pessoa fantástica com a minha filha mais nova. Ele era uma pessoa muito sensível e cuidadosa, muito atenta. O Álvaro tinha a filha com ele, a Anita, que era mais nova do que a Guida cerca de um ano. Sempre que viajava, trazia uma lembrança para cada uma. Iguais, só variava a cor, por exemplo. Um dia, trouxe um kilt em tons de vermelho para a Guida, que era morena, e para a Anita, que era loura, um azul. A Guida dava-se muito bem com a Anita e ele nunca queria que a Guida sentisse que lhe faltava o pai. Era uma preocupação constante. Além disso, era muito amigo dela. Isso foi muito importante para mim. Tenho uma grande gratidão por ele. Nem todas as pessoas eram assim, nem todos os camaradas. [Lembro-me de uma situação que reflecte claramente o carinho do Álvaro pela Guida. Quando já me encontrava em Portugal, fui com o Carlos Costa, meu então companheiro, buscar a Guida a Moscovo. Ela tinha lá ficado com a Maria Adelaide Dias Coelho e o Carlos Aboim Inglez, meus cunhados. Quando estávamos a regressar a Portugal, passámos por Paris. Entrámos numa livraria para comprar uns PIF para a Guida e demos de caras com o Álvaro. A Guida não o viu imediatamente, porque estava entretida a escolher os livros. O Álvaro não resistiu e infringiu as regras para despedir-se dela, dando-lhe um grande abraço. Já sabia que não a ia ver tão cedo. Pediu-lhe que não contasse que o tinha visto. Ela nunca falou com ninguém sobre o assunto]
Entretanto, quando o Rumo à Vitória estava mais avançado, parti para a Bucareste, com a Guida, para integrar a redacção da Rádio Portugal Livre, que estava com problemas, transformada num saco de gatos. Esse tipo de trabalho obrigou-me a um sintetismo muito maior.
Em 1963, fui membro da delegação portuguesa ao Congresso Internacional em Moscovo, chefiada pela Maria Lamas. Nessa altura, ela estava exilada em Paris e já era membro da direcção da Federação Democrática Internacional das Mulheres e do Conselho Mundial da Paz. Uma das figuras importante do Congresso foi a Valentina Tereshkova, a primeira mulher cosmonauta e a primeira mulher a ter ido ao espaço.
As comemorações do quinquagésimo aniversário da Revolução de Outubro
Em 1967, fiz a cobertura das comemorações do quinquagésimo aniversário da Revolução de Outubro. Peguei num gravador e lá fui fazer as reportagens para a Rádio Portugal Livre e o Avante!. Em Leningrado (atual São Petersburgo), estava rodeada de jornalistas “da pesada”, do L'Humanité, do Le Monde Ouvrier... mas cheguei a conseguir alguns furos jornalísticos extraordinários.
Durante a visita ao cruzador Aurora, deparei-me com uma fileira de bolcheviques, acompanhados pelo autarca de Leningrado. Perguntei à tradutora [éramos as duas únicas mulheres presentes] qual era aquele que mais interessava entrevistar. Ela respondeu que era o marinheiro que deu ordem para que fossem disparados os canhões contra o Palácio de Inverno, em Novembro de 1917, onde estava o governo provisório. Combinámos que, quando eles se calassem, pegávamos no marinheiro pelos braços e pedíamos-lhe para ir para uma cabine para fazer a entrevista. Assim foi. Estivemos lá fechados um bom tempo. Entretanto, os outros jornalistas começaram a bater na porta, porque também queriam entrevistá-lo. Mas tiveram de esperar até que terminássemos. Foi uma entrevista fantástica. A melhor entrevista dele foi para o Avante! e para a Rádio Portugal Livre!
Fazia três maquetes iguais do Avante!
Em 1968, saí da Rádio e voltei a Portugal, assumindo novamente tarefas na redacção do Avante!. Na altura, a redacção funcionava no Norte, em Vilar de Andorinho, no lugar de Fontelos. Era lá que tínhamos o arquivo. Até 1970, fiquei só com esta tarefa. Fazia três maquetes iguais do Avante!. Uma delas ficava na tipografia do Norte, outra seguia para a tipografia de Lisboa e a terceira ficava guardada na minha casa. Depois dos jornais impressos, não se distinguiam um do outro. Quando o partido tinha condições materiais para tal, mantinha sempre duas tipografias. Caso uma fosse descoberta, a outra podia continuar a trabalhar e a assegurar a publicação do jornal. Assim também era mais fácil escoar metade da quantidade total de jornais de cada uma das tipografias.
Vinha ao Porto, onde ficava na casa da mãe de um camarada que era professor. Geralmente, entregava o Avante! ali na zona da Foz a um tipógrafo. Depois, no dia seguinte, vinha para Lisboa entregar a segunda maquete a outro tipógrafo.
A tipografia da Direcção Regional do Norte do PCP
Em 1970, o Carlos Costa tornou-se meu companheiro e rumei ao Porto. [O Carlos tinha saído da prisão em 1969, mas teve vários meses em casa do irmão porque tinha uma úlcera quase a rebentar]. Passei a ser responsável pela tipografia da Direcção Regional do Norte do PCP e a dirigir o jornal A Terra, mas continuei a colaborar com o Avante!.
O jornal A Terra era uma publicação destinada a camponeses. Escrevia, paginava, e, às vezes, até ajudava a compor. Era um desafio escrever para agricultores com pouca cultura sobre temas que tinham desenvolvimento político. Obrigou-me a ser muito sintética e muito simples, o que exige saber imenso. Tinha algumas reuniões com camponeses. Fizemos uma batalha interessantíssima em relação aos baldios. [A primeira batalha em relação aos baldios foi levantada pelo Partido Comunista nesse jornal] Tinha de falar dos problemas concretos, pelo que tive de estudá-los meticulosamente. [Lembro-me de, logo a seguir ao 25 de Abril, estar numa reunião na zona litoral norte. Tinha um agricultor de um lado e outro agricultor de outro. O encontro teve lugar num salão paroquial, que nos emprestavam para reunirmos com os agricultores. Ia tirando notas sobre a reunião e um dos agricultores referiu-se inúmeras vezes à batata 'rambana'. Escrevi batata 'Arran Banner'. No final da reunião, o agricultor, que tinha estado atento às minhas notas, disse-me: “Bem, safou-se!”. “Porquê?”, respondi-lhe. “Eu estava de olho. Eu disse 'rambana' e você escreveu 'Arran Banner'. Vá lá, sabe alguma coisinha disto!”, explicou].
A tipografia funcionava numa casa clandestina. Os tipógrafos eram a Catarina e o Joaquim Rafael, uns camaradas fantásticos, já com alguma idade, que trabalhavam magnificamente. A tipografia fazia os materiais que se distribuíam naquela zona,. Depois existia outra mais a sul para os operários do sul, que fazia, por exemplo, O Camponês.
A tipografia regional do Norte era uma tipografia muito interessante que esteve a funcionar, na maior parte do tempo, em Rio Tinto. Naquela altura, o Carlos Costa era o responsável político da Direcção Regional do Norte, que abrangia dez distritos, descendo até Coimbra e Aveiro. A tipografia também distribuía O Têxtil para os têxteis da lã da Covilhã, para os têxteis de algodão da linha do Ave, para os têxteis da Senhora da Hora. Eu paginava e escrevia alguns artigos para O Têxtil, mas o responsável do jornal era o camarada que organizava os trabalhadores do setor naquela zona.
A manifestação de 15 de Abril de 1972
O Carlos Costa e a organização do Norte decidiram promover uma manifestação contra a guerra colonial. O Carlos analisou a subida vertiginosa dos custos de vida resultante da guerra colonial e, durante vários meses, promovíamos uma agitação ligando os interesses imediatos diretos da população a todas as incidências que a guerra colonial tinha na vida nacional.
Durante um período de perto de cinco meses, produziram-se naquela tipografia cerca de 260 mil documentos. Eram materiais extremamente simples e esclarecedores, inclusive, já numa fase avançada, tarjetas que foram lançadas durante desafios de futebol.
A mobilização para a manifestação era feita organicamente. Todo este trabalho era desenvolvido pela organização da juventude, pela organização política, e por mulheres, como a Virgínia Moura, que era muita activa no Porto, que faziam um magnífico trabalho de esclarecimento nos mercados. Neste processo conjugaram-se várias linhas orgânicas e várias linhas de actuação. Na tipografia fazíamos um trabalho mais obscuro, nos bastidores, mas que era muito importante.
A manifestação juntou cerca de 40 mil pessoas. Houve feridos, presos, o evento foi noticiado por vários órgãos de comunicação social. Foi a única manifestação de que tenho conhecimento que, por iniciativa do Carlos Costa, foi conduzida a partir de alguns pontos fulcrais mediante a utilização de tecnologia moderna. As mulheres usavam lenços na cabeça para esconder o auricular e sacos onde transportavam os walkie talkies. A manifestação resultou, de facto, de uma organização muito bem articulada ao longo de bastantes meses, num crescendo de informação. Esse é que é o trabalho do Partido, que, de facto, conduziu ao 25 de Abril.
*Margarida Tengarrinha nasceu em Portimão, em 7 de Maio de 1928.
Em 1949 aderiu ao MUD Juvenil na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e fez parte da Direcção Universitária do MUD Juvenil.
Em meados de 1952 aderiu ao Partido Comunista Português.
Fez parte da Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos entre 1952 e 1954 e da Comissão de Mulheres que preparou com Maria Lamas a ida de uma delegação de Mulheres Portuguesas ao Congresso Internacional de Mulheres em Copenhaga em 1953.
Entrou com José Dias Coelho para a clandestinidade, como quadro do PCP, em inícios de 1955. Em 19 de Dezembro de 1961 o seu companheiro José Dias Coelho foi assassinado pela PIDE.
De meados de 1962 a 1964 trabalhou em Moscovo com Álvaro Cunhal.
Em 1964 foi reforçar a redacção da "Rádio Portugal Livre". Em 1968 regressou à clandestinidade em Portugal.
Em 1969 fez da parte da direcção da Organização Regional de Lisboa do PCP, com vista às eleições legislativas que se iam realizar.
Em 1970 passou a ser companheira de Carlos Costa e a trabalhar com ele no apoio ao trabalho de direcção da Organização Regional do Norte do PCP.
Em 1974 passou a ser membro do Comité Central do PCP. Em meados de 1975 regressou a Lisboa e fez parte da Direcção Regional de Lisboa do PCP e do seu Secretariado.
Em 1976 passou a trabalhar directamente com o camarada Álvaro Cunhal, responsável na Comissão Política pelas questões da Agricultura, tendo a seu cargo a Comissão junto do Comité Central para os pequenos e médios agricultores e a responsabilidade do gabinete técnico da agricultura e campesinato (GTACA). Participou na Comissão junto do Comité Central para a Reforma Agrária.
Foi deputada do círculo eleitoral do Algarve do PCP na 3ª e 4ª legislaturas.
É autora dos livros “Samora Barros, pintor do Algarve”, editado pela Região do Turismo do Algarve; “Da Memória do Povo - recolha da tradição oral do concelho de Portimão”, editado pela editora Colibri com o apoio da Câmara Municipal de Portimão; e “Quadros da memória”, editado pela editorial Avante!.
Faz parte da presidência honorária do Conselho Português para a Paz e Cooperação.
Colaborou na homenagem a Maria Lamas realizada pelo MDM em Maio de 2004 na Biblioteca Municipal Almeida Garrett do Porto, com intervenção nesse congresso.
Em 2014 foi-lhe atribuído pela Direcção Regional da Cultura do Algarve o prémio “Maria Veleda”, pelo percurso de vida ligado à cultura, à defesa dos direitos da mulher e à cidadania.