"O desafio desta crise é planear democraticamente a transformação da economia"

Devido às falhas do mercado e ao desenvolvimento das tecnologias da informação, o planeamento económico democrático é mais urgente do que nunca. É a forma de construir uma sociedade livre da ditadura do capital e de enfrentar a crise ambiental. Entrevista com Cédric Durand.

04 de maio 2020 - 21:17
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Cédric Durand num debate em 2015.Foto de Attac Essone.

A falência do mercado

Esta crise sem precedentes do coronavírus parece expor de forma clara os limites da gestão da sociedade de mercado e, portanto, a necessidade de um planeamento. Como analisa esta situação?

Cédric Durand: Durante as décadas do neoliberalismo, o mercado foi ornamentado com todas as virtudes: a eficiência na distribuição de recursos, o dinamismo da concorrência, a diversificação de produtos de consumo. A atual crise mostrou que o mercado também tem sérias limitações.

Num contexto de emergência, a coordenação da atividade pelo preço é inadequada. O fracionamento mercantil é incapaz de alcançar objetivos limitados, mas imperativos: produzir máscaras, gel hidroalcoólico, testes de triagem, respiradores, distribuir os stocks de medicamentos. Existe uma evidente necessidade de centralização. O apelo geral ao resgate é dirigido às autoridades públicas. É uma demanda por uma ação coletiva que transcende e que se impõe aos atores privados. Essa demanda procede de uma lógica de prioridade económica que é contrastante com a lógica de tatear do mercado.

Esta natureza relativamente anómica do mercado decorre de um viés de curto prazo que o torna incapaz de levar em conta o longo prazo. Faltam reagentes para produzir testes porque a produção destes é na Ásia. Mas por que motivo foi essa produção terceirizada? Porque as empresas racionalizaram os custos e otimizaram as suas cadeias de valor.

São necessárias economias imediatistas para lidar com a pressão competitiva e atender às exigências de desempenho dos mercados financeiros. Esse comportamento é eficaz de um ponto de vista estático, mas tem uma ineficácia dinâmica. Cadeias de abastecimento just-in-time, processos produtivos dispersos e reservas estratégicas débeis vulnerabilizam o tecido social e produtivo e prejudicam a sua capacidade de adaptação caso haja uma mudança repentina na situação. Hoje vemos que a robustez requer redundância ou, por outras palavras, que a eficácia a curto prazo é a ausência de resiliência.

Finalmente, seja a questão da urgência ou da resiliência, o problema colocado é o da centralização da coordenação económica. Com o neoliberalismo, são os mercados financeiros que têm a função de tornar coerentes os múltiplos planos perseguidos pelas empresas e pelos indivíduos. No entanto, para resoluções de longo prazo ou para lidar com uma crise, os mercados são inadequados. Diante de uma incerteza radical ou de problemas que surgem num horizonte distante, os mercados adotam um comportamento errático: é a cegueira diante do desastre das mudanças climáticas que faz com que os mercados continuem a desenvolver reservas de hidrocarbonetos inutilizáveis, são também os movimentos abruptos de “ioiô” dos últimos dias que mostram uma incapacidade de entender a crise atual.

Na situação em que nos encontramos, o prisma dos rendimentos atualizados que serve como uma bússola para os investidores não é certamente um bom ponto de vista. Seria, por outro lado, razoável encerrar as bolsas ao invés de deixar a sua instabilidade ampliar o pandemónio.

Está a fazer um apelo para que haja mais Estado, mas o que vemos acima de tudo é o despreparo das autoridades públicas...

Onde fica o quartel-general contra a pandemia? Quais são os órgãos responsáveis por identificar recursos e organizar a sua mobilização? Por que razão, na França, a participação da indústria no esforço é feita de forma voluntária e não por requisição? O que esta crise realmente revela é o enfraquecimento do poder público.

O caos no topo do Estado não é apenas o resultado da incompetência do governo. Décadas de austeridade e de novas gestões públicas reduziram a capacidade da administração pública de responder e servir de forma consciente os interesses fundamentais das pessoas.

É uma questão de meios e uma questão de desmoralização. Maltratados, mal remunerados, frequentemente descredibilizados, funcionários públicos e de organizações para-estatais foram sendo privados da oportunidade de exercer as suas missões de forma eficiente. Hoje em dia, estamos a pagar o preço humano nos hospitais e nos lares com a multiplicação de mortes evitáveis.

A situação das pessoas isoladas e vulneráveis também é muito preocupante, devido ao enfraquecimento dos serviços sociais e à magreza dos orçamentos dos governos locais. Mas isso também ocorre em outros âmbitos. Por exemplo, a inspeção do trabalho que agora não possui meios para garantir que as condições de trabalho dos funcionários que mantiveram as suas atividades sejam salvaguardadas.

De uma maneira menos dramática, as fraquezas do sistema educacional acumuladas ano após ano são evidenciadas neste período de dificuldades. Da escola para a universidade, o investimento na transição digital tem sido muito insuficiente, de tal modo que as condições para uma migração pacífica para programas temporários de educação à distância não são cumpridas, colocando as famílias e os corpos pedagógicos em situações grotescas.

Em suma, enquanto vai expondo as limitações dos mercados, a crise do coronavírus destaca uma necessidade premente de serviço público. Hoje sentimos que o serviço público é um bem comum. É a ajuda com que todos podem contar em todas as circunstâncias, porque pertence a todos.

A este pensamento de curto prazo, portanto, responde a necessidade de um planeamento. No entanto, ainda assistimos à oposição de muita gente sob o pretexto de que esse planeamento produtivo seria impossível devido à complexidade do mundo. Mas o Cédric mostrou que agora temos os meios técnicos para tomar em conta essa complexidade…

A grande objeção ao planeamento é a sua suposta ineficácia na gestão da informação. Esse é, em particular, o argumento do maior pensador neoliberal, Friedrich Hayek, para quem o mercado é um mecanismo social que permite revelar informações dispersas e processá-las: graças aos sinais recebidos, os agentes podem superar a infinita complexidade do reino social e tomar decisões.

A essa doxa neoliberal podemo-nos opor por razões práticas e teóricas. Mesmo que possa parecer algo um pouco trivial, é preciso referir que o planeamento funciona: não foi o mercado que regeu o esforço de guerra dos Estados Unidos contra os nazis, mas sim uma economia de guerra planificada. Na França, a reconstrução e a recuperação após a Libertação foram baseadas na planificação, que apesar de ser apenas indicativa, era, no entanto, muito restringente, principalmente através da política de crédito.

Na URSS estalinista, à custa de uma brutalização inaudita da sociedade, o planeamento permitiu uma rápida industrialização. Ainda hoje, o planeamento está longe de desaparecer: na China, a poderosa Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma (CNDR) continua a elaborar planos quinquenais que desempenham um papel fundamental na orientação do desenvolvimento socioeconómico.

É verdade, contudo, que a partir do final da década de 1960, os mecanismos de planeamento integral nos países do Leste deram sinais cada vez mais visíveis de disfunção. Com a sofisticação dos processos económicos e das expetativas sociais, os planos enfrentaram duas armadilhas principais: a falta de democracia e a capacidade limitada de cálculo. A ausência de democracia levou a um desenvolvimento desequilibrado, uma ditadura sobre as necessidades, usando a expressão da filósofa Ágnès Heller, em que as demandas do setor industrial militar esmagaram as da população e sufocaram todas as preocupações ecológicas, por mais que tenham estado presentes após a Revolução Russa.

A segunda limitação é informacional, ou seja, exatamente onde estava a objeção de Hayek. Incapaz de mobilizar a tecnologia da informação que ainda estava numa fase embrionária, o processo de planeamento burocrático tornava-se mais pesado, extremamente demorado e sujeito a vários erros, atrasos e manipulação. A gestão da incerteza era particularmente problemática: eventos imprevistos demoravam a voltar ao centro, causando desequilíbrios crónicos, desperdícios maciços que, somados às disfunções, alimentavam circuitos paralelos.

Mas nós já não vivemos na pré-história da tecnologia da informação! Hoje, a maioria das trocas económicas é duplicada por vestígios digitais processados automaticamente. A maior parte do argumento informacional cai por terra. De facto, o setor privado faz um uso extensivo de alguma forma de planeamento. No presente, a Amazon e o Walmart processam milhares de vezes mais dados do que o Gosplan soviético. Estas multinacionais têm os meios para ajustar os seus processos de negócio em tempo real, em função das condições flutuantes do mercado. A questão fundamental que surge no planeamento contemporâneo já não é a dos limites de informação, mas a da democratização da coordenação algorítmica, cada vez mais dominada por algumas empresas monopolistas.

Era preciso responder finalmente a Hayek que existe um tipo de conhecimento que o mercado ignora completamente, o que resulta da deliberação. Para avaliar riscos não sujeitáveis a cálculos de probabilidades, escolher trajetórias económicas e ecológicas comuns e decidir sobre a qualidade das relações sociais, ter uma soberania individual mediada pelas trocas de mercado não ajuda em nada. Não há outras soluções que não a conformação de pontos de vista através do confronto de argumentos.

Voltando à situação económica, é errado dizer que o modo de produção é demasiado complexo para que se estabeleça um planeamento capaz de responder às urgências do momento. Existem organismos de centralização da informação extremamente poderosos no setor privado. O Google, é claro! Mas não só. As grandes empresas do setor automóvel, de distribuição em massa e da eletrónica também controlam os sistemas de informação, o que lhes dá uma visão panótica da atividade e dos stocks nos vários estádios das cadeias de valor. Dito de outra maneira, se houver vontade política para fazê-lo, as autoridades públicas poderão aproveitar essas capacidades e colocá-las ao serviço das prioridades definidas ao nível central.

Que planeamento para o amanhã?

Para o futuro, essa necessidade de planeamento parece impor-se, justamente porque possibilita gerir riscos que não podem ser tomados em consideração pelo mercado...

A crise resultante da epidemia do Covid-19 ensinou-nos uma vez mais que também devemos ser capazes de pensar e reagir coletivamente, enquanto comunidade, enquanto espécie. O imperativo não é individual e não faz sentido confiar na racionalidade dos consumidores. É um aviso. Não será apenas necessário assumir a prevenção e a gestão de riscos da pandemia, mas também cuidar da fragilidade das nossas sociedades. Tornar-nos mais conscientes da importância dos vínculos que nos ligam e da nossa co-dependência da biosfera deve levar-nos a reduzir o papel do mercado.

Precisamente que tipo de planeamento poderia agora responder a esta nova situação?

O modelo soviético colocou problemas de democracia interna e de adaptação das forças produtivas. O modelo de planeamento francês foi interessante, pois estabeleceu uma deliberação que permitia promover a coordenação da economia de mercado. Pode ser um modelo de transição. Mas o ponto que quero enfatizar é que o planeamento para o futuro terá de ser necessariamente democrático. Planear, para um país, para um território, é escolher um destino comum. É, assim, um exercício com alta intensidade democrática.

Também é preciso ter em mente que, se a planificação rima com centralização, esta também deve ter a capacidade de se adaptar às formas de policentrismo: diante dos mesmos problemas ou dos mesmos objetivos, os territórios devem ser capazes de testar várias soluções. Na França, a energia nuclear é um contra-exemplo perfeito: o desenvolvimento planeado dessa indústria levou a uma forma perigosa de monocultura. O planeamento para o século XXI, portanto, gera um ecossistema em que as instituições permitem, através da deliberação, decidir sobre prioridades económicas e garantir uma variedade de modos de produção e de consumo. Este é um assunto sobre o qual trabalhamos com colegas sociólogos e economistas há dois anos como parte de uma série de seminários intitulados “Planear os bens comuns”.

... E a necessidade de confinamento leva-nos a rever a ligação entre o planeamento e as liberdades. Por último, se hoje somos privados da liberdade de movimento, é devido à falta de planeamento?

Sim, essa observação é bastante legítima. Os liberais ainda percebem a liberdade na forma de garantias legais e monetárias do ponto de vista individual. Hoje, no entanto, podemos ver que a liberdade também se baseia em garantias coletivas e, em particular, num sólido setor de saúde pública.

Este período levará a uma mudança no quadro económico?

Eu acho que estamos a passar por um grande choque ideológico. Por exemplo, a 23 de março, o economista-chefe da OCDE, Laurence Boone, assumiu uma posição completamente inimaginável num artigo publicado pelo Financial Times há apenas algumas semanas. Propõe que “o aumento da despesa pública seja financiado por um aumento permanente da oferta de moeda criada pelos bancos centrais, que poderia substituir os programas financiados pela dívida”. Insistiu que “essa abordagem não nos deverá fazer recear inflação enquanto o crescimento permanecer abaixo do seu potencial”. Por outras palavras, trata-se de nos dar os meios financeiros para curar as feridas sociais e económicas da atual crise sem passar pelos mercados ou através do aumento da dívida pública. Esta declaração assume o completo oposto do dogma das “finanças sólidas”, que visa, na realidade, garantir ao setor privado o monopólio do financiamento da economia. Dito de outro modo, e resumidamente, este discurso afasta a argumentação da responsabilidade orçamentária e do “ónus da dívida para os nossos netos”, de que somos inundados ad nauseam para justificar medidas de austeridade e a limitação de serviços públicos.

No fundo, essa posição é o mesmo que justificar a Teoria Monetária Moderna (TMM), que insiste em que não há limitação financeira à prosperidade, mas apenas limitações reais. Recursos naturais, competências, meios de produção e, claro, pessoas disponíveis para trabalhar são os únicos limites reais à riqueza coletiva.

Esta crise, portanto, traz ao de cima os instrumentos de política económica que até agora haviam sido descartados. É fácil entender por que motivos isso constitui uma oportunidade de virar definitivamente a página do neoliberalismo. Mas não deve haver quaisquer ilusões. Nada acontecerá sem lutas sociais e políticas. E, por enquanto, se mantivermos os montantes mobilizados, podemos apenas observar que o maior apoio é novamente concedido pelos bancos centrais aos mercados financeiros, ao setor bancário e às grandes empresas.

O objetivo das autoridades continua a ser o de salvar a economia tal e qual como ela é, na sua estrutura atual. Estrutura desigual, antes de tudo, já que a prioridade recai sempre sobre as empresas e os investidores; segundo, interferindo no limite da rutura social e com sérios problemas para os mais carenciados. Estrutura produtiva, de seguida, evitando o Estado anunciar que quer pesar nas escolhas produtivas.

O pior seria continuar a caminhar rumo a um resgate uniforme da economia, tal como o período após 2008 era apenas uma fuga em frente, tendo as autoridades públicas vindo a apoiar uma hegemonia financeira periclitante. Por outras palavras, seria irresponsável, agora que os aviões estão em terra, querer recuperar o setor do transporte aéreo ao ponto em que estava antes da crise. O mesmo é aplicável à indústria automóvel ou à produção de pesticidas. Se a proteção dos trabalhadores deve ser a prioridade, deve surgir o quanto antes a questão da reestruturação dos setores prejudiciais da economia e um plano de investimento e desenvolvimento em favor daqueles cuja importância consideramos hoje ser vital.

A imensidão de meios demonstra que é possível intervir de forma massiva e deliberada na economia, sendo politicamente urgente garantir que essa mobilização seja uma oportunidade de redirecionar a atividade para um novo modo de desenvolvimento composto por serviços públicos fortes, empregos úteis e de qualidade, re-alocação de atividades e preservação da biosfera. Em suma, o desafio desta crise não é salvar a economia, mas sim planear a sua transformação.

Cédric Durand é economista, membro do conselho editorial da Contretemps e autor do livro O Capital Fictício.

Artigo publicado na revista Contretemps a 13 de abril. Entrevista originalmente produzida para a Mediapart.Tradução de Karim Quintino para o Esquerda.net.

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