Morte de Nahel: estado de legítima raiva

01 de julho 2023 - 15:30

Se a lei permite hoje que as forças da ordem utilizem as suas armas de fogo sem obrigação de legítima defesa, a sociedade deve pelo menos reconhecer, em memória das vítimas, o direito à legítima raiva. Por Didier Fassin.

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Marcha branca" para exigir justiça por Nahel
Marcha branca" para exigir justiça por Nahel, realizada na quinta-feira em Nanterre. Foto Patrice Leclerc - phototheque.org

A reação do Presidente francês ao vídeo da morte de Nahel [em Nanterre], o adolescente baleado no coração à queima-roupa por um polícia, foi a de que se tratava de um ato "inexplicável" e "indesculpável". Mesmo que estas palavras tenham tido o objetivo de tranquilizar, nomeadamente uma mãe que acaba de perder o seu único filho, podemos interrogar-nos se foram certeiras.

Será que o ato é realmente inexplicável? Para os habitantes dos bairros populares, que vivem quotidianamente a agressividade da polícia, que têm conhecimento, ano após ano, das mortes por armas de fogo, estrangulamento, asfixia e acidentes em que estão envolvidos, que assistem às consequências de uma legislação que alarga constantemente as suas prerrogativas em detrimento dos direitos dos cidadãos, não há nada que os possa surpreender. Para eles, a banalização desta violência tem, de facto, uma explicação.

Violação do contrato

Mas será este ato indesculpável? Pelo contrário, tudo mostra que, na prática, estes homicídios ficam quase sempre impunes, que a primeira reação das autoridades policiais é ilibar os autores, que a culpa é transferida para as vítimas, que são apresentadas como criminosas, que o espírito corporativo leva os agentes que testemunham a defender os seus colegas e que, em última instância, na maioria dos casos nem as autoridades nem os tribunais encontram culpados. Se existe uma cultura da desculpabilização, como ouvimos frequentemente dizer sobre os jovens das classes populares, são certamente os polícias que dela beneficiam.

Nestas condições, os protestos que se exprimem nas ruas, incluindo através da destruição, não podem ser reduzidos a uma violência popular contra a violência policial, a uma vingança ou mesmo a uma vendetta, como disse um dirigente sindical. São o resultado de uma economia moral, se é que podemos usar este termo, que foi utilizado para descrever as revoltas dos camponeses ingleses no século XVIII contra os especuladores que agravavam a pobreza e provocavam fomes. O contrato social que vincula os membros de uma sociedade pressupõe um mínimo de respeito pela vida humana, a fortiori por parte dos agentes que devem protegê-la. Quando a polícia mata sem justificação, esse contrato é rompido.

Sentimento de indignação

É ainda mais escandaloso quando as mentiras servem para encobrir os factos. Foi o caso das declarações feitas pelo autor do crime, pelo seu colega e pela polícia, que só puderam ser refutadas pela existência de um vídeo amador, sem o qual a vítima tornar-se-ia culpada de tentativa de homicídio. Foi o caso das afirmações do Ministro do Interior perante a Assembleia Nacional, segundo as quais, desde a votação da lei de 2017, que autoriza o disparo por simples recusa de cumprimento quando os ocupantes do veículo são "suscetíveis de perpetrar, na sua fuga, danos à sua vida ou integridade física, ou à de outrem", os tiros da polícia e as mortes nestas circunstâncias diminuíram, quando, pelo contrário, aumentaram, segundo as estatísticas dos seus próprios serviços e, no caso dos tiros, quintuplicaram mesmo, segundo um estudo recente. É também contra esta normalização da mentira pública ao mais alto nível da governação que se exprime o sentimento moral da indignação.

Por isso, é preciso ter em conta o significado destas manifestações. Não para as justificar, mas para as compreender. Para alguns, elas parecem ser a única voz que resta para denunciar a dupla injustiça da brutalidade e da impunidade. Se a lei permite hoje que as forças da ordem utilizem as suas armas de fogo sem obrigação de legítima defesa, a sociedade deve pelo menos reconhecer, em memória das vítimas, o direito à legítima raiva.


Didier Fassin é antropólogo e sociólogo, professor na Universidade de Princeton e na Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais de Paris. Autor de mais de vinte livros, entre os quais Force de l'ordre. Anthropologie de la police des quartiers e Mort d'un voyageur. Une contre-enquête (ambos publicados pelas Éditions du Seuil). Artigo de opinião publicado no diário francês Libération, 29 de junho de 2023, republicado por A l'Encontre. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.

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