A noite de domingo trouxe alguma acalmia às ruas das cidades francesas, após cinco noites de tumultos que se seguiram à morte do jovem Nael em Nanterre, assassinado à queima roupa por um agente de polícia numa operação de trânsito. Segundo as autoridades francesas, foram detidas esta noite 157 pessoas e registaram-se 352 incêndios na via pública, além de 297 veículos incendiados. Números que contrastam com as muitas centenas de detidos e milhares de incêndios em cada uma das noites anteriores. No balanço geral, os estragos provocados pelos tumultos da semana passada ultrapassaram os de 2005, que duraram três semanas.
O foco da atenção política e mediática desviou-se dos estragos ao património público e privado para se centrar no ataque à residência do edil republicano de L’Hay-les-Roses, Vincent Jeanbrun, para onde na madrugada de domingo foi lançado um veículo em chamas, com a esposa e um dos filhos a ficarem feridos quando tentavam fugir. "O que é terrível é que estamos a falar de um punhado de indivíduos, talvez quatro ou oito em minha casa, cerca de trinta no dia anterior, numa cidade com uma população de 33.000 habitantes. Antigamente, havia um verdadeiro sentido de união, mas isso desapareceu completamente entre vizinhos, entre comunidades, entre bairros e mesmo no seio das famílias. Vamos ter de nos dotar dos meios para dar um salto republicano e voltar a pôr a República de pé”, declarou o autarca à TF1.
Todos os partidos condenaram o ataque e esta segunda-feira realizam-se concentrações de solidariedade em frente às Câmaras Municipais, convocadas pela associação nacional de autarcas. Entre os apoiantes está o partido dos Verdes. ”Apelamos a estas manifestações porque estamos profundamente ligados à República, que abandonou muitas zonas", escreve o partido, condenando o ataque à casa do autarca de L’Hay-les-Roses. Mas ressalva que "o apelo à calma não significa o status quo" e apela a um “novo pacto social” para os bairros sensíveis que rejeite a via securitária, pois no seu entender ela só irá “preparar o caminho para novas revoltas”.
França Insubmissa propõe plano de urgência "Justiça em todo o lado"
Por seu lado, o líder da França Insubmissa disse numa entrevista à LCI que “estamos a viver uma forma da luta de classes: os pobres revoltam-se e os ricos desprezam-nos”. Jean-Luc Mélenchon tem sido criticado por não ter feito apelos à calma após a primeira noite de tumultos. E respondeu que “desde a passada terça-feira, nenhuma outra autoridade do país apresentou uma proposta para acalmar definitivamente a situação”, referindo-se ao “plano de urgência Justiça em todo o lado” que o seu partido apresentou na sexta-feira. Esse plano propõe a revogação da lei de 2017 que deu origem à escalada de mortes pela polícia, autorizando disparos em caso de recusa a obedecer a ordens, a criação de uma comissão “Verdade e Justiça” para apurar responsabilidades em todos os casos de mortes e mutilações no âmbito de operações policiais, a indemnização por parte do Estado aos proprietários de casas e comércios vandalizados nos últimos dias, uma reforma profunda da política para “reconstruir uma força policial republicana mais bem treinada e livre de todas as formas de racismo” e que feche o período aberto em 2002 por Sarkozy de “tratar os jovens dos bairros populares como um inimigo interno”, além de um plano de investimento nesses bairros para repor os serviços públicos, a habitação, escola pública, financiamento das associações e centros sociais.
“Para um político, a questão não é apelar à calma, é adotar uma postura. Trata-se de construir a calma”, afirmou Mélenchon. O líder da França Insubmissa referiu-se também às declarações de Macron e de alguns governantes, responsabilizando os pais dos jovens que mostraram a sua revolta nas ruas de França. “Se acharmos que há crianças abandonadas, pomos educadores na rua, não os eliminamos. Financiamos as associações de jovens, não as eliminamos. Certificamo-nos de que há professores em todas as escolas”, afirmou, antes de se referir diretamente a Macron: “Este homem não sabe o que as pessoas passam, não tem nada que falar assim. Ele despreza as pessoas, não gosta delas, não compreende a vida que elas têm”. Tal como os ricos e poderosos, que “querem viver à parte dos "pestilentos", como lhes chama a polícia, para os manter à distância, para os controlar”, enquanto “têm os seus bairros barricados, os seus meios de transporte, os seus hospitais”.
Extrema-direita vangloria-se de recolher mais donativos para o polícia do que a recolha para a mãe de Nahel
O assassinato do jovem de ascendência argelina às mãos da polícia veio aprofundar a polarização na sociedade francesa, a começar no próprio corpo policial, com vários sindicatos ligados à extrema-direita a divulgarem um comunicado conjunto onde se dizem “em guerra” contra os “pestilentos”.
No plano mediático, uma das figuras da extrema-direita mediática, Jean Messiha, vangloriou-se no sábado de já ter recolhido em apenas três dias na sua “vaquinha” mais dinheiro destinado ao polícia que assassinou Nahel do que a recolha de donativos para a mãe do jovem assassinado. Face às críticas, a extrema-direita mobilizou-se e na segunda-feira a diferença era de 860 mil euros para o polícia preso, enquanto os donativos para a mã da vítima não ultrapassavam os 150 mil euros. Uma outra recolha de fundos para ajudar a família do polícia, iniciada pela autodenominada “Associação de motociclismo de Hauts-de-Seine” diz ter recolhido mais 55 mil euros, refere o Mediapart.
A iniciativa do polemista da CNews, antigo coordenador do programa de Le Pen nas Presidenciais de 2017 que passou a porta-voz da candidatura presidencial de Eric Zemmour no ano passado, anteriormente condenado por incitamento ao ódio e violência, mereceu a contestação de figuras de diferentes quadrantes políticos. O líder do PS francês, Olivier Faure, fala de uma “vaquinha da vergonha” que agrava a fratura já existente por ajudar um polícia investigado por homicídio voluntário. O deputado da maioria presidencial Éric Bothorel. acusa Jean Messiha de “atiçar as brasas” e de ser “um provocador de motins”, considerando esta recolha de fundos “indecente e escandalosa".
Os responsáveis policiais recusaram-se a comentar a “vaquinha” milionária da extrema-direita para o polícia que matou Nahel, bem como os membros do Governo, ao contrário do que aconteceu em 2019, quando uma iniciativa semelhante foi organizada a favor de um “colete amarelo” filmado a esmurrar um polícia após este ter lançado gás pimenta sobre um grupo de manifestantes. Na altura, recorda o Mediapart, a plataforma Leetchi fechou a “vaquinha” por violar as condições que impedem “a incitação ao ódio e à violência” e o então ministro do Interior atacou os que contribuíram por estarem a financiar "a ação de um vândalo que agrediu as nossas forças de segurança". Desta vez, nem o ministro falou nem a plataforma GoFundMe vê problemas, com um responsável a dizer que a “vaquinha” cumpre as suas regras de utilização.