A Marinha e a neutralidade activa no 25 de Abril

17 de junho 2019 - 20:55

Na publicação de "Uma Fragata no 25 de Abril" de Noémia Louçã: o livro para além da sua importância intrínseca abriu-nos também uma janela sobre a participação dos marinheiros nas operações do 25 de Abril.

porMário Tomé

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Capitão de Fragata Seixas Louçã, Comandante da fragata Gago Coutinho no 25 de Abril de 1974
Capitão de Fragata Seixas Louçã, Comandante da fragata Gago Coutinho no 25 de Abril de 1974

O livro “Uma Fragata no 25 de Abril” da autoria de Noémia Louçã, recentemente publicado, constitui um importante documento que, através de uma exaustiva investigação documental e testemunhal nos põe em contacto vivo com os acontecimentos que tiveram como palco a fragata Gago Coutinho durante as operações militares no Terreiro do Paço, comandadas por Salgueiro Maia.

A fragata, que saía a barra para integrar exercícios da NATO, foi mandada regressar ao Tejo enquanto se desenrolavam as operações de liquidação do regime pelas tropas do Movimento dos Capitães depois designado Movimento das Forças Armadas.

O Comandante do navio, Capitão de Fragata Seixas Louçã, desconhecendo completamente tudo o que se relacionava com o Movimento e as operações militares em curso, foi confrontado com ordens do Estado Maior da Armada (EMA) para se preparar para actuar contra as tropas que ocupavam o Terreiro do Paço o que pressuporia fazer fogo - ordem que não foi confirmada - logo para apenas se preparar para tal, depois para fazer fogo com munição inerte.

Finalmente o imediato transmite-lhe uma ordem vinda de alguém que apenas identifica como sendo do “movimento” para fundear ou sair a barra, à escolha!!!... O imediato não é capaz de explicar ao comandante quem deu a ordem, limita-se a dizer que é do “movimento” o que para o comandante nada significa e ao perguntar o que é isso do movimento o imediato não responde!

Seixas Louçã escusou-se a cumprir as ordens superiores argumentando que isso poria em risco os populares que se aglomeravam na Praça do Comércio e a navegação dos cacilheiros e que o fogo com munição inerte naquelas condições (povo na praça, cacilheiros navegando) também podia causar danos graves além de poder não ser entendido como tal e provocar resposta o que poria em perigo o navio que comandava. Finalmente deu ordem para a colocação das peças na vertical, sinal de que nada havia a recear, e fundeou.

Estas, muito resumidamente, as conclusões do auto de averiguações mandado elaborar pelo Estado Maior da Armada (EMA) aos acontecimentos na Fragata Gago Coutinho no dia 25 de Abril de 1974 e que dá total suporte institucional às conclusões retiradas pela autora da sua investigação e da análise dos factos expostos com toda a exactidão.

Contudo, destes acontecimentos, pelo imediato do navio e de alguns outros oficiais foi divulgada uma versão totalmente avessa à verdade e caluniosa para o comandante do navio que, perante a inércia objectivamente cúmplice das autoridades navais, da Comissão Coordenadora do MFA e mais tarde Conselho da Revolução em esclarecer publicamente as conclusões dos Inquéritos, requereu a passagem à reserva amputando a sua carreira para além dos prejuízos morais infligidos a si, seus familiares e amigos.

Dito isto, como apresentação, permito-me levantar a seguinte questão: por que razão se espalhou a versão que Seixas Louçã estaria disposto a cumprir as ordens do EMA, de confronto com Salgueiro Maia, mas que tal não sucedeu graças à corajosa atitude do imediato e outros oficiais que enfrentaram o comandante e tomaram nas suas mãos a decisão de impedir o cumprimento das ordens superiores?

 

É essa cabala que a comunicação social e alguns militares tornaram pasto da opinião pública escandalizável mas que, infelizmente, também pessoas informadas e respeitáveis aceitaram acriticamente, e o papel central do imediato Caldeira dos Santos, em primeiro lugar, que é ferida de morte pela autora de "Uma fragata no 25 de Abril".

“Uma Fragata no 25 de Abril” permite-nos desmantelar a tramoia e revelar sem sofisma o que é, há mais de quatro décadas, não só escamoteado mas, mais ainda, adulterado

“Uma Fragata no 25 de Abril” como obra de investigação histórica exaustiva quanto ao objecto, directa e límpida sem subterfúgios nem metáforas quanto à forma, expondo-nos toda a documentação existente e relevante, servindo-se de testemunhos que, mesmo quando não concordantes, concorrem no seu confronto para esclarecer os factos, permite-nos desmantelar a tramoia e revelar sem sofisma o que é, há mais de quatro décadas, não só escamoteado mas, mais ainda, adulterado.

Noémia Louçã dá-nos um exemplo de coragem cívica e moral, quando, ao lançar-se a este complexo empreendimento, decide enfrentar toda uma narrativa falsificada consentida pelos que estariam obrigados institucionalmente a pôr-lhe cobro, narrativa essa que se colou parasitariamente aos relatos vivos desse dia “inicial inteiro e limpo”.

Inicial, decerto, mas não tão inteiro e limpo quanto deveria ter sido, porque integrou a cabala sobre o papel do comandante da Fragata Gago Coutinho, Seixas Louçã, durante os acontecimentos no Terreiro do Paço na manhã libertadora do 25 de Abril.

 

Mais: a versão distorcida e caluniosa do que se passou na Gago Coutinho foi sucessiva e sistematicamente publicitada até recentemente, subscrita por oficiais de marinha que dos factos apenas tinham a versão do imediato, apresentado como herói, talvez porque a opção de “neutralidade activa” dos oficiais democratas da Marinha só lhes tivesse oferecido aquela oportunidade para terem também um herói (dois, aliás, se incluirmos o anónimo – que, como sublinha muito bem a autora, se esqueceu que as precauções conspirativas se tomam antes e não durante as revoluções - que deu ordens para o navio sair a barra ou fundear!, e que só mais tarde, tudo resolvido, se identificou) no 25 de Abril, para salvar a honra do convento.

O "caso" do Comandante Seixas Louçã surge como uma articulação de versões entre o contraditório e o vago, todas elas desmentidas pelo relatório exaustivo elaborado a mando do Estado Maior da Armada (EMA) e por testemunhos idóneos já referidos, mas que fizeram caminho durante décadas sem que as mesmas autoridades oficiais que as decretaram insustentáveis e falsas e mesmo da parte da direcção política do MFA e do Conselho da Revolução, tenham posto fim a uma narrativa caluniosa que pôs em causa a idoneidade de um militar impoluto, apesar de todas as solicitações e diligências oficiais da parte deste.

Tratava-se, trata-se, da idoneidade, da dignidade e da honra de um militar com uma folha de serviço sem mácula, reconhecido pelos seus superiores hierárquicos, respeitado pelos seus pares e pelos seus próximos na crítica possível à ditadura dentro da organização militar.

Naquela “Alvorada em Abril” (Otelo) o Comandante Seixas Louçã, militar sabidamente de ideias democráticas e de oposição ao regime fascista, encontrou forma de contornar ordens superiores (EMA) para não causar danos às pessoas e navegação no Tejo e, por arrastamento, às tropas do MFA, foi brutalmente penalizado pelas próprias instâncias do MFA.

Tal é expressamente confirmado pelo próprio Conselho Disciplinar da Armada perante as conclusões do inquérito elaborado pelo Almirante Santos Silva por depoimentos de altas figuras da Armada desde o Almirante Santos Silva mas também do 25 de Abril como Rosa Coutinho e Fisher Lopes Pires, todos estes documentos publicados em anexo do livro em apreço, e também de Otelo Saraiva de Carvalho no seu belo livro “Alvorada em Abril”.

Só podemos concluir que houve razões corporativas e políticas para o tratamento injusto, sectário, para não dizer partidário deste caso se nos lembrarmos, entretanto, que Jaime Neves naquela mesma Alvorada não cumpriu a missão de prender os comandos do RC7 e de Lanceiros 2 o que poderia ter provocado grandes dificuldades a Salgueiro Maia quando contra ele saíram as tropas e carros de combate daquelas unidades; que se recusou a ir assaltar a PIDE e em perda de causa foi enviado contra os basbaques da Legião.

Contudo nunca foi confrontado publicamente, foi sistemática e silenciosamente ilibado desses gravíssimos factos e, pelo contrário, incensado durante todo o PREC em que teve sempre papel lastimável contra o movimento popular e, finalmente, transformado em herói do 25 de Novembro num confronto provocado pelo Conselho da Revolução e onde teria sido liquidado em Monsanto, no EMFA, pelas tropas paraquedistas fortemente armadas e comandadas por Carmo Vicente que impediu o confronto real, da mesma forma que no RPM, onde mesmo assim houve três mortos.

Mas seria importante, como referi acima, deitar um olhar sobre “A Marinha no 25 de Abril”, aproveitando o título do excelente e esclarecedor livro de Noémia Louçã.

A posição dos oficiais democratas da Marinha numa das últimas reuniões preparatórias do 25 de Abril, onde participaram como observadores, foi a de “Neutralidade activa”. Desconfiariam do papel de Spínola no processo, tinham uma já antiga e consolidada organização no seio da Armada influenciada pela resistência clandestina com destaque para o PCP e terão considerado não arriscar todo um trabalho complexo e relevante na luta anti-fascista numa acção que, supostamente, consideravam ter poucas probabilidades de sucesso.

Posição que se compreende do ponto de vista estritamente racional alheio a considerações políticas que seriam, deviam ser, a base da organização dos democratas na Armada

Por isso suscita necessariamente interrogações tendo em conta a importância extrema do que estava em causa: perante a possibilidade real e evidente de derrubar o fascismo e acabar com a guerra colonial, levada a cabo pelos militares sem os quais a guerra não poderia continuar, sem esquecer que estava perdida, o regime desmoralizado e num beco sem saída, uma organização daquela envergadura fica de lado numa posição de “neutralidade activa”?

Para que teriam então servido tantos anos de acção clandestina, semi- clandestina e mesmo aberta nas condições possíveis face à repressão militar e política de que a associação de oficiais da armada era um exemplo?

Com todo o respeito pelo papel importante do ponto de vista institucional e político mas sempre relativamente cauteloso durante o PREC, de oficiais sargentos e praças da Armada, não se compreende.

Os oficiais de marinha que assumiram perante a coordenadora do MFA durante reuniões preparatórias da acção a posição de “neutralidade activa” comportaram-se exactamente da mesma forma que o imediato da Gago Coutinho: se sair bem nós marinheiros antifascistas cá estamos; se o movimento for derrotado não foi nada connosco.

O comandante Seixas Louçã nunca foi contactado nem informado nem confrontado nem intimado em nome do MFA pelo imediato (que conheceria pelos vistos a opção de “neutralidade activa”) para se definir face ao Movimento, ao contrário do que fizeram os capitães do exército em todas as unidades que saíram no 25 de Abril: meu comandante está a favor ou contra? Está a favor, óptimo, contamos consigo; está contra ou não sabe o que quer (“neutralidade activa” ?), fica detido até nova ordem.

Os objectivos do Movimento eram de tal forma importantes e decisivos para o povo português – derrubar o fascismo e acabar com a guerra colonial – que qualquer atitude que não fosse a de empenhamento e entrega totais não pode ser classificada de outra forma que a de se tratar de oportunismo e, mesmo em alguns casos, como o do imediato Caldeira dos Santos, de mera pusilanimidade de um carácter incapaz de enfrentar a reacção, fosse ela qual fosse, do seu comandante, o Capitão de Fragata Seixas Louçã.

O livro de Noémia Louçã, a quem saúdo respeitosamente, para além da sua importância intrínseca abriu-nos também uma janela sobre a participação dos marinheiros nas operações do 25 de Abril, de quem nele participou ou de quem nele se integrou passada a necessidade de “neutralidade activa”; claro que sem pôr em causa a dedicação e o trabalho na implantação da democracia e, nomeadamente, na gestão política, institucional e ou burocrática do processo.

“Uma Fragata no 25 de Abril” conta ainda com um exemplar trabalho de análise do historiador António Louçã, filho do falecido Comandante Seixas Louçã, pelo cotejo, interpretação e confrontação dos factos, opiniões e testemunhos, baseado na investigação da autora.

Contém, também, a transcrição completa dos documentos a que faz referência: Relatório das averiguações efectuadas, carta do Almirante Rosa Coutinho (membro da Junta de Salvação Nacional) e a carta em que o Brigadeiro Fisher Lopes Pires (membro do comando das operações e da Comissão Coordenadora do MFA) lamenta ter dado ouvidos à trapaça e rectifica, com desenvolvida argumentação, a sua posição elogiando sem reticências o comportamento do Capitão de Fragata Seixas Louçã.

Um livro a não perder por quem tem apreço pela verdade.

Mário Tomé
Sobre o/a autor(a)

Mário Tomé

Coronel na reforma. Militar de Abril. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990