Comoção e revolta em França com morte de jovem baleado pela polícia

28 de junho 2023 - 23:28

Imagens que mostram polícia a matar jovem de 17 anos numa operação de trânsito têm gerado protestos em várias cidades dos subúrbios de Paris. Mensagens de políticos e personalidades a repudiar o ato multiplicam-se, enquanto extrema direita e sindicatos da polícia defendem atuação.

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Crédito: Twitter @Ohana_FGN

Nahel, um jovem de 17 anos, morreu na terça-feira, 27 de junho, em Nanterre, após ter sido baleado por um polícia durante uma operação de trânsito. A realidade dos factos poderia nunca ter vindo à luz do dia caso não existissem imagens filmadas por um amador, que incriminam os dois polícias franceses.

Às 8h18, os agentes verificaram um carro ocupado por três pessoas, entre elas dois menores de idade. Num vídeo que circula nas redes sociais, um dos polícias aparece junto à janela do motorista. Ao seu lado, na altura do para-brisa, outro polícia aponta a sua arma para o jovem ao volante. Quando o condutor tenta reiniciar a viatura, esse segundo polícia atira à queima-roupa, sem que o veículo pareça representar qualquer perigo. Antes do disparo, ouve-se: “Vou colocar uma bala na tua cabeça”. O colega parece incitá-lo: “Atira nele”.

O jovem, que vivia sozinho com a mãe e distribuía pizas, morreu uma hora depois, apesar das tentativas de reanimação por parte dos serviços de saúde de emergência.

O Ministério Público de Nanterre anunciou de imediato a abertura de duas investigações: uma confiada à esquadra de polícia de Nanterre e à segurança territorial de Hauts-de-Seine, por “incumprimento e tentativa de homicídio doloso de titular de autoridade pública”; a segunda, confiada à Inspeção-Geral da Polícia Nacional (IGPN), indicia o polícia por "homicídio voluntário cometido por pessoa no exercício de autoridade pública".

Ainda que as imagens sejam explícitas, e tenham inclusive levado o presidente Emmanuel Macron a afirmar que esta morte é "inexplicável" e "indesculpável", alguns meios de comunicação e comentadores não se coibiram de tentar denegrir a imagem de Nahel e de divulgar informações falsas sobre o seu registo criminal. Um dos advogados da família, Yassine Bouzrou, garantiu, em comunicado, que os familiares se reservam “o direito de processar todos aqueles que inventarem, como já se fez hoje, elementos inexistentes no registo criminal do jovem”.

Outro advogado da família, Abdelmadjid Benamara, é perentório ao afirmar que a decisão do polícia foi premeditada: “O polícia está do lado esquerdo do veículo, ou seja, próximo das rodas e não à frente das rodas”, não estando em perigo. “E ele toma a decisão, premeditada, já que anunciou previamente que ia atirar na cabeça do jovem Nahel, de atirar no peito da vítima. Os factos falam por si. É cristalino", explicou.

Bouzrou anunciou que a família vai apresentar queixa por homicídio voluntário, e que “a denúncia também visará o seu colega por cumplicidade em homicídio voluntário”. Os polícias são ainda acusados de falsas declarações, na medida em que alegaram ter agido em legítima defesa para tentar escapar a uma alegada tentativa de homicídio por parte do jovem. A família de Nahel pede ainda a declinação de competência da procuradoria de Nanterre, que “ abriu uma investigação com base nas falsas declarações da polícia".

Extrema-direita regozija-se com morte de Nahel

O autarca de Nanterre realçou ter ficado "chocado" com as imagens. "Abalado com a morte do jovem", Patrick Jarry manifestou prontamente o seu apoio à família, ao mesmo tempo que apelou a "todos para que exerçam a contenção e a dignidade, apesar da legítima emoção despertada por este drama".

A par de Emmanuel Macron, a primeira-ministra Elisabeth Borne veio assumir que a "terrível tragédia" da morte do jovem Nahel ocorreu na sequência de "uma intervenção que claramente não parece cumprir as regras de atuação” das forças policiais francesas. No Parlamento, o ministro do Interior Gérald Darmanin afirmou que a morte do jovem "é uma tragédia" e que o polícia "terá de prestar contas dos seus atos".

Na Assembleia Nacional foi prestado um minuto de silêncio. O seu presidente, Yaël Braun-Pivet, declarou que “a morte do jovem Nahel, de 17 anos, ocorrida ontem em Nanterre, causa forte comoção no país” e que “será necessário esclarecer as circunstâncias desta tragédia”.

Já a extrema-direita insurgiu-se contra esta iniciativa. Marine Le Pen enfatizou que a Assembleia Nacional deveria medir um pouco os minutos de silêncio que se cumprem" e criticou as declarações "irresponsáveis" e "muito excessivas" de Macron, de quem afirmou "esperar outra coisa".

Éric Zemmour escreveu que o presidente francês "escolheu a sua França" e alega que a morte de Nahel é "um pretexto para a esquerda atacar politicamente a polícia" e para a "escória atacar fisicamente tudo o que representa" França.

François Xavier Bellamy, do Les Republicans, que integra o grupo do Partido Popular Europeu, também defendeu a atuação da polícia, frisando que “as consequências deste comportamento (de Nahel) poderiam ter sido potencialmente dramáticas para outras pessoas próximas e outras potenciais vítimas”.

Alliance e Unité SGP Police, dois dos principais sindicatos policiais, também assumiram rapidamente a defesa dos dois polícias.

O France Police, do fascista Bruno Attal, que representa apenas 3% dos profissionais, chegou a publicar um tweet, entretanto apagado, em que parabenizava os “colegas que abriram fogo contra um jovem criminoso de 17 anos”. No texto, Nahel era descrito como “bandido”, e os seus pais eram acusados de serem “incapazes de educar o filho”.

Em declarações à BFMTV, o chefe da polícia de Paris foi cauteloso. Laurent Nunez referiu que a situação lhe "levanta muitas questões", mas avançou que o caso só poderá ser decidido nas instâncias judiciais.

França Insubmissa exige reforma profunda da polícia nacional

Thomas Portes, representante da França Insubmissa (La France Insoumise) referiu-se à morte de Nahel como “uma execução sumária”. E o deputado Manuel Bompard frisou que "a morte não faz parte das penas previstas no Código Penal" em caso de desobediência.

Em comunicado, o grupo parlamentar França Insubmissa - NUPES defendeu "a suspensão imediata do autor do tiroteio e dos polícias que mentiram para encobrir o seu ato", "sanções administrativas e judiciais exemplares", "a constituição de uma comissão parlamentar de inquérito sobre as desobediências", "a anulação da alteração do artigo 435-1 do Código de Segurança Interna", bem como "a dissolução da polícia sindical francesa que tomou uma posição oficial para saudar este ato indizível ”.

A longo prazo, o movimento de Jean-Luc Mélenchon quer “uma reforma profunda do funcionamento da polícia nacional, que deve ser uma polícia republicana melhor treinada, livre de arbitrariedades e racismo, dotada de um órgão de controlo independente”.

Onda de comoção e indignação

O futebolista Kylian Mbappé reagiu à morte de Nahel através das redes sociais. "Sinto-me mal pela minha França. Uma situação inaceitável. Todos os meus pensamentos vão para a família e entes queridos de Naël, este anjinho que partiu cedo demais", escreveu na sua conta de Twitter. 

O ator Omar Sy, que integrou o elenco do filme 'Amigos Improváveis' e é protagonista da série da Netflix 'Lupin', também se pronunciou publicamente: "Os meus pensamentos e orações vão para a família e entes queridos de Naël, que morreu aos 17 anos, morto por um polícia em Nanterre. Que a justiça digna desse nome honre a memória desta criança".

Rappers como Jul, SCH, Rohff também expressaram a sua indignação face à morte de Nahel e nas redes sociais surgiram várias publicações com a hashtag #lapolicetue (a polícia mata).

O renomado jornalista de rap Mehdi Maïzi repudiou na sua conta de Twitter as mensagens de internautas de direita e extrema direita que tentam justificar a atuação da polícia: “Todas as pessoas aqui que encontram circunstâncias atenuantes nos polícias culpados pela morte de Naël: parem de me seguir, não são bem-vindos aqui, parem de ouvir rap, não são bem-vindos aqui, aliás, fechem as vossas contas”.

31 detidos na noite de terça-feira

No próprio dia da morte de Nahel, foram levadas a cabo várias iniciativas de protesto em cidades dos subúrbios de Paris, entre as quais Nanterre, Asnières e Colombes e Mantes-la-Jolie.

Duas unidades de força móvel, incluindo membros do CRS 8, especializadas no combate à violência urbana, foram deslocadas para Nanterre. Em conferência de imprensa, o ministro do Interior francês adiantou que mais de 40 carros foram incendiados, 31 pessoas foram detidas e 24 polícias sofreram ferimentos ligeiros.

Para a noite desta quarta-feira, as autoridades pretendem mobilizar dois mil polícias.

Num vídeo publicado no TikTok, a mãe de Nahel apela à realização de uma “marcha branca” na quinta-feira, 29 de junho, às 14h, em frente à autarquia de Nanterre.  O edil Patrick Jarry já anunciou que participará na iniciativa.