Tomo emprestado o título do livro de H. G. Wells para apontar algumas tendências em curso, tentando evitar projeções distópicas ou otimistas, por mais dramática que seja a situação presente. É a análise da realidade objetiva da crise sistémica em curso – provavelmente a maior em um século, que parece enterrar a globalização como a conhecemos –, que permitirá localizar brechas e contradições sobre as quais a ação política pode operar.
Confrontados com grandes urgências, tendemos a reduzir o nosso raio de visão ao que está a nossa frente – o desastre a que o bolsonarismo está a conduzir o Brasil, por exemplo. Mas as realidades nacionais estão, mais do que jamais na história, condicionadas por dinâmicas globais. Bolsonaro não existe sem Trump, e ambos são expressões de um mesmo macroprojeto – nacionalista conservador, neo-fascista ou, de forma mais apropriada, abertamente necropolítico – que emergiu no cenário mundial como resposta às determinações estruturais da estagnação económica da última década. O nosso ponto de partida deve ser a construção de categorias globais, para enriquecê-las no terreno nacional e local, onde se dá a ação política imediata, para, a partir daí, podermos voltar a um global analiticamente mais rico – terreno onde os confrontos ganham alcance estratégico e poderão, afinal, encontrar soluções mais duradouras.
Assim, para localizar as tendências em curso, precisamos situá-las em determinadas escalas (e densidades) do tempo histórico e do espaço, escalas variáveis que circunscrevem possibilidades maiores ou menores de atuação desde diferentes perspetivas. Isso leva-nos ao problema da periodização, central na história e na teoria crítica.
Organizando a narrativa histórica
A crise presente é uma crise da civilização vigente e em expansão há séculos. A modernidade sobrepõe-se, sem se identificar plenamente, ao capitalismo, e ambos se têm sobreposto ao Antropoceno (que também se tornou uma categoria da análise central). Ela é a crise de conjunto, sistémica e multifacetada, da primeira e até agora única civilização global da história humana.
Tomando 1492 como marco da “fundação” do mercado mundial capitalista e do mundo moderno (Enrique Dussel localiza na chegada violenta dos europeus à América o início da superação pela Cristandade de sua condição de periferia atrasada, agora “Velho Mundo”), podemos dizer que tivemos, até agora, três grandes períodos de crise do sistema-mundo capitalista (Wallerstein):
– entre 1610 e 1640, com a Guerra dos Trinta Anos culminando na derrota da dinastia dos Habsburgos, na afirmação das potências comerciais europeias como estados territoriais (e já não feudais) frente ao Império Otomano (então, junto com o Império Chinês auto-isolado, uma das duas maiores potências do mundo) e na estabilização do sistema interestatal europeu pela paz de Westphalia (1648). Foi nesse marco que o protagonismo holandês no comércio mundial e francês na política europeia passou a ser, depois de 1688, crescentemente contestado pela Inglaterra;
– entre 1776-1789 e 1814, na grande crise, revolucionária, que levou ao estabelecimento do modo de produção capitalista na Inglaterra e, na França, do estado nacional como forma paradigmática de organização política do mundo moderno. O Congresso de Viena (1815) sacramentou a hegemonia incontestada da Inglaterra vitoriana, a Pax Britanica, abrindo um século de relativa estabilidade na Europa e novas ofensivas coloniais na periferia; e
– entre 1914 e 1945, na Guerra de Trinta Anos do século XX, que culminou na consolidação da hegemonia estadunidense no capitalismo mundial e na acomodação, no interior da economia e da geopolítica mundiais, tanto da União Soviética, militarmente fortalecida, quanto do Império Britânico, exaurido pela guerra e pelos seus próprios limites políticos. Essa configuração foi possível porque o liberalismo anglo-americano se aliou com os socialismos soviético e social-democrata na luta contra o nacionalismo conservador militarista, fascista e nazi e derrotou-o dentro de uma reivindicação comum do projeto moderno, do racionalismo iluminista, do universalismo. Uma análise de como esses confrontos corroeram os parâmetros de civilização da Belle Époque liberal pode ser encontrada em A força da tradição – a persistência do antigo Regime (1848-1914), de Arno J. Mayer, e a análise da posterior "Era das Catástrofes" no artigo de Michael Lowy, Barbárie e modernidade no século XX e no livro de Enzo Traverso, Fire and Blood: The European Civil War 1914-1945.
A esquerda tendeu, seguindo Eric Hobsbawn, a ler o século XX como a época histórica iniciada pelos anos de crise de 1914 a 1945, estruturada depois num período de prosperidade e concluída pelo regresso das crises económicas recorrentes do capitalismo. O século se encerraria em 1991, com o colapso da URSS (daí a ideia do “breve século XX”, 1914-1991). Foi também o que fez Daniel Bensaid, em 1995, quando anunciou que entrávamos numa “nova época histórica”.
Mas, de facto, fazendo uma análise de longa duração (na escala secular ou multissecular) desde o olhar privilegiado de hoje, três décadas depois, vemos como a perceção de Hobsbawm ainda estava aprisionada pelo “paradigma de Outubro”. O recurso a essa perspetiva na análise geopolítica era a marca das posições “campistas” tão forte em Hobsbawm, membro do Partido Comunista Inglês, que via no sistema soviético a expressão de um “socialismo real”, que seria o fator fundamental de uma longa transição histórica da humanidade do capitalismo ao socialismo – cujo modelo seria a transição do feudalismo ao capitalismo. Esse “tipo ideal” weberiano permitiria classificar toda uma variedade de formações sociais – da chinesa à cubana, da norte-coreana à romena – como socialistas. Como este “campo” pesava nos conflitos internacionais, toda uma série de países com conflitos com os EUA, tendiam a ser assimilados a ele, de Angola à Síria, da Venezuela à Bolívia. Era uma visão teleológica da história, que confundia desejo e realidade.
Outro era o raciocínio de Bensaid, extremamente cuidadoso em sua relação com o legado comunista – ele falava de “deslocamento da União Soviética”. Ele não ignorava que havia uma mutação social envolvida, “o aparecimento de um capitalismo dependente”, porém a sua visão das transformações geopolíticas era mais ampla, incluindo o esgotamento do desenvolvimentismo por substituição de importações na periferia do capitalismo e a crise dos sistemas populistas. O que organizava a sua abordagem era, porém, a modificação nas situações e correlações de classe dos trabalhadores na passagem do capitalismo fordista-keynesiano para aquele da globalização neoliberal, tratada de forma sempre relacional – política e não sociológica. Para ele, como para Thompson, a classe constituía-se na luta e não se confunde com as estruturas estatais.
A estabilização do sistema internacional alcançada no fim da Segunda Guerra Mundial (negociada em Teerão, Yalta e Postdam) dá-se com a afirmação da hegemonia política da burguesia norte-americana – a partir do bombardeio atómico de Hiroshima e Nagasaki – e da sua autoridade económica num mercado mundial capitalista reintegrado sob a batuta de Washington, fiador dos acordos de Bretton Woods. Os EUA saíram da guerra com 50% da produção industrial do globo, um enorme poderio bélico e a capacidade de emitir a nova moeda do mundo. A hegemonia norte-americana consolidou-se face à Inglaterra no período fordista-keynesiano (a crise do Suez em 1956 é um marco da subordinação inglesa) e frente à União Soviética colapsada e transformada em Federação Russa uma década depois de iniciada a globalização neoliberal (com a queda do muro de Berlim e o colapso da URSS como marcos). Os anos 1990 caracterizaram-se pela unipolaridade norte-americana exercida nos marcos do controlo das organizações multilaterais de gestão do capitalismo.
De onde vem a ascensão chinesa
Esse exercício esquemático de análise estrutural e a decorrente periodização permitem colocarmos em perspetiva os processos e episódios históricos mais recentes. É, contraditoriamente, no período imediatamente pré-neoliberal e de implantação acelerada do neoliberalismo em todo mundo, entre fins dos 70 e fins do século XX, que a China, inicialmente a convite dos imperialismos ocidentais e associada a eles, inicia sua trajetória de mutação social, crescimento aceleradíssimo e construção de cadeias produtivas entrelaçadas com as nações primeiro do extremo Leste asiático e mais tarde também com os países periféricos do Sudeste.
A tentativa de restaurar o funcionamento regular do sistema depois da recessão de 2008, ao mesmo tempo que restabeleceu os ganhos das finanças das economias do Atlântico Norte, permitiu – graças ao enfraquecimento relativo da hegemonia americana e à decadência europeia – que a China desse mais um salto na sua estruturação nacional e no seu protagonismo global, naquilo que os dirigentes de Pequim chamaram de um “período de oportunidade estratégica” . O centro do dinamismo do capitalismo mundial está, há mais de uma década, na economia asiática, com a China articulando ao seu redor as estruturas produtivas e financeiras da região, aliando-se com a Federação Russa e expandindo-se economicamente na África e América Latina. A China também deu um salto na sua capacidade de inovação tecnológica nas áreas de ponta militares e do digital (acompanhadas de perto pelas análises de David Goldman no Asia Times).
O governo Obama procurou responder ao ameaçador crescimento chinês, tentando esvaziá-lo por via do Tratado da Parceria Transpacífica (TPP), firmado em 2015. Mas como parte do realinhamento geopolítico promovido pelo projeto Trump, o seu governo denunciou o acordo em janeiro de 2017, deixando o espaço vazio para o protagonismo de Pequim, que passou a colocar-se como campeão do livre comércio e da globalização económica face ao protecionismo nacionalista de Washington. Para dar materialidade à sua pretensão, a China acelerou o ambicioso programa, lançado em 2013, One Belt, One Road Iniciative – por vezes chamado de a Nova Rota da Seda.
Agora, a crise do coronavírus e a brutal recessão é percebida, de forma generalizada, como uma travagem abrupta na expansão do mercado mundial capitalista, deflagradora de uma profunda depressão, na beira da qual andava a economia desde 2008 (e sobre a qual paira não só a pandemia, mas também a crescente desigualdade social do capitalismo e a ameaçadora emergência climática). Formaliza-se e toma contornos quase bélicos uma nova disputa por hegemonia, numa bipolaridade trabalhada tanto pelos EUA como pela China.
Da mesma forma que escaramuças existiam entre a Alemanha, a França e a Inglaterra antes de 1914, desde 2016, um novo mundo podia ser antevisto (veja-se Trump: os frutos amargos da globalização e a análise do Pierre Rousset sobre o caos geopolítico), Mas as escaramuças agora estão a transformar-se em choques abertos. Pandemia, depressão económica, visibilização da desigualdade estrutural gerada pelo neoliberalismo, confronto geopolítico pela hegemonia no sistema-mundo e o horizonte cada vez mais próximo do colapso ambiental conjugam-se nesse annus mirabilis de 2020, quando toda a humanidade teve que consumir a “sopa de Wuhan”. Se a História, como grande niveladora, tarda, ela sempre comparece. O século XX não terminou com o colapso da União Soviética em 1991, ou no cerco de Sarajevo em 1992, como queria Hobsbawm, ele parece-nos, hoje, moribundo aos 106 anos de idade, depois de ter sido mortalmente contagiado pelo coronavírus.
Essa análise ainda teria que incorporar outros elementos. De um lado, a visão das ondas longas de acumulação (Mandel, Louçã e Freeman) e a sua relação com as constelações de inovações tecnológicas – em especial uma análise da revolução digital, que foi essencial para estruturar o neoliberalismo e principalmente a globalização e reerguer a economia e a hegemonia dos EUA depois de 1980. Estas constelações de inovações ou “revoluções tecnológicas” são, como destacam esses autores, não apenas transformações económicas, mas também sócio-técnicas e políticas. De outro, a articulação entre produção, destruição e conexão, em especial na “grande aceleração” do Antropoceno, formulada pelos ambientalistas e historiadores (Steffen, McNeill, Engelke, Pomeranz), base para compreendermos a ameaça muito real de colapso ambiental com que se confronta hoje a nossa civilização. Mas esses desenvolvimentos – centrais na dimensão também geopolítica – exigiriam aqui um detalhamento da argumentação que foge ao nosso propósito neste momento. E, por fim, o impacto sobre a sociedade moderna, da formação de um sujeito social popular interseccional, que lança um enorme desafio para todas as crenças tradicionais de cunho fundamentalista, raiz das guerras culturais – que discutiremos noutra ocasião.
Processos de longa duração convergem agora
Entramos num momento de condensação de processos de longa duração, que se vinham desenvolvendo de forma relativamente autónoma, em distintas velocidades, e que agora convergem explosivamente. Trata-se do encontro e interação de processos que alteram estruturalmente o mundo que se configurava ao redor das linhas de força estabelecidas em 1945 (quando os conflitos herdados do liberalismo clássico e mapeados por Arno Mayer foram resolvidos). Muito provavelmente 2020 será utilizado para datar o início do século XXI, para onde quer que esta ameaçadora configuração de determinações nos leve. É certamente, para usar a formulação de Michael Lowy, uma bifurcação na história, um momento de apostas altas de todos os atores políticos, num cenário de riscos de alta consequência.
Por maior que tenha sido o impacto ideológico na esquerda do fim da União Soviética, isso alterou pouco o que era a realidade social do neoliberalismo já estabelecida nos anos 1980 (com a derrota da greve de um ano dos mineiros ingleses em 1984/5). Do ponto de vista geopolítico, a aliança entre EUA e China já estava bastante consolidada, arquitetada por Kissinger e firmada em 1972, na visita de Richard Nixon a Pequim no auge da guerra do Vietnam. De facto, o grande elemento objetivo imediato na balança de poder mundial foi, então, a reunificação da Alemanha em 1990 e a posterior reestruturação do projeto da União Europeia sob a batuta de Berlim. Mas o impacto geopolítico e económico estratégico maior já se gestava muito mais ao Leste.
Não apenas a China cresceu, por meio século, numa parceria ampla com os Estados Unidos, como ela veio vertebrando a globalização neoliberal. A rutura dessa aliança reverbera em todas as esferas da sociedade global.
Ela remete-nos, com muita força, para uma disputa de hegemonia geopolítica global, na medida em que a China tem impulsionado um consistente programa de afirmação nacional. Os marxistas da revista Chuang – e há movimentos sociais críticos e uma esquerda marxista revolucionária que se desenvolveu também no Império do Meio – na sua vigorosa análise da formação da China moderna (Sorgo e aço: o regime de desenvolvimento socialista e a moldagem da China) mostraram que o discurso do poder posterior a 1949 foi parte desse projeto de desenvolvimento e construção nacional.
Nação e classe são as grandes categorias que competiram para organizar o mundo moderno depois de 1815 e localizá-las operando sob a superfície da economia capitalista e da política estatal, sem confundi-las (como faz o “campismo”), é o grande desafio da política de esquerda. Sem isso, o que prevalece é ou a tendência para a estatização da ação política dos explorados e oprimidos ou o espontaneísmo.
A disputa triangular de ontem
É central, para a ação política, compreendermos o que está em jogo. As disputas geopolíticas expressam projetos de classe, mas estas nunca são homogéneas; capitalistas, assalariados e inúmeros setores médios ou os excluídos do sistema são classes e setores heterogéneos e a hegemonia é a capacidade de uma classe com vocação de poder de se unificar e projetar a sua vontade e o seu poder sobre outras. O ponto de vista da totalidade é fundamental porque política não se confunde com sociologia, embora deva apoiar-se nela.
Normalmente não temos, em momentos críticos da história, uma disputa política apenas polar (a política carrega sempre o lastro da história, a sua inércia secular…), mas sim triangular, apesar dos confrontos serem quase sempre polares. Cada uma das linhas de força configura e reconfigura ao seu redor, correntes amplas, disputa uma pluralidade de formas, estabelece campos de síntese que condicionam desde cima, desde o mercado mundial como totalidade orgânica, as disputas regionais e nacionais.
Nos anos entre a I GM e a II GM, tivemos, paradigmaticamente, três grandes campos políticos – o do liberalismo, o do nacionalismo conservador e o do socialismo – que estabeleceram entre si acordos, traições e reviravoltas (o acordo Ribbentrop-Molotov, o ataque a Pearl Harbour…). O liberalismo antidemocrático do final do século XIX foi capaz, depois de 1930, de incorporar reformas, o que levou a que aceitasse o New Deal rooseveltiano; Churchill, um imperialista arqui-conservador, teve que se aliar com o trabalhismo para travar a II GM e depois a Estaline, para tentar salvar o Império. Nada disso estava dado de antemão, mas as correlações de forças e as lógicas implacáveis da luta de classes e da geopolítica impunham alianças improváveis.
Da mesma forma, o campo do nacionalismo reacionário, cujas primeiras expressões foram o fascismo italiano e múltiplas ditaduras no Centro e no Leste da Europa, abarcava igualmente o militarismo expansionista japonês (que desencadeou, com a invasão da China, em 1937, a II GM dois anos antes da invasão alemã da Polónia) e finalmente foi organizado sob a direção do nacional-socialismo alemão, que também aplicava políticas anticíclicas “keynesianas”, bastante populares na segunda metade dos anos 1930.
E o socialismo era o comunismo de comando do Estado soviético, estalinizado, que produziu coletivizações forçadas, fomes, gulags e a mobilização militar nacional russa contra o nazismo; mas era também uma heterogénea social-democracia, o anarquismo e uma multiplicidade de movimentos e formas de organização dos trabalhadores e da esquerda, alicerçados na organização social e nas referências ideológicas construídas no final do século XIX e início do século XX. Mike Davis analisa, em seu insubstituível Old gods, new enigmas, como o movimento do trabalhadores se constituiu, frequentemente organizando-se como uma contra-sociedade ao terreno das instituições burguesas, em força política capaz de disputar um projeto de sociedade.
Já se chamou esse período de era das ideologias e foi-o efetivamente; aí se disputaram abertamente três projetos de sociedade duradouros. E felizmente o mais regressivo deles foi afinal esmagado, ainda que ao custo de 70 milhões de mortos.
[Um parênteses: Não há como entender uma época histórica plenamente senão em retrospetiva. Os contemporâneos, por mais brilhantes que sejam, têm sempre uma visão limitada dos processos em que estão envolvidos. A reconstituição da totalidade de uma época só pode ser feita a posteriori, fruto da reflexividade histórica e de uma investigação científica cuidadosa. Para entendermos a génese do século XX com o distanciamento histórico necessário, a leitura de Teodor Shanin, Moshe Lewin ou do já citado Arno Mayer, A força da tradição – a persistência do Antigo Regime (1848-1914), é essencial.]
A disputa polar de hoje
Uma interpretação que carrega algumas analogias com esse período pode ser útil para iluminar o mundo contemporâneo. O projeto neoliberal era uma utopia cosmopolita, fantasiosa por certo, mas portadora de uma promessa de futuro. Ela foi teorizada por Francis Fukuyama, mau filósofo mas bom propagandista: nada seria capaz de ultrapassar em eficiência e liberdade o mercado capitalista e a democracia liberal como horizonte histórico – o que nos anos 1990 chamávamos de “pensamento único”. Setores capitalistas, como a burguesia financeira e de Silicon Valley, eram e são arautos da trilogia da modernidade liberal: produzir, consumir e enriquecer. Vendem-se novos estímulos, emoções, experiências e conectividade. Mas isso sucede nos marcos do globalismo, do livre fluxo de capitais, mercadorias e informações, de novas formas de exploração, do multiculturalismo e do culto da modernidade como inovação tecnológica e progresso universalizante, porque essa é a base material da sua existência como classe.
Isso não significa ignorar os efeitos deletérios da mercantilização do mundo, que ganharam consistência depois dos anos 1990, difundindo a lógica da competição, da privatização e do empreendedorismo de si para todas as esferas da sociedade e estabelecendo uma “nova razão do mundo” (o neoliberalismo 2.0 analisado por Dardot e Laval). Nem que a aplicação das novas tecnologias nos marcos do capitalismo globalizado tende a sucatear grande parte do mundo do trabalho pré-existente, produzindo bilhões de vítimas. Mas que essas dimensões negativas estivessem a ser minimizadas há décadas na ordem social é precisamente a expressão da capacidade de hegemonia desse projeto globalizador.
Se tomamos esses elementos, em sintonia ou não com a ideologia de Fukuyama, vemos que esse norte globalista orientou toda uma diversidade de iniciativas políticas díspares: Reagan e Thatcher, mas também Clinton, Fernando Henrique Cardoso e Tony Blair, depois Bush e Lula e, hoje, Pedro Sanchez na Espanha, Angela Merkel na Alemanha e, mesmo, Xi Jinping na China. Exatamente por representar esse horizonte, essa bússola, o globalismo do neoliberalismo foi capaz – com ainda mais força que o liberalismo antidemocrático do século XIX – de desconstruir a esquerda anterior: primeiro o comunismo soviético foi reconvertido em capitalismo mafioso, depois a socialdemocracia integrada na “Terceira Via” e, por fim, o progressismo latinoamericano (nas suas variantes sociais-liberais ou bolivarianas) aderiram a ele e trabalharam no seu interior, como social-liberalismo. Esses diversos setores podiam ser mais progressistas ou mais regressivos no trato das relações com o trabalho, aplicando políticas neoliberais de desregulamentação e precarização, políticas de inclusão pelo mercado como consumidores ou privatização de mais ou menos setores. Mas todos aceitavam a inevitabilidade do horizonte globalista.
Lembremos que Lula implementou, no seu primeiro ano de governo, a reforma da previdência e manteve, durante todo seu mandato, o tripé macro-económico formulado no governo de Fernando Henrique Cardoso (política de câmbio flutuante, metas fiscais e metas de inflação). Dilma aplicou em 2015 uma terrível política neoliberal de austeridade. Elas coexistiram com políticas sociais progressivas: a elevação do salário mínimo, o Bolsa Família... Essas orientações foram implementadas dentro da visão política globalista, com as suas opções neo-extrativistas, desindustrializantes e de inserção dos excluídos no mercado como consumidores – políticas comuns por diversas partes da periferia do capitalismo e que por toda a parte reforçaram as bases sociais da extrema-direita (o progressismo canibal, para recuperar a análise de Gudynas). Isso sucedia dentro da lógica de inserir de forma competitiva os seus países na economia mundial – que, para isso, tinham (e ainda têm) exatamente que defender essa inserção, isto é, colocar-se como parte do projeto globalista.
Por não serem suicidas, vários setores globalistas flirtam (também de maneira desigual) há quatro décadas com os discursos de desenvolvimento sustentável ou capitalismo verde, sem querer, todavia, arcar com o ónus de uma transição ecológica efetiva – que, sabem, exige uma gigantesca queima de capitais e gera enormes conflitos. Para os EUA de Clinton e Obama, eliminar a economia fossilista representava o mesmo desafio que para o Brasil de Lula e Dilma eliminar o agronegócio e a mineração neo-extrativistas. Vai-se contemporizando e fortalecendo um “aliado” que depois o apunhala.
Na ausência de alternativas de esquerda – que hoje tem que ser ecossocialistas ou se tornam inócuas – que dêem canais de participação, expressão política coerente e sentido de acumulação estratégica a uma forte conflitividade social, a crítica ao globalismo foi capitalizada por projetos políticos nacionalistas conservadores, usualmente xenófobos, racistas e supremacistas, neofascistas ou pós fascistas, necropolíticos, que galvanizam uma revolta popular contra a modernidade por parte de inúmeras vítimas da globalização. A globalização neoliberal alimentou um grande dinamismo social – mais evidente na Ásia – mas também criou legiões de derrotados: setores capitalistas deslocados pela dinâmica da acumulação; vastos setores de capitais em risco pelas pressões ambientais; parcelas das classes operárias desconstruídas nos países europeus, nos EUA e em países da semiperiferia (como o Brasil); parcelas dos setores médios conservadores que se sentem ameaçadas pela perda de privilégios, pelo ingresso de novos segmentos no consumo ou pelo protagonismo social de mulheres, negros, lgbts numa sociedade mais pluralista; correntes fundamentalistas religiosas ameaçadas por uma sociedade mais multicultural. Não faltam, na perda de impulso do globalismo e de alternativas de esquerda, bases para esse fascismo contemporâneo marcado pela necropolítica.
Mas as alternativas de extrema-direita não podem ser universalistas; são e permanecem sendo minoritárias na sociedade, necessitando apoderar-se em golpes de mão do Estado para procurarem prosperar. Foi o domínio das tecnologias digitais e sua atuação na psicopolítica que permitiu que esses setores se apresentassem como alternativas políticas, adaptando-se em cada realidade nacional aos termos da disputa simbólica – num sentido mais amplo do que apenas ideológica. As políticas de ódio no século XXI já não se dão apenas em nome da defesa de alguma forma de comunidade ameaçada (embora elas tenham, frequentemente, uma base social cuja coesão é dada por alguma religião, elas normalmente apresentam uma afinidade eletiva com um individualismo egoísta, niilista e ressentido de hoje, frequentemente secular), mas como pregação do medo masculino ligado à manifestações de darwinismo social e de uma vontade de poder que configura uma revolta contra todo o projeto de cunho universalista. As raízes irracionalistas e cínicas desse projeto foram bem localizadas por Wendy Brown no quinto capítulo de Nas ruínas do neoliberalismo). Os nacionalismos conservadores de hoje, na grande variedade de formas que assumem, são, como os do passado, revoltas contra a globalização, revoltas contra a modernidade como se constituiu desde a II GM e um ataque preventivo às políticas para evitar o colapso do Antropoceno. O caráter cada vez mais anti-ambiental, misógino e necropolítico que adquirem dá um sentido literal a que se represente a luta contra elas como a luta da civilização contra a barbárie, do cuidado e da vida contra a destruição e a morte.
Campos de força desse tipo – liberalismo, nacionalismo conservador e socialismo – não se confundem com ideologias políticas, embora as alicercem, mas são estruturas mentais muito mais profundas, visões sociais de mundo ou regimes de produção de verdade coextensivos à modernidade. Para além da realidade sistémica que constitui objetivamente capital e trabalho no mundo moderno em toda a sua variedade de formas sociológicas, é no espaço da liberdade de ação de sujeitos humanos, no espaço da “constituição imaginária da sociedade”, que se conforma o terreno da política. Um dos ganhos epistemológicos da análise empreendida por Michael Lowy e Daniel Bensaid é perceber como o socialismo (e, dentro dele, o marxismo) se constituiu nas tensões entre iluminismo e romantismo, estrutura e práxis. Mas tensões de naturezas análogas permeiam o liberalismo e o nacionalismo conservador como visões de mundo.
O que quer a burguesia liberal contemporânea? Manter a ordem social vigente, se necessário com reformas para adaptar-se aos desafios da época, mas sem comprometer a estabilidade do mundo e os fundamentos de seu poder. Ela quer alterar as relações sociais de produção e poder fundamentais? Não! Pode conviver com a socialdemocracia ou com o progressismo? Sim, na medida em que determina sua política. Pode fazer reformas mais profundas para se manter no poder? Sim! Mas só fará isso se for forçada e resistirá a elas enquanto puder. E, ao proceder assim, abre espaço para a extrema-direita. Surpreendida e hoje na defensiva, ela busca restaurar o que foi a política hegemónica até 2016, o globalismo neoliberal. Pode fazer isso? Não, porque as condições vigentes até 2016 não existem mais. Isso torna-a na mesma coisa que a extrema-direita? Certamente não. Desloca-se para a direita? Certamente sim. O que há, afinal, à esquerda que sirva de contrapeso às pressões da extrema-direita?
O que quer a extrema-direita? Criar um mundo distinto, onde os setores que estão a perder posições, privilégios ou poder, possam manter ou recuperar estas posições de privilégio ou poder; do seu ponto de vista, um mundo onde caibam tod@s com dignidade e preservação da natureza é um mundo inaceitável. Para ela, eliminar parte da humanidade não parece ser um problema – daí ser coerente considerá-la como a portadora por excelência da necropolítica. Ela foi construindo as suas posições desde os anos 1990 e ganhando protagonismo neste século. Naomi Oreskes e Bruno Latour demonstraram de forma incontestável que a consciência da crise ambiental, que coloca um desafio existencial para setores fossilistas da burguesia, tornou-se cada vez mais central na ação política desses setores. Ela gera uma reação desesperada, que destila novas formas de darwinismo social, que dialogam com ressentimentos profundos ou com formas de cinismo.
As alterações climáticas não parecem representar o mesmo desafio existencial para o capitalismo de Silicon Valley, as finanças globais ou mesmo para o capitalismo de estado chinês – poderiam inclusive ser novos mercados, dependendo do tipo de resposta que se dê – mas representam-no para as corporações de combustíveis fósseis, a grande agropecuária e outras indústrias altamente poluentes ou predatórias. Da mesma forma, esses setores do capital não têm problema algum com o multiculturalismo e com a integração das classes afluentes como consumidoras numa dinâmica de acumulação cosmopolítica – mas isso parece representar a morte do modo de vida em que se apoiam religiões fundamentalistas. As lideranças políticas têm sempre autonomia frente às frações de classe que representam e Trump, Bolsonaro ou Modi não são diferentes. Têm as mais variadas origens e enraizamentos nacionais, mas alimentam-se das resistências conservadoras ao que a globalização neoliberal veio produzindo nas últimas décadas, nesses casos simbolizadas pelos EUA de Obama, o Brasil de Lula ou a Índia do Partido do Congresso (todos globalistas neoliberais ou social-liberais).
A esquerda ausente
O elemento ausente na atualidade para instalar uma nova disputa triangular é uma esquerda anti-sistémica análoga, na sua radicalidade crítica e lugar político que ocupou, àquela que se colocou na disputa no final do século XIX e início do século XX.
Uma crítica pela esquerda à globalização neoliberal emergiu, em 1999, nos protestos de Seattle contra a OMC, dando forma ao altermundialismo, que se manifestava cada vez que uma cúpula multilateral se reunia e no processo do Fórum Social Mundial, mas ele não foi capaz de ganhar força para pesar na balança de poder do mundo, em especial depois da invasão anglo-americana do Iraque em 2003. O processo ainda revelou dinamismo em 2009, no FSM de Belém, que marcou – junto com a Conferência de Cochabamba em 2010 – o momento de ruptura desse processo com o progressismo e da incorporação do ambientalismo, dos povos indígenas e dos povos sem Estado com protagonistas do processo. Mas retomado em Túnis, em 2013, nos marcos das mobilizações nos países árabes, não recuperou o papel estruturante global de antes.
Na sequência, o espaço da esquerda crítica foi ocupado por movimentos autónomos que, entre 2011 e 2013, mobilizaram multidões em diversos países e derrubaram regimes ditatoriais no mundo árabe, mas não foram capazes de se dotarem de formas de organização duradouras. Iniciativas institucionais que procuraram dialogar com essas mobilizações, como o Syriza e o Podemos, foram cooptadas pela ordem globalizadora, no primeiro caso de maneira particularmente desmoralizadora.
Uma nova conflitividade social dos movimentos anti-austeridade, feministas, ambientalistas e anti-racistas veio num crescendo desde então. O movimento #BlackLivesMatter surge em 2013 e ganha as ruas no ano seguinte nos EUA. O movimento contra o aquecimento global recupera-se das frustrações da COP de Copenhaga em 2009; a Igreja Católica acolheu parte da nova realidade de maneira bastante consistente – Encíclica Laudato Si, Sínodo da Amazônia; e o ambientalismo sofre uma mutação militante em 2018 com a formação de uma nova geração de organizações baseadas na desobediência civil – do Fridays for Future ao Extinction Rebellion. Uma nova vaga do feminismo, interseccional e internacionalista, ganha forte protagonismo em muitos países. Movimentos de mulheres e indígenas têm reforçado as suas organizações, solidariedade e campanhas internacionais. As relações sociais de reprodução e cuidado com a vida no sentido mais amplo (daí a universalidade dos termos adotados pelo Vaticano – Criação, Casa Comum – ou por Greta Thumberg – a nossa casa está em chamas) tornaram-se tão importantes quanto as relações sociais de produção no confronto com a necropolítica.
Em pelo menos dois casos, essa efervescência fortaleceu as críticas de esquerda consistentemente reformista que se organizaram em espaços tradicionais da ordem, como a liderança de Corbyn no trabalhismo inglês e de Sanders no Partido Democrata nos Estados Unidos – que não foram, todavia, capazes de ganhar impulso suficiente e acabaram derrotadas dentro desses espaços burocráticos. As hipóteses que esses movimentos se deslacem como o Syriza e o Podemos não são pequenas.
Essa conflitividade social permanece ativa como pano de fundo da fervura social, acumulando-se na panela de pressão dos confinamentos (parciais) da pandemia, confinamentos que são cuidado apenas para a minoria da humanidade que os pode fazer porque não foi precarizada. Só é possível confinamento para todos com justiça social. Não por acaso, EUA e Brasil são os países com maior número de infetados pela covid-19. Mas a fervura continua a aumentar, como mostram os gigantescos protestos contra o racismo e a violência policial que sacodem hoje as cidades norte-americanas, mesmo com o vírus ativo. A mobilização política terá que se adaptar ao novo cenário.
Que bússola utilizaremos?
Se entramos numa época histórica que tende a ser a grande crise do século XXI, um período prolongado de conflitos, impasses e desagregação das estruturas anteriores, que bússola utilizaremos para rearticular um projeto político anti-sistémico? Certamente não a que foi usada na constituição da classe trabalhadora como sujeito político na passagem do XIX para o XX, enraizada em relações sociais e forças produtivas específicas que foram bem descritas, como mencionado, por Mike Davis e que fazem parte das névoas da história.
É preciso assumir que grande parte da esquerda foi neutralizada, integrada ao globalismo, ou tornou-se obsoleta, na medida em que é incapaz de compreender o tempo e o espaço do Antropoceno, dos trabalhadores tornados empreendedores, das plataformas, algorítmos e vigilância, do género e da raça como estruturantes fundamentais da ação revolucionária, do coronavírus, do horizonte ameaçador do colapso ambiental, da busca pela democracia real já pelas novas gerações que não têm perspetiva de futuro. Fazer as escolhas corretas quando as bifurcações se apresentam sempre foi o grande desafio.
Para assumir esse compromisso com o presente é preciso superar uma certa mentalidade de estado de sítio e saber lidar afirmativamente mesmo com as condições mais adversas: as alternativas sistémicas – plurais – emergirão das contradições que se vêm manifestando com mais força no nosso tempo e dos processos de formação de sujeitos reais, ativos – igualmente plurais –, que podem permitir estruturar o terceiro campo, a alternativa sistémica hoje ausente como projeto político. Elas emergirão apenas se forem capazes de disputar imaginários e horizontes para a humanidade, a vida e o planeta nas ruas e nas redes, com pluralismo e radicalidade.
Recuperemos, para finalizar essa contextualização, uma citação de Daniel Tanuro: “A crise do coronavírus não tem precedentes. Não pode ser entendida nem como uma crise sanitária, nem como uma crise socioeconómica, ou mesmo como uma combinação de ambas, mas apenas na realidade de uma crise global, ao mesmo tempo sanitária, social, económica e ecológica, ou seja, sistémica. Esta crise é, de facto, a primeira crise verdadeiramente total, a primeira crise do Antropoceno. Como tal, marca uma viragem histórica de maior importância e coloca a humanidade mais claramente do que nunca diante de um dilema fundamental da civilização: ecossocialismo ou barbárie”.
José Correa Leite é cientista político, membro do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Brasil. Artigo publicado por Insurgência, 31 de maio de 2020.