Intendente acolhe no sábado arraial multicultural contra racismo e a xenofobia

01 de fevereiro 2024 - 16:40

Neonazis recusam acatar proibição da Câmara de Lisboa e mantêm mobilização. Organização internacional alerta para carácter violento dos seus membros, entre os quais apoiantes do Chega. Coletivos e associações antirracistas convidam a celebrar a diversidade e a pluralidade contra o racismo e preconceito.

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O Largo do Intendente, em Lisboa, será palco este sábado, a partir das 16h, de um arraial multicultural para para mostrar que “as pessoas não se reveem no racismo e na xenofobia” dos grupos de extrema-direita que se mobilizaram para promover uma iniciativa “Contra a islamização da Europa” nesse mesmo dia. No espaço existirá uma "oficina de cartazes, música ao vivo, comes e bebes, animação, resistência e luta".

“Vamos fazer uma concentração cultural, para celebrar a diversidade e a pluralidade contra o racismo e preconceito”, explicou Vicente, da organização Rede de Apoio Mútuo e porta-voz dos promotores.

Os diversos coletivos de migrantes e organizações da sociedade civil que promovem o arraial “querem mostrar que a população ali da zona não está sozinha”, afirmou o ativista.

O dirigente da Rede de Apoio Mútuo acrescentou que o objetivo foi criar um “safe space” para quem condena o racismo e a xenofobia, contra os “gangues neonazis” que ameaçam “sair por aí e impor a sua ideologia”.

“É necessário dizer ‘Basta!’ a esta onda racista que cada dia ganha mais espaço no discurso público europeu e tenta agora infiltrar-se no território português”, escrevem os promotores do arraial nas redes sociais.

“Os partidos políticos de extrema-direita sentem-se cada vez mais à vontade, baseando-se em mentiras e desinformações para ganhar apoio, enquanto são legitimados e tolerados pelos partidos tradicionais em nome do ‘jogo político’”, frisa a organização.

De acordo com os promotores do arraial, a iniciativa da extrema-direita visa unicamente "aterrozizar” os imigrantes do Indostão e “propagar o ódio e o preconceito na sociedade portuguesa”.

“Nos últimos meses vimos diversas situações de agressão e violência tendo como alvo a população do Sul Asiático” e “mais uma vez, corre-se o risco de pessoas migrantes serem abandonadas à sua própria sorte, depois de terem escolhido Portugal como país de residência”, escrevem ainda.

Organização internacional alerta para possibilidade de violência

Uma investigação do Projeto Global Contra o Ódio e o Extremismo (GPAHE) alerta que “há razões para preocupação” com a marcha organizada pelo grupo neonazi, e que a mesma “pode descambar em violência”.

A organização não governamental (ONG) que monitoriza os grupos de extrema-direita pelo mundo, aponta que o grupo organizador da marcha é composto por “neonazis, skinheads” e tem “laços históricos com o violento grupo Portuguese Hammerskins”, que viu vários dos seus membros condenados com pena de prisão em junho de 2022.

A investigação conclui ainda que existem no seio do grupo apoiantes e ex-apoiantes do Chega, o partido liderado por André Ventura. Como exemplo, a ONG faz referência a “Rui Roque, conhecido por propor uma moção numa convenção do Chega para remover o útero de mulheres que fizeram um aborto, e que recentemente foi expulso do partido”. Outro dos elementos mencionados é António, ex-membro dos Proud Boys, grupo responsável pela invasão do Capitólio nos Estados Unidos, e que é membro do Chega. António “mostra orgulhosamente nas redes sociais a sua tatuagem dos Proud Boys e os polos amarelos e pretos”, explicam Wendy Via e Heidi Beirich do GPAHE.

O GPAHE assinala ainda a existência de algumas mulheres, que também partilham os símbolos da extrema-direita e do Chega nas redes sociais.

Neonazis recusam-se a acatar proibição da Câmara de Lisboa

Em janeiro, os media portugueses noticiaram a notícia de que o “Grupo 1143”, criado por Mário Machado em outubro de 2023, e que recupera o nome do extinto grupo de apoio ao Sporting, que, em 2001, o neonazi ajudara a fundar, planeava uma marcha “Contra a Islamização da Europa”. A iniciativa, de cunho profundamente racista e islamofóbico, foi agendada para 3 de fevereiro. A marcha, com características idênticas às das ações dos grupos nazis e dos Ku Klux Klan, mediante a utilização de tochas, fogo e cartazes desumanizantes, foi marcada para uma zona conhecida por abrigar uma expressiva população oriunda do Sul Asiático e de contextos islâmicos, passando pela Rua do Benformoso, Martim Moniz e Rua da Palma. Online, os promotores do evento arrecadaram dinheiro para “comprar 40 fogos de artifício” e “cinco garrafas de parafina líquida”, bem como “40 sinalizadores marítimos verdes e vermelhos”.

O ex-presidiário Mário Machado, condenado a uma pena de quatro anos e três meses de prisão por envolvimento nos espancamentos no Bairro Alto na noite do assassinato do cabo-verdiano Alcindo Monteiro, já tinha revelado em dezembro do ano passado a intenção de realizar uma manifestação “contra a islamização da Europa”, seguindo exemplos de países como Bélgica, Países Baixos, Polónia ou Reino Unido.  “Vamos demonstrar aos traidores que nos governam desde o golpe de 1974 que existem portugueses que não querem alterar o seu modus vivendi, nem estão dispostos a sacrificarem mais mulheres no altar do multiculturalismo”, escreveu nas suas redes sociais.

Mas esta nova ação de incitamento ao ódio, que se emparelha com o discurso antimuçulmano introduzido pelo Chega, foi proibida, a 26 de janeiro, pela Câmara Municipal de Lisboa com base num parecer negativo da PSP, que considera existir um elevado risco de perturbação grave e efetiva da ordem e da tranquilidade pública.

Ainda assim, os neonazis recusam-se a acatar a proibição da Câmara de Lisboa e prometem marchar noutros pontos da cidade à mesma hora, o que levou o presidente da Junta de Santa Maria Maior a deixar um apelo, não às autoridades para que garantam a segurança de quem vive e trabalha em Portugal, mas aos residentes, para não reagirem a provocações.

"Aquilo que eu recomendo às pessoas é prudência, porque o que os extremismos querem é cenas de confronto e de confusão na via pública", afirmou Miguel Coelho. “Passa pelas pessoas, nesse dia, não reagirem a provocações, se necessário estarem dentro das suas casas, se ela acontecer. É uma manifestação de ódio e quando há manifestações de ódio nunca se sabe o que pode acontecer”, continuou.

Cumprir a Constituição da República e o Código Penal

A 24 de janeiro, ainda antes da decisão ser tomada, a Câmara de Lisboa aprovou, com a abstenção do Chega, um voto de repúdio sobre esta iniciativa, condenando "toda e qualquer manifestação de caráter violento, racista ou xenófobo na cidade". No texto é enfatizado que a marcha se enquadra no crime de ódio, previsto no Código Penal.

Um dia antes, o Bloco tinha emitido um comunicado em que afirmava que a marcha constituía "um ato de ódio e intimidação sobre as pessoas que residem e trabalham nesta zona, nomeadamente sobre comerciantes e as comunidades imigrantes".

"Esta iniciativa não pode ser dissociada dos recorrentes episódios de violência racista e xenófoba, como os casos de agressões ocorridos em Olhão, no Alentejo e no Porto ou o assassinato racista nas Praias do Sado, em Setúbal, em novembro passado", lê-se na nota.

"Perante isso, torna-se necessária a intervenção das autoridades competentes. Cabe ao Ministério da Administração Interna, à PSP e ao município de Lisboa garantir a legalidade e proteger os cidadãos, tomando as medidas para impedir esta ação", escreve o Bloco, associando-se "ao repto lançado por um conjunto de cidadãos às autoridades e poderes públicos".

Esse repto foi lançado três dias antes por um conjunto de organizações anti-racistas, que pôs a circular uma carta aberta a exortar as entidades com responsabilidades a tomar medidas para que seja cumprido o artigo 13.º da Constituição, o princípio da igualdade, e acionados os mecanismos processuais para que se aplique o artigo 240.º do Código Penal, relativo à discriminação e incitamento ao ódio e à violência. A missiva, intitulada “Contra o Racismo e a Xenofobia, recusamos o silêncio”, reuniu 213 subscrições de organizações e 8271 de signatários individuais, das mais variadas áreas profissionais, que decidiram, deste modo, dar um sinal inequívoco e público de que atos e organizações sociais, políticas e partidárias racistas e xenófobas são inaceitáveis e que se solidarizam com as vítimas de todos os ataques de ódio em Portugal.

Entretanto, na sexta-feira passada, o SOS Racismo apresentou uma queixa-crime ao Ministério Público contra os responsáveis pela convocatória da marcha, defendendo que a mesma serve “unicamente para expressar discursos de ódio, generalizações, preconceitos e afirmações ostensivamente falsas, injuriosas e difamatórias sobre um conjunto de pessoas, em função apenas da sua nacionalidade, origem, religião e cultura, e apelam, diretamente, à violência dirigida às comunidades imigrantes que residem ou trabalham em Portugal”. Nesse sentido, o SOS Racismo considera que os responsáveis por esta convocatória cometeram os crimes de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, previstos no Código Penal, e apela ao Ministério Público que proceda “às diligências necessárias para que os mesmos sejam levados a julgamento”. A associação apela ainda às autoridades competentes, designadamente Ministério da Administração Interna, Ministério Público e Câmara Municipal de Lisboa que “não permitam que tal marcha venha a ocorrer“, sublinhando que todas estas entidades têm “atribuições e competências específicas nestas matérias, cabendo-lhes defender os direitos fundamentais das pessoas visadas nestes atos de violência”.

Marcha contra alegada "islamização" só pode ser resultado de "ignorância" histórica

A Lusa contactou o Museu de Lisboa, que realiza vários percursos guiados pela capital, um dos quais chamado "Lisboa Muçulmana", e falou com o historiador Paulo Almeida Fernandes e Joana Olivença.

Dentro do Castelo de São Jorge, junto à área arqueológica onde se descobriram ruínas de duas casas islâmicas do período final da presença muçulmana em Lisboa, Paulo Almeida Fernandes evocou os portugueses enquanto "herdeiros de civilizações milenares, incluindo a muçulmana, que tantos vestígios deixou".

Para o historiador, a marcha convocada pela extrema-direita é "um sinal dos tempos”, de intolerância, polarização e mediatização, que resulta de "uma grande ignorância em relação à história e ao legado" islâmico.

"A presença muçulmana em Lisboa tem vários séculos" e "é uma constante", assinalou, avançando que vai além dos vestígios arqueológicos e entra no quotidiano, no azeite que pomos na mesa ou no olá que dizemos diariamente.

"Somos herdeiros de uma cultura islâmica muito forte", vincou.

Paulo Almeida Fernandes entende que “ganharíamos mais em conhecer a história, sobretudo a história de Lisboa". O historiador lembrou que, aquando da conquista de 1147, Afonso Henriques e os cristãos quiseram que os muçulmanos "ficassem na cidade", até porque precisavam deles para o povoamento.

"Não por acaso, o primeiro foral que é dado à cidade é precisamente à comunidade moura", apontou, realçando que os muçulmanos permanecem em Lisboa até ao édito de conversão forçada ou expulsão, em 1496.

Joana Olivença reiterou a ideia de que "nós também somos muçulmanos", não havendo é “conhecimento ou vontade de reconhecer esta herança".