Em 9 de outubro de 2024, Moçambique realizou as suas sétimas eleições gerais (provinciais, legislativas e presidenciais) desde a introdução de um sistema multipartidário em 1992. Segundo os observadores internacionais e nacionais independentes, estas foram as piores eleições de sempre, com fraudes maciças. Existe um sentimento generalizado no país de que o candidato da oposição, Venâncio Mondlane, ganhou as eleições. É certo que não foi a primeira vez que o partido que está no poder há cinquenta anos, a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), se manteve no poder através da fraude e, de uma forma mais geral, através da fusão completa do partido e do Estado, como no tempo do partido único (1975-1992), e através da prática sistemática do clientelismo autoritário (vive-se muito melhor com um cartão da Frelimo do que sem ele ou com um cartão de outro partido!) Mas desta vez, mais do que resignação, houve uma verdadeira revolta contra a falta de respeito pela dignidade do povo que a fraude eleitoral representava.
Em 1975, a Frelimo emergiu com a legitimidade das armas e o facto de ter enfrentado vitoriosamente o poder colonial português. Depois, uma longa guerra civil (1977-1992) estruturou a vida política do país durante muito tempo: mesmo que o conflito tenha tido raízes internas devido à política de modernização autoritária seguida pelo governo, especialmente em relação aos camponeses, o facto é que os guerrilheiros eram apoiados pelo regime vizinho do apartheid. A violência foi terrível, de ambos os lados, mas depois da guerra, sobretudo nas cidades (e sobretudo no Sul), mesmo os descontentes nunca teriam votado na Renamo (Resistência Nacional Moçambicana, ex-guerrilha). No entanto, sobretudo nos centros urbanos, o eleitorado da classe média começou a votar num terceiro partido, o MDM (Movimento Democrático de Moçambique), que surgiu de uma cisão na Renamo e que, muito provavelmente, teria ganho as eleições autárquicas de 2013 em Maputo, a capital – não fosse um corte de energia atempado quando os boletins de voto estavam a ser contados. Venâncio Mondlane, um popular comentador de rádio e televisão na altura, encabeçava a lista. Em 2014, com o recomeço da guerra interna, a Renamo duplicou o número de votos e de deputados. Mas este boom foi interrompido em 2018 (eleições autárquicas) e 2019 (eleições gerais) pela máquina do aparelho de Estado. A fraude ocorreu muito antes das eleições: o recenseamento eleitoral contou mais eleitores do que habitantes na província pró-poder de Gaza, mas muito menos em algumas outras. A intimidação sistemática dos eleitores (através da recolha dos números dos cartões de eleitor) foi altamente eficaz. Os observadores não-Frelimo raramente eram acreditados, enquanto os observadores da Frelimo acorriam aos milhares às assembleias de voto, e assim por diante. Mesmo assim, era evidente que, desta vez, a Renamo tinha efetivamente ganho as eleições em Maputo e na Matola, a outra grande cidade do sul e um bastião histórico da Frelimo. Mas a Renamo não chegou a organizar qualquer protesto, apesar das marchas espontâneas de jovens, jogando a carta do legalismo e aguardando os resultados dos seus apelos às instâncias de recurso totalmente controladas pela Frelimo.
Com o passar dos anos e das gerações, constatámos que, mesmo nas cidades do sul, os eleitores descontentes já não hesitavam em votar na Renamo: as memórias da guerra civil já não eram politicamente estruturantes. Mas a Renamo foi enfraquecida pela morte do seu líder histórico e pela nomeação de um antigo general da guerrilha, Ossufo Momade, como seu novo presidente, que revelou falta de iniciativa e de liderança. Momade impediu Venâncio Mondlane de ser o candidato da Renamo às eleições presidenciais, mas este concorreu como independente, como um candidato de um novo tipo, um civil, um homem da cidade, instruído e também evangélico (movimento religioso em ascensão no país). O eleitorado da Renamo e do MDM mudou esmagadoramente para este novo candidato, tanto mais facilmente quanto os seus votos anteriores não eram tanto a favor destes dois partidos como contra a Frelimo. Mudaram de instrumento.
A campanha de Venâncio Mondlane, embora sem um partido experiente para o apoiar, foi muito mais bem organizada do que a da Renamo anteriormente. Ele montou uma contagem sistemática de votos paralela, com equipamento informático, etc., que foi responsável pela recolha dos milhares de atas assim que as contagens terminavam. Isto permitiu-lhe afirmar que tinha ganho as eleições com 70% dos votos, quando os resultados oficiais lhe davam cerca de 20%. O que é certo é que houve inúmeras fraudes e que a crença popular num resultado totalmente enviesado era generalizada. Venâncio Mondlane convocou imediatamente “desfiles da vitória”, que foram mal tolerados pelas autoridades, que reclamavam a vitória do seu candidato, Daniel Chapo, um apparatchik praticamente desconhecido antes da campanha eleitoral.
O ponto de viragem ocorreu a 19 de outubro, quando dois líderes da campanha de Venâncio Mondlane, Elvino Dias e Paulo Guambe, foram assassinados na rua e no seu carro, muito provavelmente por membros do Grupo de Operações Especiais da Unidade de Intervenção Rápida (polícia militarizada), conhecidos localmente como “esquadrões da morte”. Este foi um aviso para Venâncio Mondlane, que tinha acabado de convocar uma greve geral.
Mas, a partir daí, a situação mudou: das manifestações contra a fraude eleitoral, como acontece frequentemente em vários países africanos, passámos a um processo revolucionário. Houve uma mobilização permanente de pessoas muito pobres, rapazes a liderar as manifestações, raparigas a organizar orações nas ruas, e isto aconteceu em todo o país, incluindo as pequenas cidades do mato de onde chegam as notícias de vez em quando. As classes médias dos “bairros de cimento” não ficaram atrás: embora não participassem nas manifestações, fizeram “casseroladas” das suas janelas durante horas a fio. Uma caraterística muito importante foi a ausência completa de qualquer dimensão étnica: é verdade que a guerra civil nunca foi inter-étnica, mas a Frelimo era mais o partido do sul e das cidades, e a Renamo mais o partido do norte e do mato. O facto de Venâncio Mondlane ser do sul não impediu que houvesse manifestações por todo o lado, incluindo no norte, já afetado pela guerrilha jihadista. E a violência aumenta: as autoridades acusam os manifestantes de saquear lojas, mas a polícia também é vista a saquear... E os disparos de munições reais multiplicam-se. A proclamação oficial dos resultados e o anunciado fracasso dos últimos apelos, a tomada de posse do presidente oficial, Daniel Chapo, a 15 de janeiro de 2025, não enfraqueceram a mobilização.
Venâncio Mondlane, que se considerava agora o “presidente do povo” e o “presidente eleito” e não o “presidente investido”, iniciou uma digressão pelo país, reunindo grandes multidões mesmo nas regiões mais fiéis à Frelimo. Mas houve mais um ponto de viragem no processo revolucionário: as pessoas já não se manifestavam tanto contra a fraude, mas contra o elevado custo de vida – Mondlane tinha, de facto, emitido um “decreto” ordenando a redução do preço do cimento e de outros produtos, e as pessoas mobilizavam-se para o fazer cumprir. As comunidades revoltaram-se contra as empresas internacionais que se instalaram no país a mando do governo, porque as indemnizações por perda de terras e casas, mencionadas nos “contratos” aceites sob grande pressão, não foram respeitadas; os protestos contra a enorme poluição das minas de carvão a céu aberto em Moatize voltaram a ganhar força; a destruição de matas sagradas que tinham sido cortadas para não interferir com a exploração de areias betuminosas deixou de ser tolerada. Mais ou menos todo o Estado da Frelimo foi posto em causa e a revolução em curso deixou de ser simplesmente democrática para passar a ser social.
E o preço já pago é pesado: 353 mortos comprovados, incluindo crianças ou rapazes muito jovens, ou simples transeuntes; sem dúvida, pelo menos 40 mortos entre os quadros locais de Venâncio Mondlane, como os dois jovens assassinados no seu carro, à margem de qualquer manifestação, em Massinga (província de Inhambane), na noite de 8 de março, depois de terem caído numa verdadeira emboscada. Massinga tinha sido, nos dias anteriores, um foco de protestos contra o governo no sul do país. Milhares de pessoas ficaram feridas (dizem 3.000, mas são sobretudo os feridos das grandes cidades), milhares foram presas e muitas desapareceram (incluindo jornalistas).
Este processo revolucionário decorre à margem de todos os partidos da oposição, que aceitaram enviar os seus deputados eleitos para o parlamento, enquanto Mondlane apelava ao boicote. Outro facto: a remobilização dos Naparamas nas províncias de Nampula e Zambézia. Os Naparamas são um fenómeno histórico em Moçambique, são milícias camponesas mágicas (vacinadas contra as balas) armadas com arcos e flechas. No final da guerra civil, em sociedades exauridas, actuaram sobretudo a favor da Frelimo, contra a Renamo. Mas, embora nunca tenham desaparecido completamente, desta vez voltaram a mobilizar-se para servir as populações pro-Mondlane, procurando protegê-las da polícia militarizada. Apesar das suas “vacinas”, são duramente reprimidos pela polícia fortemente armada.
Perante este surto de violência, as autoridades concluíram um acordo de reconciliação com todas as correntes políticas... exceto Mondlane. No mesmo dia em que o acordo foi assinado, 5 de março, uma manifestação em que Mondlane participava em Maputo foi atacada com munições reais pela UIR, matando quatro pessoas e ferindo outras. Ao mesmo tempo, o presidente oficial endureceu o seu discurso. No seu primeiro encontro público após a investidura, em Pemba (norte), a 24 de fevereiro, proclamou que "mesmo se for para jorrarmos sangue para defender esta pátria contra as manifestações, vamos jorrar sangue. Vamos combater o terrorismo, vamos combater os naparamas e vamos combater as manifestações”, equiparando qualquer forma de contestação ao governo ao jihadismo que grassa no norte desde 2017.
É importante compreender que, no contexto de um Estado totalmente fundido com o partido há cinquenta anos, um partido autoritário disposto a tudo para se manter no poder, quando um Presidente diz publicamente “vamos derramar sangue”, já não precisa de dar ordens para matar aos níveis intermédios e locais das suas forças de repressão. Eles já ouviram a ordem. O governo está pronto para um banho de sangue para derrotar a revolução social em curso. Quem é que o vai impedir? O que é que diz a comunidade internacional, o que é que dizem as embaixadas estrangeiras em Maputo?
10 de março de 2025,
Michel Cahen é Diretor emérito de investigação do CNRS, Sciences Po Bordeaux