“Temos de sair à rua para salvar o SNS”

22 de maio 2023 - 23:27

O Esquerda.net ouviu médicos, dirigentes sindicais, estudantes de Medicina e utentes sobre a importância da manifestação cidadã “O povo merece +SNS”. A iniciativa decorrerá no próximo dia 3 de junho, em Lisboa, com o ponto de encontro agendado para as 15h no Largo de Camões.

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O movimento Mais SNS lançou o seu manifesto no final de abril, em jantares realizados em Lisboa, Porto e Algarve. Foto do Movimento Mais SNS.

Nos últimos dois meses, cerca de duas mil pessoas, profissionais e utentes do SNS com diversos percursos cívicos, reuniram-se em torno do Manifesto Pelo Direito à Saúde, Mais SNS. No documento, os subscritores alertam que “Portugal não suporta mais esperas e falhas nos cuidados de saúde” e que “só haverá verdadeiro acesso à saúde se não desistirmos do combate por um Serviço Nacional de Saúde público, qualificado e universal, pago com os nossos impostos”.

O movimento está a realizar reuniões em vários distritos. A próxima será no dia 24, pelas 21h, na Cooperativa do Povo Portuense, no Porto. Para dia 3 de junho está agendada uma grande manifestação cidadã, em Lisboa, pelo reforço do SNS e pela garantia dos cuidados de saúde. O ponto de encontro será no Largo de Camões, pelas 15h.

O Esquerda.net falou com o médico Manuel Sant'Ovaia, a dirigente sindical do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP) Guadalupe Simões, a estudante de Medicina Mariana Reis, o médico de família Unidade de Saúde Familiar (USF) da Baixa Martino Gliozzi, a cuidadora informal Rosália Ferreira e a professora reformada e dirigente associativa Ana Brito Jorge sobre os motivos que os levaram a aderir a este movimento, os constrangimentos com que se depara o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e as medidas necessárias para o salvar, bem como sobre a importância da manifestação do próximo dia 3 de junho.

Movimento alargado na defesa do SNS

Manuel Sant'Ovaia terminou o mestrado integrado em 2021. No ano seguinte fez o internato de formação geral e irá escolher a especialidade no final de 2023, para ingressar no internato de especialidade em 2024. Aceitar o convite para integrar a comissão promotora do movimento foi algo que “surgiu naturalmente”. “O movimento surge para lembrar que temos um SNS que dá muito, e que os seus profissionais têm muita vontade de ajudar, de fazer o seu melhor, mas também que é preciso cuidar do SNS e investir nele”, explicou.

O médico assinalou que, “durante a pandemia, o SNS assegurou uma resposta exemplar que não foi dada pelo setor privado”. “Foi preciso alguém chegar-se à frente, sem olhar a lucros, sem olhar a condições, e o SNS, como sempre, chegou-se à frente. Mas um dia isso acaba se não há investimento”, alertou.

Guadalupe Simões reforçou a importância de “as pessoas tomarem consciência que o SNS que permitiu que durante a pandemia os portugueses continuassem a ter acesso a cuidados de saúde, e não acontecesse o que aconteceu noutros países, é o mesmo SNS que está hoje em perigo”. A dirigente sindical considera que é fundamental que os cidadãos sejam “chamados a defender o seu direito à Saúde, como está escrito na Constituição”.

Na perspetiva de Martino Gliozzi, a mobilização de dia 3 junho “é imprescindível para dar visibilidade e para passar a mensagem aos decisores políticos e entidades empregadoras”. Identificando-se como um “grande defensor do SNS”, Martino afirmou estar “muito preocupado com a forma como as coisas estão a correr”. E foi esta preocupação que o fez “querer acordar um pouco a população em geral”. De acordo com o médico de família, não se trata só de um protesto, o movimento avança com “críticas construtivas e apresenta alternativas” para salvar o SNS.

Mariana Reis alertou que “um clima de descontentamento, tanto dentro da classe médica, como entre os utentes, está a trilhar um caminho que está lentamente a destruir as bases de um serviço de saúde de qualidade”. “Ao longo da minha formação médica tenho assistido a situações que me assustam como futura profissional, e por esse motivo aderi ao movimento Mais SNS, continuou.

Mariana Reis, estudante de Medicina

Mariana ainda está, de facto, a estudar Medicina, mas já tem perfeita consciência da necessidade de defender o SNS. Aliás, aderiu ao movimento “não só por motivos profissionais”, mas sobretudo como “cidadã que quer viver num país onde a saúde não seja secundária”.

A seu ver, o Mais SNS “traz consigo uma nova corrente que poderá ajudar na construção de soluções que intervenham na mudança necessária no SNS”. 

Mas não só de profissionais de saúde, ou futuros profissionais, é composto o movimento. A cuidadora informal Rosália Ferreira e a professora reformada e dirigente associativa Ana Brito Jorge integram esta luta com a mesma convicção.

Rosália cuida da filha adulta com deficiência e tem “passado imenso com o SNS, em todos os sentidos”. Já apresentou várias reclamações, mas sem sucesso: “Um empurra para aqui e outro para acolá, mas não há respostas”, apontou.

A cuidadora informal acusou o Governo de não escutar a população e diz que a mobilização é muito importante “para chamar a atenção e exigir respostas”. “Temos de sair à rua e lutar para salvar o SNS. Foi das melhores conquistas da democracia”, vincou.

Ana Brito Jorge falou “como utente e como utente de uma forma muito especial”, na medida em que, durante alguns anos, teve “muita necessidade do apoio” do SNS. Acresce que acompanhou de muito perto a luta pela nova lei de bases e pela revigoração do SNS. Talvez seja também por isso que vê com tanta angústia o SNS a “ficar asfixiado”. “Sabemos que há saídas, mas não há vontade política”, lamentou.

Ana Brito Jorge, professora reformada e dirigente associativa

A professora reformada e dirigente associativa considera que a diversidade do movimento é “muito reconfortante”. “É um movimento alargado, com gente de sensibilidades muito diferentes e de profissões e atividades também muito diversas. Não se restringe à questão profissional”, assinalou.

“Todas as pessoas desejam um SNS ao serviço de toda a gente. O SNS é pago com os nossos impostos e a sociedade em geral viverá melhor se tiver um SNS saudável, mais forte e mais próximo das pessoas”, vincou.

Segundo Ana Brito Jorge, “são muito poucos” aqueles que estão contra o SNS, mas são “muito poderosos” e têm “razões muito profundas para combaterem o SNS”, relacionadas com os seus “interesses económicos”. De qualquer forma, Ana acredita que “os cidadãos e as cidadãs têm força para contrariá-los”. E “a capacidade deste movimento de agregar muito mais gente”, é disso demonstrativa”, acrescentou.

Processo contínuo de desinvestimento no SNS

Manuel Sant'Ovaia tem se deparado com “um desinvestimento brutal no Serviço Nacional de Saúde, com uma desvalorização das carreiras de todos os profissionais de saúde que integram o SNS, o que traz consequências tanto para os utentes como para os profissionais”. E este não é um problema de agora. É um “processo contínuo de desinvestimento” que tem vindo a ser levado a cabo pelos sucessivos governos “nos últimos 20, 30 anos”, sublinhou.

“Enquanto cidadã deste país, e sendo profissional da área da Saúde”, Guadalupe Simões vai constatando “que a degradação do SNS tem vindo a acentuar-se, com um emagrecimento notório”. “E quando falo de emagrecimento falo de uma dificuldade na acessibilidade aos cuidados”, esclareceu.

Setor privado não é uma alternativa ao SNS

Os portugueses que ainda têm condições financeiras para tal acabam por ser empurrados para o setor privado, que, conforme defende a dirigente sindical, “não é uma alternativa ao SNS”.

“O setor privado não aposta na promoção da saúde. Portugal precisa, os portugueses precisam, que, mais do que o tratamento da doença e a reabilitação, se aposte de uma forma prioritária na área da promoção da saúde. Só assim poderemos evitar os indicadores que hoje temos, nomeadamente, no que respeita ao aumento da diabetes em crianças e jovens. E para conseguirmos atingir idades mais avançadas com qualidade de vida”, destacou Guadalupe.

As consequências do flagrante desinvestimento no SNS faz-se sentir de várias formas.

Na USF da Baixa, coordenada por Martino Gliozzi, felizmente, não faltam profissionais, mas o médico tem total consciência de que “há vários centros de saúde com imensa falta de médicos de família e outros profissionais”.

O que se tem vindo a sentir mais recentemente nesta unidade de saúde é uma preocupante rutura de stock de vacinas, de material básico como papel, contracetivos. “Nunca esteve assim. Não temos preservativos, o que é bastante grave. E é claro que isso tem repercussões nos cuidados que a gente presta”, referiu Martino.

Rosália Ferreira, cuidadora informal

Rosália e Ana também sentem as consequências do desinvestimento no seu quotidiano.

Uma consulta da filha de Rosália Ferreira foi desmarcada em 2020, e não foi possível reagendá-la até hoje. “O SNS tem falta de tudo, de profissionais, de condições nas urgências, sofremos com atrasos e o acesso aos cuidados é de má qualidade. O sistema não está a funcionar”, desabafou a cuidadora informal.

“Por força da idade e da atividade numa associação de reformados e pensionistas”, Ana Brito Jorge sente “muito de perto a necessidade de a população mais velha” ter acesso aos cuidados de saúde e “alguma angústia que as pessoas sentem à medida que pressentem que a fragilidade há de chegar”. “Nem todas as pessoas mais velhas são doentes, claro, mas adivinha-se que venhamos a estar mais frágeis”, clarificou a dirigente associativa. E é por isso que o desinvestimento nos cuidados de proximidade, nos cuidados primários de saúde, que é uma “palavra-chave deste movimento e desta luta” é “tão significativo”, enfatizou Ana.

Sangria de profissionais para o setor privado

O desinvestimento no SNS também resulta numa deterioração das condições salariais e de trabalho no SNS, com a consequente sangria dos profissionais para o privado ou até mesmo para o estrangeiro.

No que respeita aos médicos, estes profissionais deparam-se “com uma necessidade de fazer muito para além do que lhes deveria ser exigido”. “Os médicos são das únicas classes que faz 40 horas semanais, e não as 35 que a maioria do setor público realiza, e, para além disso, muitas vezes essas 40 horas são apenas no papel, porque nos são exigidas muitas horas extraordinárias”, detalhou Manuel Sant'Ovaia.

Manuel Sant'Ovaia, médico

O médico realçou que “é inegável que acaba por haver uma sangria de profissionais para o setor privado, porque, de facto, este lhes oferece melhores condições e melhores salários”. Esta situação é “muito preocupante”, até porque “é uma bola de neve”: “As condições do SNS pioram porque há menos médicos, e os que ficam estão sujeitos a condições penosas, não só em termos de carga horária de trabalho como também depois no que respeita às próprias condições de trabalho”.

Com negociações a decorrer, “a expectativa era de que o Ministério [da Saúde] desse um passo em frente e mostrasse que quer reverter este ciclo de desinvestimento e que quer, realmente, atrair os profissionais de saúde para ficarem no setor público. Mas mantendo a atual postura isso será impossível”, afirmou o médico.

Ainda que “recebam três vezes menos do que receberiam no privado, que tenham o dobro ou o triplo dos doentes que teriam a seu cargo no setor privado”, muitos médicos especialistas gostariam de ficar no público pelas oportunidades de formação, “mas depois têm de pensar noutros fatores”, explicou Manuel. “Os anos passam, as pessoas querem constituir família, querem ter tempo para a sua vida e não o conseguem se constantemente estão a fazer 60, 70, 80 horas semanais. Não é compatível. E isto quando podem, em alternativa, ir para um serviço que lhes oferece um horário ‘normal’ com uma remuneração muito superior”, apontou o médico.

Para Manuel, “o que é chocante é perceber que o Governo, quer este quer governos anteriores, constata que, de facto, há uma falta de profissionais no setor público, mas não oferece condições para fixar os profissionais de saúde”. “Não basta abrir vagas e esperar que os profissionais de saúde apareçam. Tem de se perceber o que é que poderá ser feito para atrair estes profissionais”.

Martino Gliozzi, médico de família

Martino Gliozzi apontou o dedo à “reforma estagnada e imperfeita dos cuidados de saúde primários”. Quando o médico de família acabou o internato, em 2015, “a maior parte dos especialistas em Medicina Geral e Familiar decidiram ficar no SNS, agora é quase uma raridade. A maioria ou vai para o privado ou para fora do país”.

“A maior dos jovens médicos já não tem a perspetiva de criar um projeto, tornar-se uma USF, ter um ordenado melhor. A maior parte dos médicos não vê isso e desiste logo a seguir ao internato. É bastante preocupante”, frisou.

“Como estudante de Medicina e futura profissional de saúde”, Mariana Reis sente “que é cada vez mais imperativo fazer-se mudanças na estrutura do SNS”. “Ingressar numa carreira médica atualmente no SNS é pressupor um certo nível de precariedade, onde nos é exigido horas extra com salários que por si só não são motivadores para o próprio profissional”, indicou.

Guadalupe Simões traçou o retrato dos cuidados de saúde primários no que respeita aos enfermeiros: “O número de enfermeiros na área dos cuidados de saúde primários não chega face àquele que é o aumento das necessidades das pessoas em cuidados de saúde”, assinalou.

“Quando hoje se diz que há um milhão e setecentos mil portugueses que não têm equipa de saúde familiar, isso significa que há um milhão e setecentos mil portugueses que não têm acesso ao seu enfermeiro de família. Esta equipa deve ser a porta de entrada do SNS”, disse Guadalupe.

Como utente, Ana Brito Jorge “tem a noção de que a existência de serviços de proximidade implica a existência de profissionais na quantidade adequada” e com “boas condições de trabalho”. E isso implica não existir “o castigo da não progressão na carreira”, ou do recurso permanente a horas extraordinárias.

A utente considera que a desvalorização dos profissionais “dificulta a saúde do SNS”.

O que fazer para salvar o SNS?

Guadalupe Simões considera que, logo à partida, é preciso “saber exatamente qual é a visão que o Governo tem para o SNS, tendo em conta que, supostamente, foi criada uma direção executiva do SNS que vai avançar com uma reorganização dos serviços de saúde sem que ninguém saiba exatamente a esta data o que é que vai acontecer”. “E o pior que pode acontecer é a imposição de medidas de cima para baixo sem se ter em conta aquilo que são as necessidades das pessoas, as características geo-democráficas da implementação dessas medidas, e os profissionais de saúde não estarem envolvidos nessas reformas”, afirmou a dirigente sindical.

Guadalupe Simões, dirigente sindical do SEP

Há uma questão basilar que é transversal, e que foi consensual em todos os depoimentos recolhidos: é preciso investir no SNS.

Guadalupe enfatizou que “o SNS terá grandes dificuldades em sobreviver se não houver um investimento sério em termos dos equipamentos existentes e na aquisição de novos equipamentos que permitam, por exemplo, criar inovação nas instituições de saúde, sejam elas hospitais ou centros de saúde”.

A questão dos profissionais também é, para a representante do SEP, central: “O que não pode acontecer é, havendo até os equipamentos, eles não estarem a funcionar por falta de profissionais”, salientou.

Guadalupe confirmou que são precisos mais médicos e enfermeiros, mas avisou que, “para garantirmos a universalidade do SNS, temos de contratar mais psicólogos, estomatologistas, nutricionistas, assistentes operacionais, secretários clínicos, técnicos de diagnóstico e terapêutica”.

As medidas necessárias para salvaguardar a qualidade do SNS passam necessariamente, na perspetiva de Mariana Reis, pela criação de uma “rede de hospitais e centros de saúde eficientes e de qualidade”. “É necessário investir nos hospitais e centros de saúde do interior com mão de obra e materiais necessários; diminuir os tempos de espera para consultas de especialidade e cirurgias; abrir mais vagas para todos os médicos que são anualmente formados em Portugal, pois o problema não reside na falta de mão de obra, mas sim na precária gestão dos recursos da mesma”, elencou a estudante de Medicina.

Ambos os médicos frisaram que é urgente criar condições para que os profissionais se sintam valorizados e com vontade de ficar no SNS.

Manuel esclareceu que, no que se refere à questão remuneratória, não se trata de “igualar as condições do público e do privado, mas aproximar as condições oferecidas no SNS àquelas que são praticadas no setor privado”. Até porque “a revisão da grelha salarial dos médicos não acontece há muitos, muitos anos”.

Do ponto de vista de Martino Gliozzi, “a exclusividade é um passo para que as pessoas se dediquem ao SNS”, sendo compensadas por isso.

De qualquer forma, o médico de família acredita que a resposta tem de ser estrutural: “é preciso mudar o paradigma e encarar a Saúde como um investimento, e não como um gasto, um custo”.

Para quem considera que investir no SNS é muito dispendioso, Martino advertiu que, caso se mantenha este ciclo de desinvestimento, as consequências serão dramáticas “em termos de custos para a população e para o país”. Na realidade, o investimento no SNS tem um inegável retorno “em termos da qualidade de vida, da esperança média de vida” e também a nível da economia”, rematou o profissional de saúde.

Manuel Sant'Ovaia, Guadalupe Simões, Mariana Reis, Martino Gliozzi, Rosália Ferreira e Ana Brito Jorge contam encontrar-se no próximo dia 3 de junho, no Largo de Camões, em Lisboa, pelas 15h, e marchar lado a lado até à Assembleia da República em defesa do SNS. E apelam a que todos e todas nós saiamos à rua nesse dia por um Serviço Nacional de Saúde público, universal e de qualidade.