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“Governo optou pela solução pior para as grávidas”

Enfermeiro Especialista de Saúde Materna e Obstetrícia, Luís Mós fala sobre os cuidados materno-infantis e a importância da manifestação “O povo merece +SNS” este sábado, às 15h, no Largo de Camões, em Lisboa.
Luís Mós, Enfermeiro Especialista de Saúde Materna e Obstetrícia.

Recentemente, a Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) anunciou um plano, a ser aplicado entre junho e setembro, que prevê que apenas 27 das 41 maternidades se mantêm em pleno funcionamento. Na região de Lisboa e Vale do Tejo são apenas três os blocos de parto nesta situação: Abrantes, Cascais e Maternidade Alfredo da Costa. Nove maternidades do país funcionarão com dias de encerramento agendados e em rotatividade com outras unidades. Por sua vez, duas unidades, de Caldas da Rainha e do Santa Maria, encerrarão por completo a partir de 1 de junho e 1 de agosto, respetivamente. Ao mesmo tempo, o SNS passará a encaminhar grávidas para três unidades privadas na Região de Lisboa e Vale do Tejo.

Nos últimos dois meses, cerca de duas mil pessoas, profissionais e utentes do SNS com diversos percursos cívicos, reuniram-se em torno do Manifesto Pelo Direito à Saúde, Mais SNS. No documento, os subscritores alertam que “Portugal não suporta mais esperas e falhas nos cuidados de saúde” e que “só haverá verdadeiro acesso à saúde se não desistirmos do combate por um Serviço Nacional de Saúde público, qualificado e universal, pago com os nossos impostos”.

O Esquerda.net falou com o Enfermeiro Especialista de Saúde Materna e Obstetrícia Luís Mós sobre a situação dos cuidados materno-infantis em Portugal e também sobre a importância da grande manifestação cidadã, em Lisboa, pelo reforço do SNS e pela garantia dos cuidados de saúde. O ponto de encontro da iniciativa será no Largo de Camões, pelas 15h.

Qual é a atual situação dos cuidados materno-infantis públicos em Portugal, nomeadamente no que respeita ao caso concreto das maternidades?

As políticas de assistência em obstetrícia, nomeadamente no que respeita ao encerramento alternado das maternidades hospitalares, visam uma resolução temporária, e demonstram a curta visão do Ministério da Saúde e da Direção Executiva relativamente ao problema existente.

Atualmente, as grávidas veem condicionado o seu direito ao acesso gratuito, em tempo útil e por profissionais competentes, à vigilância da gravidez, com o risco inerente de aumento de taxas de morbimortalidade materno-infantil.

Num contexto em que as equipas de saúde familiar, nos cuidados de saúde primários, são já reduzidas, as grávidas veem-se obrigadas a recorrer aos serviços de urgência hospitalar, com um aumento injustificado da afluência. Mas já nem as urgências hospitalares conseguem dar resposta a tantos casos, também elas penalizados pela falta de recursos humanos, nomeadamente médicos obstetras, vendo-se obrigadas a encerrar de forma alternada.

Portanto, os serviços ficam com capacidade reduzida na resposta ao aumento do fluxo de grávidas que, por não terem médico de família atribuído, recorrem às maternidades para uma vigilância insuficiente, visto que estas urgências não estão organizadas para este tipo de assistência.

As grávidas encontram-se numa situação precária e vulnerável, sem locais onde recorrer, sob o risco de sobrecarregar as maternidades que estão abertas e não têm poder de escoamento em caso de lotação máxima.

O Ministério da Saúde anunciou recentemente que terá de se socorrer do setor privado e social para garantir a realização de partos durante os meses de verão. Consideras que esta é a melhor solução para assegurar a resposta às utentes?

O Ministro da Saúde prefere promover a promiscuidade entre o SNS e o privado, em vez de assegurar melhores condições de trabalho, de motivação e de fixação de profissionais. Já os grupos privados de saúde farão desta oportunidade um negócio lucrativo, recebendo apenas grávidas sob certas condições. Estou certo que o Governo optou pela solução mais fácil e pior para as grávidas. É nas instituições privadas que os indicadores de saúde são piores, com elevadas taxas de cesarianas e, consequentemente, maiores riscos para as parturientes e bebés.

Esta não será certamente a melhor solução, e demonstra uma visão de curto alcance de quem pretende apagar uma frente do problema, sem se importar com o seu alastramento. O SNS tem falta de profissionais, que, devido a carreiras pouco atrativas, fogem para as instituições privadas como forma de aumentar o seu income financeiro.

Que medidas consideras que deveriam ser tomadas para salvaguardar os cuidados materno-infantis públicos?

O Ministério terá de, a curto/médio prazo, analisar as carreiras de todos os profissionais de saúde, por forma a retê-los e motivá-los para se manterem no SNS. Em causa estão aumentos salariais, avaliações de desempenho direcionadas para estas profissões, progressões transparentes baseadas na formação, empenho e prestação dos profissionais, acesso a cargos de gestão através de concursos íntegros que valorizem o percurso profissional e formativo, entre outros.

No entanto, perante este flagelo, a solução urge, e sim, está ao alcance do SNS neste momento. A fraca gestão de recursos humanos, reforçada pela existência de lóbis, ditou que os enfermeiros parteiros fossem afastados da prática das suas competências na totalidade. Os EESMO [Enfermeiros Especialistas em Saúde Materna e Obstétrica] têm competências reconhecidas a nível europeu para vigiar gravidezes de baixo risco de forma autónoma, bastava que lhes fosse permitido praticar o ato da prescrição de exames, análises sanguíneas e medicação que todas as grávidas sem exceção deverão fazer. São também competentes na manutenção, condução e realização de partos eutócicos e vigilância de puérperio, isto apenas para citar as competências relacionadas diretamente com a saúde obstétrica, pois estendem-se para além destas.

A evolução da saúde em geral, as necessidades crescentes da população e a imperatividade de mudança de paradigma nos cuidados de saúde exige uma reestruturação dos cuidados de saúde na sua globalidade.

Os cuidados de saúde primários deviam encaminhar todas as grávidas de baixo risco, ou pelo menos aquelas que não tivessem equipa de família atribuída, para consultas de vigilância da gravidez com um enfermeiro parteiro, que devia estar alocado às Unidades de Cuidados na Comunidade (UCC). Esta simples alteração permitiria libertar as agendas dos médicos de família, oferecendo uma resposta mais atempada em casos de doença aguda ou crónica agudizada, sem haver compromisso da qualidade de cuidados prestados.

Às consultas de vigilância da gravidez, deveriam seguir-se todas as consultas de saúde sexual e reprodutiva em mulheres saudáveis, tais como planeamento familiar, consulta de saúde feminina, colocação e remoção de dispositivos contracetivos, consultas da menopausa, rastreios da saúde da mulher. Imagine-se a quantidade de consultas “poupadas” ao médico de família, a diminuição das listas de espera para obtenção de consultas, e os enfermeiros parteiros a utilizarem a plenitude das suas competências, em vez de serem subaproveitados para a realização de tarefas que integram outra especialidade que não a sua, ou que podem mesmo ser asseguradas por enfermeiros generalistas.

Também as instituições hospitalares necessitam ser reestruturadas, nomeadamente com o encaminhamento de grávidas de baixo risco, a partir das 36 semanas, para serem vigiadas por um enfermeiro parteiro, realização de internamentos e alta hospitalar, mediante protocolos definidos e acordados entre a equipa multidisciplinar, de grávidas que cumpram determinados requisitos ou com puerpérios não complicados, com uma articulação contínua, baseada na confiança, entre as equipas médicas e de enfermeiros parteiros.

Estas simples alterações estão ao alcance do SNS AGORA, não é necessário nenhuma ginástica mirabolante ou medidas infundadas que visam o prejuízo das mulheres e do SNS. Haja força e vontade política para mudar, sim, é possível. Provavelmente, a curto/médio prazo irá implicar um aumento dos recursos humanos, nomeadamente enfermeiros parteiros, a nível das instituições de saúde, mas até estes serem aproveitados, reconhecidos e capitalizados nos seus atos como devem, é difícil antever as necessidades que ainda ficam por colmatar.

O Governo tem demonstrado abertura para responder a estas reivindicações e para resolver os problemas com que se confrontam os cuidados materno-infantis em Portugal?

Não! As negociações que estavam em curso para reestruturação das carreiras estão suspensas, sem vislumbre sobre o reinício das mesmas. Para além disso, muito poucos enfermeiros parteiros são “ouvidos” nas reestruturações propostas para a saúde obstétrica, sendo que os esforços políticos se direcionam numa perspetiva de manutenção do estatuto de determinadas pessoas, em vez de atender ao verdadeiro interesse da saúde pública ou das grávidas/famílias, especificamente neste caso.

Está agendada para o próximo sábado, dia, 3 de junho, uma manifestação nacional em defesa do SNS. Qual é a importância desta iniciativa?

A importâncias destas iniciativas é serem uma forma de luta e expressão de opinião no exercício dos direitos democráticos dos cidadãos. Além disso, é uma forma de fazer chegar a mensagem aos atuais governantes que, por vezes, ignoram estes anseios com o objetivo de promover as mudanças necessárias das atuais políticas liberais do Governo, trazendo para o debate público questões importantes que possam ser desvalorizadas pelos políticos intervenientes.

Será uma forma de chamar a atenção deste Governo para assuntos importantes, e que podem ter repercussões na vida das pessoas, trazendo indicadores negativos para a saúde pública.

Termos relacionados Maternidades, Saúde, SNS
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