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Luís Delgado, o comissário político que levou mais um grupo de imprensa à falência

09 de dezembro 2024 - 10:34

Veterano propagandista das mentiras que levaram à invasão do Iraque, foi comissário político de Barroso e Santana em cargos nos media. Desde que ficou com as revistas que pesavam no grupo de Balsemão, acumulou dívidas de milhões ao fisco e à Segurança Social. Luís Delgado é o autor da mais recente crise nos media portugueses e foi condenado com pena suspensa.

porLuís Branco

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Luís Delgado

Luís Delgado acaba de ser  afastado da administração da empresa que criou em 2018 para adquirir quase todas as publicações em papel do grupo Impresa, ficando este apenas com o Expresso e o Blitz. Esta quarta-feira, quando os trabalhadores da Trust in News se manifestaram em Lisboa pela sobrevivência dos seus órgãos de comunicação social, a empresa foi declarada insolvente pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste e foi nomeado um administrador de insolvência, a quem serão agora entregues todos os bens e elementos de contabilidade da empresa. Além de um representante dos trabalhadores, a Comissão de Credores é composta pelo Instituto da Segurança Social e a Autoridade Tributária enquanto principais credores, mas também a Impresa, a quem a empresa de Delgado não pagou tudo o que tinha sido acordado pela venda dos títulos, e o Novo Banco, que terá financiado este negócio.

Com a empresa em situação de colapso financeiro e a acumular dívidas e os trabalhadores com subsídios e salários em atraso, a declaração de insolvência e a chegada de um novo administrador pode permitir abrir o processo de venda dos títulos “limpos” das dívidas. Para já, corre o prazo de 15 dias para contestação da insolvência e ficou marcada para 29 de janeiro uma assembleia de credores que apreciará um relatório do novo administrador.

Luís Delgado recebido em audiência por Marcelo Rebelo de Sousa em maio de 2020.
Luís Delgado recebido em Belém por Marcelo Rebelo de Sousa em maio de 2020, quando as dívidas ao Estado já se acumulavam. Foto Miguel Figueiredo Lopes/Presidência da República

As contas da Trust in News e a gestão de Luís Delgado foram escrutinadas ao longo do último ano pelo jornal Página Um, que divulgou também no final de outubro a confirmação pelo Tribunal da Relação de Lisboa da condenação de Luís Delgado e outros dois administradores da empresa a dois anos e um mês de prisão pelo crime de abuso de confiança fiscal agravado, numa pena suspensa por cinco anos. Mas este processo diz respeito às dívidas ao fisco contraídas apenas no primeiro ano de atividade da Trust in News - 2018 -, cerca de 828 mil euros. Segundo o Página Um, citando os números do Processo Especial de Revitalização (PER) iniciado após a condenação em primeira instância, o valor acumulado das dívidas ao fisco é hoje dez vezes maior (cerca de 8 milhões de euros), ainda assim inferior ao valor das contribuições que ficaram por pagar à Segurança Social (cerca de 9 milhões). Estas dívidas ao Estado representam pouco mais de metade dos créditos reconhecidos. A confirmação da condenação, bem como o aumento das dívidas ao Estado durante a execução do PER, terão sido decisivos para que Delgado visse recusada a intenção de se manter à frente da administração durante o processo de insolvência.

Negócio com Balsemão surpreendeu, o desfecho nem por isso

Num perfil de Luís Delgado publicado em junho na revista Sábado, revela-se que o interesse do antigo jornalista pela aquisição à Impresa de 12 revistas começou em 2017, numa conversa de corredor na SIC com Ricardo Costa acerca das dificuldades financeiras do grupo de Pinto Balsemão, com o recém-anunciado administrador do grupo a confirmar a intenção de venda. O negócio concretizou-se passados três meses, no início de 2018 por 10,2 milhões de euros. Nascia assim um dos maiores grupos de comunicação social portugueses, inteiramente nas mãos de uma empresa que tem Delgado como único sócio e capital social de apenas 10 mil euros.

A Impresa desfazia-se de um ramo de negócio que acumulava prejuízos e por um valor que os próprios analistas do BPI - à época, credores de metade da dívida da Impresa e defensores da venda - consideraram “muito acima das nossas expectativas”. À Sábado, fonte conhecedora do negócio disse que o valor oferecido por Luís Delgado era mais do triplo das restantes propostas recebidas por Balsemão.

Luís Delgado e Francisco Pedro Balsemão selam o acordo de venda das revistas da Impresa à Trust in News. Foto: DR
Luís Delgado e Francisco Pedro Balsemão selam o acordo de venda das revistas da Impresa à Trust in News no início de 2018. Foto: DR

A Trust in News ficou assim com os títulos e também com os trabalhadores daquelas publicações, o que a Sábado diz ser algo “invulgar” num negócio feito sob pressão. Aos prejuízos crónicos somaram-se a pandemia e a guerra na Ucrânia com o aumento dos preços das matérias-primas. As vendas passaram de 17,5 milhões de euros em 2017 para menos de 12 milhões em 2022. Mas Delgado resistiu sempre às propostas de redução do número de trabalhadores. A alternativa parece ter sido deixar de pagar impostos e as contribuições patronais para a Segurança Social.

Se o plano inicial era pagar à Impresa os 10,2 milhões em dois anos e meio com as receitas criadas pelas revistas, logo se percebeu ser tarefa impossível, com as contas a fecharem com poucos milhares de euros de saldo positivo. Segundo o Página Um, nas contas da Impresa em 2020, a Trust in News tinha em dívida 4,43 milhões, baixando apenas 110 mil euros em 2021 e 227 mil euros em 2022, aquém do acordado no plano de reestruturação que prolongou o prazo de pagamento até 2036 em prestações mensais de 25 mil euros. Nas contas de 2023, a Impresa assumiu que já não recuperará 2,5 milhões dessa dívida. O mesmo jornal digital afirma que a grande fatia paga só o terá sido graças a um empréstimo do Novo Banco, que surge agora na lista dos principais credores, reclamando mais de três milhões de euros.

Com esta enorme dívida por pagar, seria de esperar que as relações entre a Impresa e Delgado azedassem. Mas o gestor continuou nos últimos anos a marcar presença nos estúdios da SIC para fazer comentário político, presume-se que remunerado pela empresa que ficou a “arder” com milhões de euros no negócio de 2018. Por outro lado, com as dívidas ao Estado a acumularem-se, também seria de esperar que as publicações da Trust in News fossem impedidas de fazer contratos com o Estado, de que algumas delas (como o Jornal de Letras) dependem para compor receitas de vendas e assinaturas. Mas Luís Delgado contornou essa obrigação legal facilmente: criou em 2020 uma nova empresa, com cadastro fiscal limpo e capital social de apenas cem euros, para figurar nesses contratos com ministérios, autarquias e outros organismos públicos. À data de hoje, a TIN Publicidade e Eventos Lda. já faturou mais de um milhão de euros em 37 contratos com organismos públicos. No entanto, em abril deste ano, a empresa unipessoal com dívidas ao fisco assinou um contrato para receber até 50 mil euros em publicidade com a estatal Santa Casa da Misericórdia, que aceitou assim contratar uma empresa em falta com as respetivas obrigações fiscais e contributivas.

De jornalista-comentador a comissário político

Nascido em Angola, Luís Delgado vem para Portugal antes da descolonização e torna-se jornalista no Diário de Notícias no início dos anos 1980. É ali que faz a sua carreira ao longo de quase duas décadas, apenas interrompida por duas curtas passagens pela revista Sábado e pelo jornal O Liberal. O percurso jornalístico de Delgado passaria despercebido do grande público, não fosse a oportunidade que a única estação televisiva então existente lhe deu para comentar política internacional, tornando-se um dos pioneiros desse ofício que ainda hoje exerce. A primeira guerra do Golfo deu-lhe mais projeção e, no início da década de 1990, Mário Bettencourt Resendes dá-lhe funções na equipa que dirigia o Diário de Notícias, mantendo a presença habitual nos telejornais da RTP nos anos do cavaquismo, também comentando a política nacional.

Luís Delgado em vários espaços de comentário nos noticiários da RTP na primeira metade da década de 1990. Imagens RTP
Luís Delgado em vários espaços de comentário nos noticiários da RTP na primeira metade da década de 1990. Imagens RTP

Conta a Sábado que foi depois de ir aos Estados Unidos cobrir as eleições de 1996 que traz a ideia de criar em Portugal o primeiro jornal digital de âmbito nacional. Com o financiamento do Grupo José de Mello e de sócios como o consultor de comunicação Líbano Monteiro, funda o Diário Digital em 1999. Mas o rebentar da “bolha da internet” no ano seguinte obrigou o jornal a despedir boa parte da redação e tornou mais difícil o objetivo de Delgado - conseguir “bater a Lusa” nas notícias de última hora. O aumento da concorrência com as versões online dos outros jornais e a crise de 2008 nunca permitiram que o projeto ganhasse dimensão, fechando definitivamente as portas em 2017.

“Se não os podes vencer, junta-te a eles”, podia ter pensado Luís Delgado quando foi escolhido pelo Governo de Durão Barroso e Paulo Portas para dirigir a agência Lusa. A nomeação passou por um debate agitado em fevereiro de 2003 na comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. A animar a sessão esteve o fundador do Público e então deputado do PS, Vicente Jorge Silva, que, para provar que a escolha era um "erro de casting" por falta de “requisitos deontológicos e profissionais necessários para um cargo de tão elevada responsabilidade”, resolveu ler com a sua entoação inconfundível alguns excertos das crónicas de Delgado no Diário de Notícias, provocando gargalhadas na maioria dos deputados presentes. Concluía Vicente: “Ele não esconde que é um comissário político!”, antes de qualificar Luís Delgado como um "profissional de relações públicas" que dava "demasiada graxa" a "todo o mundo que interessa".

Em defesa de Delgado veio o atual ministro da Defesa e então deputado do CDS. "Sinceramente, não percebo as razões de tanta celeuma", dizia Nuno Melo. “Será por ele ser competente? Será por ele escrever bem? Será por ele não bater no centro e na direita?”, questionava, saudando essa “grande escolha” do Governo da direita para a Lusa. Em defesa da escolha de Luís Delgado, o ministro Morais Sarmento acusou Vicente Jorge Silva de pertencer “a uma geração que pressupõe que para se ser jornalista tem de se ser da esquerda”, dando “graças a Deus” por ver que “as novas gerações de jornalistas já não estão marcadas pelo complexo histórico da esquerda". Na mesma sessão, o deputado bloquista João Teixeira Lopes questionava o ministro sobre o conflito de interesses da presença de Delgado na administração da Lusa e do Diário Digital, do qual também era acionista.

Entre a Lusa e a Lusomundo, pela mão de Santana

A nomeação avançou e Luís Delgado nunca mais perdeu o estatuto de “comissário político”. “Tenho de aceitar que me façam comentários desagradáveis. Não sou, fui ou serei nenhum comissário político” - diria o comentador em 2005 - “sempre estive – embora sem nenhum tipo de militância – colocado no centro-direita. É uma posição de há vinte anos que manterei”. Sabe-se que na altura da nomeação discutiu com o Governo a questão do conflito de interesses e que Morais Sarmento permitiu que permanecesse como administrador do Diário Digital enquanto dirigia a agência Lusa.

A chegada à administração executiva da agência Lusa coincide com a invasão do Iraque pelo exército dos EUA e com a cimeira das Lajes, que abriu a porta a uma guerra justificada com a mentira das armas de destruição massiva na posse de Saddam Hussein. Quando a opinião pública internacional se mobilizava nas ruas, Luís Delgado era dos comentadores que mais insistia na narrativa do Pentágono e dos neocons que ditavam a doutrina à presidência de George W. Bush, apoiando a guerra e a ocupação do Iraque a partir dos espaços de comentário televisivo e das colunas de opinião. Três anos após a invasão, disse que “mais do que as armas de destruição maciça, interessava acabar com um regime desumano e perigoso, que não podia ser vigiado para toda a vida. Por isso, a longo prazo, foi a decisão certa”. O seguidismo de Delgado chegava a incomodar outros embaixadores dos falcões estadunidenses em Portugal, como Pacheco Pereira. A propósito da defesa por Luís Delgado da divulgação pelo exército dos EUA de imagens humilhantes de Saddam Hussein em cativeiro, Pacheco escreveu que “são muitas vezes os defensores da intervenção americana, que, ao se comportarem como propagandistas, pior fazem à causa que defendem”.

Luís Delgado em 2003 com os diretores de informação da SIC (Alcides Vieira( e da RTP (José Rodrigues dos Santos)após o acordo para o lançamento da Lusa TV.
Luís Delgado em dezembro de 2003 com os diretores de informação da SIC (Alcides Vieira) e da RTP (José Rodrigues dos Santos) após o acordo para o lançamento da Lusa TV. Foto Inácio Rosa/Lusa

À defesa das bombas sobre o Iraque o comentador somava a defesa militante do governo da direita e não escondia a admiração pelo amigo Pedro Santana Lopes, indigitado primeiro-ministro após a ida para Bruxelas de Durão Barroso a meio do mandato.

As interferências do Governo nos media marcaram os meses do mandato de Santana, com as pressões para silenciar os comentários de Marcelo Rebelo de Sousa na TVI a serem o exemplo mais flagrante. No seu livro de memórias, o então diretor do Expresso, José António Saraiva, recorda um almoço em outubro de 2004 com Santana Lopes em que, questionado sobre a necessidade de acrescentar agitação ao setor dos media, o então primeiro-ministro terá respondido que “o Delgado entra-me por aqui dentro a dizer que é preciso mudar isto e aquilo... E o Morais Sarmento está em guerra com a RTP. O que é que eu posso fazer?”.

Por esses dias, Luís Delgado estava já de saída da Lusa após ser nomeado para substituir Henrique Granadeiro na liderança do ramo da Portugal Telecom, a Lusomundo Media, que detinha a TSF, o Jornal de Noticias, Diário de Noticias, 24 Horas, Tal e Qual e o Ocasião, além de títulos regionais. No Parlamento, Arons de Carvalho dizia que, à falta de “assinalável currículo como gestor”, Delgado tem-se notabilizado pela “voluntariosa e pertinaz defesa” de Santana Lopes, enquanto Francisco Louçã fazia o balanço do resultado da política para os media do Governo: “a concentração cresceu, a RTP foi atacada, um assessor do Governo toma conta do Diário de Notícias, outro da Lusa e, agora, o inevitável Luís Delgado é nomeado comissário político para a PT/Lusomundo“. Luís Delgado passou menos de um ano no cargo e mais de metade em gestão corrente, após a decisão da venda da Lusomundo à Controlinveste de Joaquim Oliveira. Mas na análise de Eduardo Cintra Torres, a entrada do gestor teve impacto nas manchetes do tablóide do grupo, que deram tréguas a Santana nos curtos meses entre a chegada de Luís Delgado à Lusomundo e a dissolução do Parlamento.

Numa das suas crónicas no Público, intitulada “O estranho caso de Luís Delgado”, escrita após a vitória de Sócrates sobre Santana em 2005, Eduardo Prado Coelho resumia a omnipresença do comentador nos media: “A gente acordava, ligava o rádio e lá estava Luís Delgado. A gente comprava o jornal e lá tinha a crónica de Luís Delgado. A gente ouvia um debate ao fim da tarde, e lá tínhamos, incansável e insone, a voz de Luís Delgado. A gente esperava um confronto no noticiário na televisão e Luís Delgado já tinha chegado. A gente adormecia, exausta, com a voz incessante de Luís Delgado, certa de que no dia seguinte lá teríamos a presença de Luís Delgado”.

Passados quase 20 anos desta crónica, o aumento da oferta de canais de informação por cabo que dedicam espaço ao comentário político ajudou a esbater este dom da ubiquidade que Prado Coelho apontava a Luís Delgado, que continuou a ser presença habitual nos ecrãs independentemente da cor política dos governos. E também na imprensa escrita com as suas “Linhas Direitas”, agora na Visão, crónicas onde ultimamente tem apoiado o governo sionista, ora acusando o procurador do Tribunal Penal Internacional de “perder a cabeça”, ora tecendo elogios ao “brilhantismo” e “audácia” da “proeza inimaginável” dos israelitas que fizeram explodir os pagers destinados ao Hezbollah, ferindo milhares de libaneses. E, claro, a reclamar mais apoios do novo Governo à comunicação social, pois “era o que faltava preocuparem-se apenas com a RTP, RDP e Lusa”.

Luís Branco
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Luís Branco

Jornalista